“Higesipo Brito” por Higesipo Brito (Cap. X)
Higesipo Brito – Década de 1960
AS MEMÓRIAS DE UM MENINO, DE UM RAPAZ, DE UM HOMEM
HIGESIPO BRITO
Como em toda a sua vida este relator nunca teve o que esconder, não posso nem devo furtar-me ao fato de ter respondido a um processo judicial, na dupla condição de vítima e de réu, que foi causado por uma tentativa de homicídio que sofri em 1964, em situação de trabalho, ou seja, quando estava cumprindo meu dever profissional como funcionário da S/A Metalúrgica Santo Antônio, à época responsável pela preservação das inúmeras propriedades da empresa na cidade de Rio Acima.
O fato se deu durante o trabalho de revisão da demarcação – segundo a escritura original datada de 8 de novembro de 1932 – da linha divisória da propriedade da empresa onde se situa a Usina Hidrelétrica do Mingú – construída pela própria Samsa na sub-bacia do córrego Mingú, para suprir a cidade de energia elétrica, fornecimento que durou até junho de 1961, quando foi transferido para a Cemig, embora ela continuasse fornecendo energia para as instalações da companhia. Ocorreu que o dono da propriedade limítrofe, o lavrador tratado pelo apelido Modesto Baía, inconformado com a venda das terras feita por seus antecessores à companhia, resolveu, no início daquele ano de 1964, invadir o terreno da Usina, construindo uma cerca de arame farpado dois alqueires adentro dos marcos originais que defendem uma crista de vinte metros da barragem, neles efetuando plantações.
Represa da Usina Hidrelétrica do Mingú – Rio Acima
Após as providências iniciais, com a assistência do Juiz de Paz de Rio Acima Antônio Agostinho da Silva, foi feito um acordo com Modesto Baía, que se mostrou favorável à mudança da cerca para a linha divisória da escritura relacionada com a bacia da represa, ocasião em que, analfabeto que era, assinou, por meio de um representante presente à negociação, uma declaração nos seguintes termos: “[…] estou de pleno acordo em retirar imediatamente à verificação da referida documentação […], tôdas as cêrcas de arame que tenho construído dentro das terras de propriedade da S/A Metalúrgica Santo Antônio […]. Todavia […] venho solicitar à S/A Metalúrgica Santo Antônio autorização no sentido de serem mantidos os tapumes das áreas plantadas por mim, assim como a continuação do cultivo que venho mantendo nas referidas áreas, por prazo indeterminado e para o único efeito de plantio, comprometendo-me perante as testemunhas abaixo, que a tudo assistiram e presenciaram, a remover ditos tapumes, deixando as áreas, objeto da presente declaração, livres e desimpedidas, sem qualquer embargo de resistência, à todo tempo que, pela S/A Metalúrgica Santo Antônio, ou possíveis sucessores, forem as mesmas exigidas. Rio Acima, 18 de março de 1964.”
Apoiado no acordo e na autorização do oficial de justiça de Nova Lima para efetuar a demarcação limítrofe seguindo os antigos marcos de cimento, uma vez que corria uma ação judicial impetrada pela companhia para solucionar o conflito, em 4 de abril de 1964, sábado, por volta das 7h30, este relator voltou ao terreno da Usina do Mingú para refazer os marcos, acompanhado do auxiliar de pedreiro Anisio Silvio dos Rêis, de 19 anos de idade. Foi então que, prevalecendo da oportunidade de me encontrar sozinho conversando com eles (pois Anisio ficara perto do caminhão a aproximados cem metros de distância), Modesto Baía e seus dois filhos de 17 e 20 anos decidiram dar cabo da minha vida, agindo de forma traiçoeira.
Local do crime: seta 1 – curral; seta 2 – caminho do curral;
seta 3 – onde estava Higesipo quando chamado por Modesto;
seta 4 – parte do telhado da casa de Modesto.
