SEGURANÇA PÚBLICA É SÉRIO DEMAIS PARA SER CASO DE POLÍCIA
MARCO ANTÔNIO ASSIS LOBO-GUARÁ
Não agrada a este autor revisitar o passado, mas a aposentadoria como Delegado de Polícia, ao invés de me livrar-me das mazelas da segurança pública, lançou-me ao meio delas com todos os fantasmas e cacoetes recolhidos pelo caminho, e o que é pior: do outro lado da mesa. Após doze anos de aposentadoria, espero estar suficientemente distante para ter um olhar menos comprometido e apaixonado, a fim de que minhas memórias não contaminem muito as reflexões que pretendo por em debate.
“POLÍCIA PÁRA! QUEM PRECISA DE POLÍCIA?” (Titãs)
Militar em torno da palavra polícia, revela uma certa mística, de que se trata de um instrumento público apropriável por quem esteja sofrendo algum tipo de violência, o que, em parte, nos dias atuais, constitui uma verdade. Em parte, porque mesmo sendo um instrumento público de acesso, em tese universal, as polícias, que no Brasil são muitas, acabam por se especializarem demais, requerendo da pessoa que busca o lenitivo, quase que um MBA em instituições de segurança. A única ressalva que se pode fazer, diz respeito aos casos de violência aguda, em via pública, quando as polícias encarregadas da manutenção da ordem, através de suas centrais de despacho, acessíveis por chamadas gratuitas de três dígitos, comandam o imediato comparecimento de uma equipe embarcada ao local. Essa equipe adota as primeiras providências, visando preservar eventuais vestígios esclarecedores, encaminhar feridos a unidades de saúde e, eventualmente, prender em flagrante o agressor, que ainda se encontre ao alcance.
Até a Constituição Federal de 1988, a segurança pública era praticada por duas polícias: uma ostensiva, uniformizada, de estrutura militarizada, dedicada à preservação da ordem pública; e outra de contornos civis encarregada da investigação criminal e dos atos de polícia judiciária estadual, estrutura que se repetia no nível federativo da União com uma polícia federal. A partir da CF/1988, alguns questionamentos foram levantados, e guardas municipais foram sendo criadas. Movimentos internos nas polícias civis remodelaram tais instituições com a saída de serviços relevantes como a identificação civil, os registros e licenciamento de veículos e condutores, além das perícias de natureza criminal e da guarda de presos provisórios. Mudança inspiradora da crença, um tanto razoável, de que tal sistema aumentaria os esforços investigativos e, consequentemente, o alcance de uma melhor resolutividade das polícias civis, cronicamente submetidas a um contingente insignificante de servidores, em face das demandas a ela subsumidas.
Pois bem. Com o esfacelamento das polícias civis, aconteceu o milagre da multiplicação de polícias diversas como as “polícias científicas”, a “polícia penal”, as “guardas civis municipais e metropolitanas”, os departamentos de trânsito e as agências de trânsito de âmbito municipal. Um movimento interno nas polícias militarizadas levou, também, à cisão que resultou nos corpos de bombeiros estaduais independentes, mas ainda militarizados. Completa-se, assim, o inferno que o cidadão visita, a cada vez que precisa resolver algum ato de sua vida, que tenha relação com um ou alguns dos milhares de possíveis crimes descritos em centenas de leis, que se acumulam sem critérios lógicos desde, pelo menos, 1941.
Fosse pouco, nos anos que se seguiram à Constituição Federal de 1988, iniciaram-se movimentos tendentes a embalar, no mesmo pacote, instituições com formatos e desideratos legais diferentes e até incomunicáveis, levando, invariavelmente, a sucessivas e incentivadas ingerências de uma agência nos “negócios” da outra.
A recepção a essas ideias nas bases e extratos medianos das corporações levaram à adoção e recrudescimento de comportamentos até então rejeitados com ênfase, tais como o trabalho “à paisana” de policiais militares, e o “fardamento” oficioso de policiais civis. Recordo-me que, dos idos de 1980 até por volta de 2000, policiais civis rejeitavam usar coletes distintivos em operações de grande porte, alegando, por vezes, que uniforme era coisa de banda de soul music da década de 1970. As tatuagens, rejeitadas nesse mesmo período por serem “coisa de preso”, hoje, em conjunto com as camisetas pretas e justas em corpos marombados, compõem a nova identidade dos policiais civis: uma releitura tardia da Yakuza, temível máfia japonesa. Admito que o flerte com a farda sempre esteve no seio das polícias civis, o que justificava em parte o “kit policial” dos anos 1980 e 1990 constituído por pochete, jaqueta de couro e óculos escuros modelo aviador. Tudo isso reforçado por um claro normativo, que não define, de maneira consistente, quais as atribuições de cada cargo ou função dos componentes da instituição. Portanto, os arroubos estéticos, não obstante possam ter melhorado a autoestima dos novos policiais, em nada contribuíram para a melhoria de sua eficiência.
