Aula 5

LETRA & MÚSICA

Letra e Música
Letra e Música de Noel Rosa


Música e Poesia

Música é a arte de combinar os sons e o silêncio. Não se pode estabelecer com segurança a sua origem. Todos os historiadores divergem nesse ponto, mas concordam em atribuí-la à mais remota antiguidade. De acordo com o historiador Diodoro (um século a.C.), a palavra “música” deriva de um vocábulo egípcio, o que o levou a concluir que ela teve origem no Egito, e que a primeira idéia do som adveio do ruído dos canaviais que cresciam nas margens do Nilo. Para outro historiador, porém, a música teve origem no canto das aves. Muito mais racionalmente, outros acreditam que o ponto de partida para a criação da música é a própria natureza.

O canto é tão natural ao homem como a palavra. Sendo assim, os primeiros seres humanos devem ter sido os primeiros cantores. Certos gritos de alegria e de dor podem facilmente ser traduzidos pela notação da música, permitindo supor que, nos tempos pré-históricos, a manifestação vocal precedeu o mais rudimentar invento instrumental.  A idéia do ritmo encontra-se em certos movimentos naturais: na regularidade da marcha (andar), na respiração e nas batidas do coração. O trote e o passo de um cavalo marcam bem o ritmo de dois a quatro tempos, e o galope, o de três tempos. O que está demonstrado, com certeza, é que a India, o Egito, a Assíria, a Pérsia e a China, na sua antiga cultura muito anterior ao período grego, possuíram uma arte musical desenvolvida.

E talvez, porque o canto é tão natural ao homem quanto a palavra, é  que um dia, não se sabe ao certo quando e nem onde, aconteceu a fusão da música com a palavra. Na Grécia antiga, berço da poesia, da pintura, da escultura e da arquitetura, a música representava, com a poesia e a dança, uma tríade de muita expressão, e as pessoas cantavam em coro sobre palavras ritmadas, dançando ao mesmo tempo. Era a este conjunto que os gregos chamavam música e, anteriormente, os indianos chamaram launim.

Da antiguidade até os dias atuais, a música percorreu um longo e diversificado caminho pelas mais variadas culturas. No Brasil, a música popular se caracteriza por ritmos cadenciados herdados da cultura africana, que, entre outros, originaram o “samba”,  ritmo essencialmente brasileiro, assim como a “bossa-nova” – derivada do samba, chorinho, baião, xaxado…

Muitos compositores contemporâneos criaram verdadeiras pérolas musicais, ao fundir poesia e música, sozinhos ou em parceria com outros poetas: Pixinguinha, Cartola, Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Tom Jobim, Milton Nascimento, Djavan, João Bosco, Vinícius de Morais, dentre outros. Fato é que, a partir dos anos de 1930, a riqueza poético-literária das letras das canções foi ganhando espaço e se impondo dentro de um determinado núcleo de compositores da música brasileira, dando origem a uma escola denominada Música Popular Brasileira – MPB. A busca pela comunhão entre poesia e música gerou parcerias famosas: Tom Jobim e Chico Buarque, Tom Jobim e Vinícius de Moraes, Chico Buarque e Caetano Veloso, Gilberto Gil e Caetano Veloso, Toquinho e Vinícius, Milton Nascimento e Fernando Brant, João Bosco e Aldir Blanc, dentre outras.

A bela canção “Faltando um Pedaço”, de Djavam, passa a idéia exata de harmonia entre poesia e música. Observe que a letra da canção foi criada dentro dos parâmetros da técnica literária. Portanto, trata-se de um poema musicado, no qual destaquei expressões metafóricas caracterizadoras do “código literário”.

Faltando um Pedaço

O amor é um grande laço
Um passo pr’uma armadilha
Um lobo correndo em círculo

Pra alimentar a matilha
Comparo sua chegada
Com a fuga de uma ilha
Tanto engorda quanto mata
Feito desgosto de filha.

O amor é como um raio
Galopando em desafio

Abre fendas, cobre vales
Revolta as águas dos rios

Quem tentar seguir seu rastro
Se perderá do caminho
Na pureza de um limão
Ou na solidão do espinho.

O amor e a agonia
Cerraram fogo no espaço

Brigando horas a fio
O cio vence o cansaço

E o coração de quem ama
Fica faltando um pedaço
Quem nem a lua mingando
Que nem o meu nos seus braços.

DJAVAN

EXERCÍCIO:

Após leitura atenta e decodificação dessa belíssima prosa poética Crônica da Gravidez do Fogo, do poeta e escritor carioca João de Abreu Borges, grife todas as expressões metafóricas representativas do processo de codificação literária.