Ocorreu que tão logo cheguei ao local, “desci-me atravessando para o lado do córrego (onde se situa a casa do tal Modesto Baía) com a finalidade de localizar alguns marcos […], nêste momento, estava, portanto, o meu único companheiro, o Sr. Anísio Sílvio dos Reis, do outro lado e a uma certa distância de mim, quando em dado momento, avistei Modesto Baía e os dois filhos, e êle, em tom hospitaleiro e visivelmente alegre, convidou-me para ir à sua casa para tomar café, convite o qual não aceitei sob a alegação de estar empenhado em terminar naquele dia o serviço de colocação dos marcos. Antes porém de convidar-me para tomar café, o referido indivíduo, disse-me: “Como é Zezito, está só fincando marco, heim?” Ao que respondí-lhe positivamente. Recusando, então, delicadamente, o convite que me fizera, êle convidou-me então a conversar um pouco, ao que acedí saltando a cerca de arâme farpado e dirigindo-me ao encontro dos três. Inicialmente, cumprimentaram-me, alegres, todos três, convidando-me com certa insistência para ir tomar café e depois de ter agradecido, procurei esclarecer ao Modesto Baía quanto à minha recusa no dia anterior, quanto ao seu pedido para que eu não passasse para o lado dele com a colocação dos marcos antes de domingo. Disse-lhe que estava atendendo instruções da minha diretoria e somente a ela, êle, Modesto Baía, deveria se dirigir a respeito, no sentido da paralisação do serviço, por outro lado, disse-lhe que embora fosse um pedido que o mesmo havia apresentado através de seus filhos, eu o receberia como um embargo e que no caso somente embargo judicial eu acataria, e passei a argumentar em favor da medida judiciária que ele Modesto Baía deveria tomar contra a Samsa, desde que, julgasse ele com algum direito, disse-lhe mais que, mêsmo os dias que êle perdesse em favor da demanda, a Samsa, uma vez errada, teria que indenizá-lo; todavia, afirmei-lhe que a Samsa estava certa e que a minha tranquilidade era total. A esta altura invoquei o nome de N. Senhora da Conceição para dizer-lhe que Dela eu era devoto, e que nas minhas orações eu A pedia prudência e justiça nos meus atos. A esta altura, êle disse-me, “mas está tudo errado”. E ato contínuo, retirou-se o filho mais novo (15 anos aproximadamente) e em direção a sua casa, e continuando a conversa eu disse-lhe que não adiantava a nossa discussão pois que, os nossos pontos-de-vista se divergiam e nunca chegaríamos a um acordo satisfatório, e ao lembrar-lhe que êle já havia concordado comigo, digo, de que êle já havia concordado com a escritura da Companhia pelo documento que havia fornecido, êle negou de ter autorizado que alguém assinasse a seu rôgo, combatendo assim a autenticidade do referido documento. A esta altura notei que seus lábios tremiam e seu filho, de 20 anos aproximadamente, pediu-me que eu lhe desse a foicinha que eu trazia às mãos. Perguntei-lhe para que e êle respondeu-me que queria ver se ela era boa para cortar. Cortei então um ramo que se encontrava ao meu lado e lhe disse, ela é bôa sim, então ele argumentou, mas eu quero ver nas minhas mãos, eu então lhe disse, não, ela está em bôas mãos. Creia-me Sr. Delegado. Isto aconteceu, unicamente, por um verdadeiro milagre, pois que, dotado de excessiva boa fé que sou, tive para entregá-lo a foicinha, digo, entregar-lhe a foicinha, por outro lado, embora tremesse os lábios do Modesto, isto em outros dias eu havia visto. Não havia clima para nem de longe pensar que a minha morte tivesse sido tramada entre os três para aquêle instante. Nêste momento, pois, aproxima-se das minhas costas, vindo de casa, o rapazinho acima referido com as mãos para traz, mas, de nada desconfiei, tendo o seu irmão lhe perguntado se êle ia procurar o bezerro e êle respondeu positivamente e, ato contínuo colocou-se bem por detrás de mim e em seguida sentí uma pancada fortíssima na cabeça. Tive a impressão (com o deslocamento provocado pelo choque da pancada), que a minha cabeça havia arrancado para traz, rodopiei para cair e forçando por me equilibrar, ví apesar de ter as vistas bastante escuras, que eles se preparavam para dar cabo do macabro intento, mas, graças a Deus e à minha Virgem Protetora, lembrei-me do meu revolver e ao sacar-me dêle, consegui, meio tonto, escaramuçar aos covardes assassinos, ocasionando dois disparos a esmo, pois pouco enxergava e me encontrava bastante instável e atordoado. Todavía, não perdí o sentido e lembrei que certamente eles viriam munidos de espingarda e que nenhuma proteção eu encontraria no local em que estava. Corri, e corri o mais que pude. Atravessei o córrego e ao subir do outro lado, êles gritaram-me e ao olhar para traz, ví que o velho estava com a espingarda em posição de tiro. Cai-me então no chão e felizmente houve uma perfeita coincidência, dando-se o disparo de espingarda, exatamente na hora que eu caí. Julgando êle Modesto ter me matado, gritou: “tomou desgraçado”. Realmente a carga assobiou sôbre meu corpo. Lembrei-me e ví que o meu companheiro Anisio procurava correr. Gritei-lhe então que não corresse e viesse a meu encontro, ato contínuo, apanhei o caminhão e toquei, imediatamente, para Rio Acima, encontrando com o Sr. Raimundo “Talico” que havia se atrazado por motivo de estar levando um burro arreado de cangalha para transportar mourões de candeia; é que nem todos os piquetes eram aplicados a marco de ferro, assim, estávamos colocando já os mourões definitivos para a construção da cêrca da divisa, tendo ele ouvido o tiro da espingarda. […]” (Processo 254 – A, de 23 de março de 1965, às fls. 21, 22 e 23).