“EU SOU DO POVO, EU SOU O ZÉ NINGUÉM. AQUI EMBAIXO VOCÊS SÃO DIFERENTES” (Biquini Cavadão)
Se há um consenso inarredável, fruto de paradigmas já perscrutados e identificados por estudiosos de todas as tendências, é de que o Estado, em todos os seus formatos conhecidos, é o detentor da prerrogativa do uso da força. Prerrogativa que deveria dar suporte ao brocardo jurídico: A Ninguém É Lícito Fazer Justiça Pelas Próprias Mãos. Não raro, como autoridade policial, este articulista recebia na delegacia pessoas simples, pedindo providências contra um desafeto vizinho ou parente, que do alto de sua rusticidade, demonstravam grande conhecimento do monopólio estatal da força, quando a requeria: “Não quero que bata nele ou prenda, só quero que dê um susto.”
Como se vê, há que se reconhecer, também, que grande parte dos Estados modernos é promotora da violência. Seja por motivos políticos, ideológicos, confessionais, culturais, etc., muitos estados patrocinam espetáculos de violência no meio da sociedade, a exemplo da velha e festejada Roma. Por estas bandas nacionais, o amontoar de presos, invariavelmente pretos e pobres, em cadeias insalubres, as sucessivas incursões em favelas com blindados fortemente armados, as inúmeras vítimas de balas perdidas nas periferias de grandes cidades sem investigação séria da autoria, e as abordagens violentas a pessoas estigmatizadas, dentre outras medidas corretivas, são as digitais do Estado na bunda do contribuinte. É o cartão de visitas do estado na cena do estupro dos direitos e garantias fundamentais.
Toda vez que um assunto parece demasiadamente complexo para o estado brasileiro, a primeira providência de solução encaminhada é a criminalização. Foi assim com a mendicância e a embriaguez, problemas de natureza social, que sucederam a farsa abolicionista. Foi assim com os “manicomiáveis” clínicos ou jurídicos, que deram notoriedade deletéria à bela cidade mineira de Barbacena. Foi assim com o consumo de drogas recreativas usadas pelos jovens na década de 1960, para justificar a “caça aos subversivos”. Foi assim com os abortos praticados por jovens mulheres em um país machista sem políticas consistentes de informações e de proteção à infância e juventude, aliada a uma prática escravagista de manutenção de “empregadas domésticas que dormiam no emprego”. Ouso afirmar, que a truculência policial e a impunidade e leniência do judiciário não são pragas modernas enviadas por um deus raivoso. São políticas do Estado Brasileiro.
Após um trágico incidente numa escola pública de São Paulo, onde mais um educador perdeu a vida neste país, e onde o seu mais ilustre educador, mundialmente reconhecido, é desmerecido, o governador daquele estado veio a público apresentar uma proposta inovadora: colocar policiais militares nas escolas. Acho a proposta de grande valor, desde que tais policiais sejam colocados na condição de alunos. A estreiteza dos horizontes intelectuais do mandatário, todavia, não deve ser analisada sem a consciência da força de uma cultura que se iniciou com a jagunçagem das fazendas da colônia e o ethos policialesco do “capitão-do-mato”. Muitos de nossos agentes públicos acreditam que a forma eficiente de combater a violência é com mais violência.
A sofisticação da instrumentalidade na vida cotidiana trouxe para muitos a percepção equivocada de que novas ferramentas fazem maravilhas, mesmo sem mãos habilidosas para as operarem. O garoto que, em São Paulo, matou uma professora e feriu outras além de alguns colegas, não usava uma pistola semiautomática, mas uma simples faca. Uma simples faca, que também não deveria estar entre seu material escolar. O mesmo tipo de equívoco quanto à instrumentalidade das coisas, permitiu que Osama Bin Laden, sem o uso de uma arma ou explosivo sequer, impusesse aos arrogantes senhores das armas e do dinheiro a sua mais amarga e humilhante derrota, no mais imponente monumento de seu poderio econômico.
CONCLUSÃO
Não acredito que pessoas armadas no meio da multidão promovam segurança pública. Nem, tampouco, acredito que encher cadeias de pobres diminuam o fosso social que nos rodeia. Da mesma forma, não acredito que nossos gestores sejam mal intencionados, embora os tenha na conta de mal preparados. O lado perverso dessa equação de vaidades e disputas institucionais é o sequestro do debate, que faz com que a sociedade sinta-se absolvida de todos os seus pecados, como se fosse mera expectadora da história, e não seu principal ator.
Referência
Lobo-Guará, Marco Antônio Assis. Mitos Modernos: Segurança Pública É Sério Demais Para Ser Caso de Polícia. Disponível em: www.chacomletras.com.br/
Ilustração
Goulart, Fransérgio. Segurança pública, como um direito, não é uma invenção das favelas. 17 nov. 2021. Disponível em: https://dmjracial.com/2021/11/17/seguranca-publica-como-um-direito-nao-e-uma-invencao-das-favelas/
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