Crônica da Gravidez do Fogo

Crônica da Gravidez do Fogo

Quando suas mãos me tocaram, era manhã. Asas suaves sobre meus ombros lembravam o sol caindo sobre minha pele. Não precisei olhar por frestas, nem bater em portas alheias, para saber quem você era e o que queria.

Seus sonhos estavam claros como o dia recém nascido em nossas faces; como tua nudez feito nuvem desfilando em azul, como teus olhos que tentavam me traduzir, traindo as palavras que tentavam impedir esse silêncio devastador.

A sua mão deslizando em minha coluna vertebral mostrou-me o objetivo de toda luz, a natureza de toda paz, a extensão oculta de toda tez, a gravidez da proximidade da dor e do prazer: tremi como a vegetação no alto das montanhas.

Contornando minha cintura com a malícia de um mestre-salas, e formando um palavrão com sílabas eclesiásticas, teu gesto tinha gosto de carnavais ao virar meu corpo já despido de memória sobre os copos de vinho e vibrar relâmpagos  em meu umbigo; sem qualquer adjetivo e desmentindo em mim tudo que não fosse vibração de minhas próprias células e vulto de minhas próprias sensações.

Desapertei meu cinto, tirei minhas calças e larguei meus pés sobre estrelas  distraídas que caíam ao chão… Despertei estilhaços de demônios. Colhi serpentinas, chorando. Desatei serpentes do tronco das árvores mais cheias de pecado. E, sorrindo, doí repentinamente…

Rios eram cúmplices de minha vida, épicos contos com heróis e semideuses despidos de qualquer mitologia, em carne e osso sambando com a própria sombra na praça, e fertilizando nossos pulmões com o ar mais natural de um ser…

E depois das mãos, veio a língua!

Depois da língua não veio nenhuma palavra presa à saliva, apenas suspiramos, sussurramos algumas descobertas… O fogo da vagina sorriu em combustão, penetrada até seu infinito por um vulcão cigano.

Aves de rapina do pênis emergiam, hereges como estátuas livres da tirania da pedra, num vôo de mãos sãs e línguas sábias, indecentemente queimando o mundo com as fagulhas desse calor.

Um novo rio, de força clara e espumante, alinhavava com um fio de perigosa esperança um outro curso para a vida (dentro de você e através de mim). Uma outra natureza à margem de si mesma…

O Possível Criador de Todas as Coisas morria e ressuscitava em poucos segundos, abrindo bocas antepassadas e antecipando os olhos do futuro congelado em algum ponto de nossa Galáxia, mostrando que os mundos podem estar na palma de nossas mãos sem reduzir o infinito a um simples cálculo matemático e criando até uma nova ciência: a Genética Cósmica, cujos princípios fundamentais estão na carne e no espírito do sonho…

Enquanto isso, num rádio ao lado da cama, Tim Maia perguntava: “Onde está você?”. Estávamos num hotel do Rio de Janeiro…

Despedimo-nos com um beijo entre as pernas, um beijo que só pertence a um homem e uma mulher juntos, abelha e flor, Terra e Lua, montanha e ar…, embora parecesse apenas um punhado de sol pousando mais uma vitória do dia sobre todas as coisas.

Agora, resta a noite como uma resposta aos nossos gestos esquecidos pelo quarto: é uma usina de imagens na memória revirando o baú de nossos movimentos, alimentando-nos de quantos sonhos pudermos, apesar do trânsito engarrafado e o vinho já se diluindo em nossas veias.

JOÃO DE ABREU BORGES
Poeta, Escritor, Músico e Editor.

Referência:
BORGES, João de Abreu. Crônica da gravidez do fogo. Anoum. Rio de Janeiro, a. III, n. 28, jun. 2003.

Encerrando este Mini-Curso de Técnica de Literatura direcionado à criação poética, recomendo a quem dedicou-se ao seu estudo, que faça outros exercícios de identificação de expressões metafóricas (de codificação) em poemas e letras de músicas diversos. Sugiro as letras das canções do Caetano Veloso: “Você é Linda” e “Trem das Cores”; Chico Buarque e Milton Nascimento: “O que será”; Chico Buarque: “Todo sentimento”; “Tom Jobim: “Luiza”; João Bosco e Aldir Blanc: “Nação”;  Pixinguinha: “Rosa”; Milton Nascimento e Fernando Brant: “Travessia”; Beto Guedes: “Olhos de Jade”; Almir Sartre: “Tocando em frente”; Toquinho e Vinícius: “Para viver um grande amor”.