Local do crime e as posições de Anisio, Higesipo, Modesto e seus filhos:
1 – caminhão; 2 – Anísio; 3 – Higesipo no local do chamado de Modesto;
4 – Modesto e filhos onde atacaram Higesipo; 5 – córrego saltado por Higesipo;
6 – terreiro da casa de Modesto de onde ele atirou em Higesipo.
Avalizando, em depoimento, a narrativa de Higesipo, a testemunha ocular Anisio Silvio dos Rêis relatou: “no dia dos tiros o depoente foi no caminhão com Higesipo para o lugar denominado Mingú; que depois Higesipo encostou o caminhão já no ponto de saída, isto é, no pondo de voltar, e saiu na frente para ver se achava os piquetes, já no local onde êles tinham medido, isto é, os topógrafos, cujos nomes o depoente não se lembra; que o depoente ficou junto do caminhão descarregando um pouquinho de cascalho e um pouco de cimento para chumbar os marcos, enquanto Higesipo foi na frente, e quando Higesipo já estava, digo, ainda estava lá pelos fundos caçando os piquetes, Modesto Rodrigues chamou Higesipo para tomar café e conversar um pouco e aí o depoente continuou andando com o carrinho, e depois o depoente viu que um deles saiu, de nome Osvaldo, e foi para o lado da casa de Modesto; que Osvaldo é filho de Modesto, e o depoente continuou andando com o carrinho mais para frente, em direção do córrego onde ia mexer a maçeira e depois o depoente viu que Osvaldo havia ido à sua casa e voltado com as mãos para traz; que aí êle chegou e começou a conversar lá e o depoente viu que Higesipo estava com uma foiçinha e roçou uns ramos no chão, foiçe que Higesipo sempre levava no serviço, e depois numa distância de mais de cem metros o depoente viu que Osvaldo estava com um pau na mão, que o depoente não pode afirmar se era pau ou ferro, porque estava distante e não deu para observar, e viu que Osvaldo chegou por traz de Higesipo e deu-lhe uma caçetada na nuca, mais ou menos, e Higesipo rodou para cair no chão e gritou “Nossa Senhora”, e levou a mão no revolver e deu dois tiros, e aí Modesto saiu correndo para o lado de sua casa, dêle Modesto, e os dois filhos de Modesto correram um pouco, e o outro filho é Nelson correram para o lado da casa e depois pararam, e Higesipo saiu correndo também para o lado do caminhão, o qual depois atravessou o córrego e uma cerca e nessa altura Modesto já estava com a espingarda, atirando para o lado dele; que o depoente viu quando Higesipo caiu no chão e ouviu Modesto dizer: “Tomou desgraçado”; que pelo caminho onde o depoente ía com Higesipo, só há um córrego antes da casa de Modesto; que trabalhou com Higesipo só neste dia” (Processo 254 – A, de 23 de março de 1965, às fls. 75 e 76).
Alto Mingú – Foto de Marcelo Pinheiro
Após a agressão, de imediato, este relator tomou as devidas providências legais, fazendo o exame de corpo de delito em Nova Lima, para onde foi acompanhado de Anisio Silvio dos Rêis e Raimundo Anatalino Ferreira, e tentando fazer a denúncia lá mesmo, porque o delegado de Rio Acima há muito não aparecia na cidade. Mas como a queixa não podia ser feita no município comarca, Higesipo aguardou a intimação do delegado local, mas quando este retornou a Rio Acima, não conseguiu registrar a denúncia. É que ao apresentar-se acompanhado do advogado Marino da Costa e Silva e do diretor presidente da companhia Murilo Giannetti, “o Major Delegado demonstrou-se bastante indignado com a presença dos dois cidadãos acima mencionados, concluindo por dispensar o depoimento do depoente” (Processo 254 – A, de 23 de março de 1965, às fls. 46), o que deixou este relator preocupado e apreensivo. Mas o motivo dessa sua atitude foi revelado alguns dias depois.
Ocorreu que, estranhamente, o delegado resolveu instaurar o inquérito policial a partir da queixa do agressor Modesto Baía, o que aconteceu cinco dias depois do atentado, em 9 de abril de 1964, com base em requerimento do agressor, que deu esta falsa versão dos fatos: “Modesto Rodrigues, brasileiro, casado, lavrador, residente no lugar denominado “Mingu”, nêste município, vem expor e requerer a V. Excia. o seguinte: 1°) – O suplte., no dia 4 do corrente, sábado, de manhã, quando se encontrava em serviço no curral de sua propriedade, foi molestado por Higesipo de Brito, encarregado de serviço da S. A. Metalúrgica Santo Antônio, residente nesta cidade, que invadiu sua propriedade, com a finalidade de agredir o Suplte., insultando-o com palavras de baixo calão. 2°) – O Suplte. teve que revidar os insultos e pedir que o insolente invasor se retirasse de sua propriedade. 3°) – Diante da atitude defensiva, mais enérgica do Suplte., o referido Higesipo de Brito sacou de um revolver e fez três disparos contra o Suplte. e seu filho menor […], de 14 anos de idade, tentando matá-los. 4°) – Ato contínuo, o seu filho acima referido, para defender seu pai deu uma cacetada na cabeça do agressor, pondo-o em fuga. 5°) – O suplte. e seu filho não estavam armados e estavam apenas trabalhando na sua propriedade, cuidando de seus afazeres. 6°) – Em face da tentativa praticada contra o suplte. e seu filho, vem apresentar a presente queixa, requerendo a V. Excia. a instauração do competente inquérito, para fins de direito. Apresentando o rol das testemunhas abaixo, P. deferimento, Rio Acima, 9 de abril de 1964. A rogo do Suplte. […]” (Processo 254 – A, de 23 de março de 1965, à fl. 4).
Gerador da Usina Hidrelétrica do Mingú fabricado na Alemanha
Esse requerimento foi escrito pelo advogado Acácio Paulino de Paiva, que assistia Modesto Baía a algum tempo no conflito sobre a divisa, e o orientava para destruir continuamente os marcos colocados por Higesipo a cada medição topográfica realizada por ordem judicial. Modesto também se relacionava com o influente advogado José Fonseca de Nova Lima, para quem caçava aves no Mingú e prestava outros favores. Tal relacionamento proporcionava vantagens ao meu agressor, que também era apoiado pelo engenheiro comprador das terras da fazenda ao lado, até então, de propriedade de Raimundo Cardoso Oliveira que, segundo informou ao Sr. Juiz de Paz Antônio Agostinho da Silva, continuou ali residindo após a venda, e que também “havia construído cêrcas de arâme farpado dentro das propriedades da SAMSA, e pretendia construir mais cercas de arâme, em virtude de ter vendido a sua parte à terceiro e sob condição de ‘porteira fechada’”. O comprador dessas terras era o Sr. Hugo de Gouvêa Dolabela que, segundo Raimundo, passara a ser seu patrão e, por isso, “somente dele recebia quaisquer ordens correlatas à fixação das divisas, pois que – informava ainda Raimundo – as cercas haviam sido feitas por ordem do Dr. Hugo” (Processo 254 – A, de 23 de março de 1965, à fl. 15). Havia pois, além de Modesto Baía, outro invasor das terras da S/A Metalúrgica Santo Antônio e, portanto, com os mesmos interesses do agressor de Higesipo, um fato estranhamento desconsiderado tanto pelo promotor como pelo juiz que julgou o processo.
Este relator ficou tão apreensivo com a atitude do delegado, que para substituir o depoimento que ele se negara a tomar, enviou-lhe duas cartas de 10 e 3 páginas (Processo 254 – A, de 23 de março de 1965, à fls. 15 a 27), relatando, em detalhes, os fatos ocorridos antes, durante e após a tentativa de homicídio da qual fora vítima. Assim, somente no dia 30 de abril, Higesipo conseguiu que o delegado incluísse no inquérito o seu importante relato do crime. E tão apreensivo ficou com a sua suspeita atitude de negar-se a ouvi-lo que, quando o mesmo mandou apreender o seu revólver no dia 11 de maio, não o entregou de imediato, só fazendo isto dias depois, em 25 de maio (Processo 254 – A, de 23 de março de 1965, à fls. 37). E este relator viu que tinha razão, quando ouviu da testemunha Francisco de Morais Campos, no seu interrogatório em juízo, no dia 23 de abril de 1965, após a leitura de seu depoimento dado ao delegado em Rio Acima em 6 de maio de 1964, o seguinte: “[…] Lido o depoimento do mesmo na Polícia confirma-o em parte, pois quanto a dizer que Modesto Rodrigues é homem que fala muito, porém nada faz, pois só tem muita garganta, e que Higesipo também nada faz contra os outros, apenas conversa muito, êles escreveram isso na polícia, mas eu não falei isto, e até o Capitão estava muito exaltado com Higesipo, o qual disse que êsse rapaz ninguém aprecia êle, e que há dias Higesipo tinha encontrado um rapaz roubando uns ferros e levou o rapaz à presença do Capitão, e o Capitão ficou muito amolado com isso, e mandou que o rapaz vendesse os ferros, e o rapaz estava roubando os ferros da Companhia SAMSA” (Processo 254 – A, de 23 de março de 1965, à fls. 74 a 75).
Como se verifica, o delegado postou-se como inimigo declarado deste relator, e de forma tal que para afrontá-lo apoiava até mesmo um ladrão. Essa animosidade compartilhada com seus inimigos políticos, levou o delegado a não tomar o depoimento de Higesipo, e tal ilegalidade veio a ser confirmada em 5 de agosto, quando o Promotor de Justiça requereu o depoimento de Higesipo “para completa instrução do inquérito” (Processo 254 – A, de 23 de março de 1965, às fls. 44), vindo tal depoimento a ser formalizado somente ano seguinte, em 5 de março de 1965. Bem antes disso, entretanto, no mês de junho, após ter concluído o inquérito policial, o major delegado foi substituído no cargo por um colega de patente. Porém, o pior já estava feito: ao agressor foi dado o benefício da queixa, o que o fez figurar como vítima no inquérito policial.
Tropas mineiras se deslocam em Brasília, em 4 de abril de 1964,
após o Golpe de Estado, ocorrido em 31 de março.
Para entender o estranho comportamento do delegado, é preciso dar a conhecer sua motivação política. Na época, o fato de Higesipo ser um vereador que defendia a legenda da UDN – União Democrática Nacional, partido minoritário na Câmara Municipal (por ter apenas dois representantes, sendo seu correligionário o grande amigo José Egídio de Oliveira, mais conhecido como Zé Antenor), fez com que seus adversários políticos do PTB – Partido Trabalhista Brasileiro majoritário na casa legislativa, na sanha de destruí-lo politicamente, agissem como seus inimigos pessoais (que de fato eram), dando total apoio ao lavrador Modesto Baía. O ódio que esses adversários políticos nutriam pela pessoa deste relator tinha origem, unicamente, no fato de eu ser funcionário de confiança dos Giannetti, sendo esta, inclusive, a razão pela qual o Major Delegado se recusou a tomar meu depoimento, por estar acompanhado do então diretor presidente da Samsa e do advogado da empresa. Fato de conhecimento público em Rio Acima, os Giannetti eram odiados pelos petebistas por causa da paralisação definitiva da S/A Metalúrgica Santo Antônio em 1957, que os levou, como líderes políticos dos dirigentes sindicais da cidade, a um fracasso junto à população. Sobre tal animosidade, tenho a relatar que em 1963, quando este relator presidia a Câmara Municipal, o vereador líder do PTB apresentou um projeto de lei visando tornar Américo Renné Gianneti persona non grata da cidade de Rio Acima. Colocado em votação, após discurso do vereador José Egídio de Oliveira contrário à medida, o projeto foi derrotado por unanimidade.
Atestado de boa conduta concedido pela Câmara Municipal
de Rio Acima a Modesto Rodrigues – agressor do então vereador
Higesipo Augusto de Brito – 12.04.1965 – A assinatura ausente é
do vereador José Egídio de Oliveira, que discordou da atitude da casa.
As provas do incondicional apoio desses meus inimigos pessoais a Modesto Rodrigues são incontestáveis, pela sua presença nos autos do processo. A primeira refere-se à concessão, em 12 de abril de 1965, pela Câmara Municipal de Rio Acima, de um atestado de bons antecedentes ao meu agressor – documento de responsabilidade da Secretaria de Segurança Pública – assinado por todos os oito vereadores do PTB, um deles o então Presidente da Câmara, e de partidos aliados, sendo o único ausente neste apoio de má fé o vereador José Egídio de Oliveira, da UDN, conforme mostra o documento anexado aos autos pelo defensor do meu agressor Acácio Paulino de Paiva, pedindo a absolvição de seu cliente ao Ministério Público: “[…] O acusado registra bons antecedentes, conforme provam as testemunhas que depuzeram nos autos bem como o atestado firmado por oito (8) vereadores, com exceção de um (1) que é o agressor seu e de seus filhos. […]” (Processo 254 – A, de 23 de março de 1965, à fl. 167). O advogado mentiu, pois a exceção pertence ao vereador José Egídio de Oliveira, que não avalizou a atitude da Câmara. A segunda prova que formaliza este apoio é o documento anexado aos autos pelo mesmo advogado, apresentando o rol das testemunhas de defesa de Modesto Rodrigues, a saber: os então Presidente e Secretário da Câmara Municipal de Rio Acima (Processo 254 – A, de 23 de março de 1965, à fl. 208), mesmo não tendo esses dois cidadãos participação nos fatos que levaram o lavrador a cometer a tentativa de assassinato contra este relator, nem estado presentes à ocorrência da agressão.
Riva (12 anos), Ângela (10 anos), Guida (8 anos), Clarinha (6 anos)
e Geninho (4 anos), os filhos mais novos de Higesipo – 1964
Rio das Velhas – quintal da casa – Rio Acima
Instaurado o processo penal em 23 de março de 1965, com base em um inquérito policial manipulado segundo os interesses do agressor, de outro interessado nas terras e dos inimigos políticos deste relator, tem-se, primeiro, uma aberração jurídica – haja vista Higesipo Augusto de Brito e Modesto Rodrigues figurarem simultaneamente como réus e vítimas – e segundo, um erro judicial – haja vista a vítima Higesipo, que agiu em legítima defesa da vida, figurar como réu. Em razão desse erro, em 2 de abril de 1965, Higesipo tem decretada a sua “prisão preventiva, por estar o mesmo”, segundo o delegado responsável pelo inquérito, “incurso nas sanções do artigo 121, combinado com o artigo 12, n° II, ambos do Código Penal” (Processo 254 – A, de 23 de março de 1965, à fl. 53). Tem início, então, o mais temido passo de sua via crucis, que muito sofrimento trouxe à sua família.
HIGESIPO BRITO
Rio Acima, SET 1995.
A narrativa do autor prossegue em próxima postagem.
Referência:
BRITO, Higesipo Augusto de. As memórias de um menino, de um rapaz, de um homem [Rio Acima, set. 1995.17 f. Mimeografado]. Chá.com Letras, ago./set./out., 2013. Disponível em: <www.chacomletras.com.br>.
Coautoria Capítulo X
Leila Brito
Revisão, pesquisa de imagens e edição:
Leila Brito
Edição fotográfica:
Leopoldo Rezende
Ilustração:
Foto 1 – Higesipo Brito – Foto de autor desconhecido.
Foto 2 – Represa Usina do Mingú – Foto do site Descubra Minas.com. “A Usina Hidrelétrica do Mingú foi idealizada pelo empresário Américo René Giannetti, proprietário da S/A Metalúrgica Santo Antônio (SAMSA) que, no ano de 1933, em viagem à Europa, adquire conhecimentos técnicos e de gestão industrial, e decide construir em Rio Acima uma usina hidrelétrica com potência de 600 HP. Ela foi erguida com a finalidade de produzir energia indispensável para o crescimento da empresa e também fornecer luz à residência dos funcionários e às vias do entorno da indústria. Foi denominada Usina Hidrelétrica do Mingu, uma vez que utilizava as quedas d’água do córrego de mesmo nome para movimentar suas turbinas, onde foi construída uma barragem para captação da água necessária”. Disponível em: <http://descubraminas.com.br/Turismo/DestinoAtrativoDetalhe.aspx?cod_destino=107&cod_atrativo=4398>.
Foto 3 – Local do crime – Seta 1 – curral; Seta 2 – caminho do curral; Seta 3 – onde estava Higesipo quando chamado por Modesto;
Seta 4 – parte do telhado da casa de Modesto – Foto de Odilon Ferreira da Silva – junho de 1965. Processo 254 – A, de 23 de março de 1965, às fls. 114.
Foto 4 – Local do crime e as posições de Anisio, Higesipo, Modesto e seus filhos – 1 – caminhão; 2 – Anísio; 3 – Higesipo no local do chamado de Modesto; 4 – Modesto e filhos onde atacaram Higesipo; 5 – córrego saltado por Higesipo; 6 – frante da casa de Modesto de onde ele atirou em Higesipo – Desenho de Higesipo Brito. Informações confirmadas por perícia judicial – Processo 254 – A, de 23 de março de 1965, às fls. 172.
Foto 5 – Alto Mingú – Foto de Marcelo Pinheiro – Fotografia aérea de Rio Acima, Alto Mingú. Fotografia em arquivo digital com 84,67 x 56,44cm de tamanho com 72 DPI de resolução. Esta fotografia é para uso exclusivamente não comercial. Proibida qualquer utilização comercial desta imagem. Disponível em: <http://www.sobrebelohorizonte.com.br/loja/index.php?cPath=39_46_83&osCsid=ctrb941j4jmgls0759sd0erv70>.
Foto 6 – Gerador fabricado na Alemanha – Foto de Descubra Minas.com. “Os equipamentos alemães do prédio dos geradores encontram-se em bom estado de conservação, apesar de a usina estar inoperante desde [a década de 1970]”. Disponível em: <http://descubraminas.com.br/Upload/Foto/0022858_O.jpg>.
Foto 7 – Tropas mineiras se deslocam em Brasília, em 4 de abril de 1964 – Foto do Arquivo Nacional – Fundo Correio da Manhã.
Foto 8 – Atestado de boa conduta concedido pela Câmara Municipal de Rio Acima a Modesto Rodrigues – agressor do então vereador
Higesipo Augusto de Brito – 12.04.1965 – A assinatura ausente é do vereador José Egídio de Oliveira, que discordou da atitude da casa. Processo 254 – A, de 23 de março de 1965, às fls. 167.
Foto 9 – Riva, Ângela, Guida, Clarinha e Geninho, filhos mais novos de Higesipo – 1964, no Rio das Velhas, que banha o quintal da casa em Rio Acima. Foto de autor desconhecido. Acervo da Família Brito.
Muito bom saber desse episódio com tantos detalhes, inclusive com os depoimentos dos três envolvidos. Ouvia frequentemente essa história nos encontros de família, mas sempre era contada em um teor de boato, sem dados efetivamente concretos… e agora poder ver todo esse caso sendo ‘passado a limpo’ é muito legal!
Leopoldo…
Que bom ver mais um neto se manifestando sobre as memórias do Vô Higesipo, e com a perspicaz observação de “ver todo esse caso sendo ‘passado a limpo'”.
É isto mesmo: Higesipo Brito passa a limpo esta sofrida fase de sua história, e apoiada nos documentos que conformam o Processo Penal que o vitimou, inocente que era da acusação formulada com base em uma implacável perseguição de cunho político, esta editora ratifica a sua inocência sacramentada no Tribunal do Juri na madrugada de 31 de março de 1966.
Com carinho,
Mãe