A Família Com Deus Pela Hipocrisia
A FAMÍLIA COM DEUS PELA HIPOCRISIA
LEOPOLDO REZENDE
O algoritmo do Facebook de algum modo nos proporciona uma certa paz de espírito. Ao distanciar minimamente da minha bolha virtual, as questões sobre justiça social e até mesmo a mais elementar empatia humana desaparecem cedendo lugar, quando não ao ódio, à hipocrisia. “O que há de errado em os deputados dedicarem seus votos às suas famílias, aos seus filhos e a Deus?” Perguntam aqueles que compactuaram com o moralismo hipócrita presente no rito do impeachment. Bom, os deputados só se esqueceram de dedicar o voto do “Sim” às acompanhantes de luxo, aos filhos bastardos, aos lobistas mais íntimos… situações típicas em Brasília. Mas isso implicaria estender o conceito de família, não é mesmo?! Algo que geraria um conflito moral de extrema grandeza para os parlamentares (!) e talvez, por isso, seja melhor manter as coisas como estão.
Os que defendem o moralismo dos congressistas só o fazem sob argumentos desprovidos da mais básica mediação simbólica (algo que deveríamos saber articular ainda na primeira infância). A despeito da mesma nulidade cognitiva, também são defendidos os comentários racistas, homofóbicos, misóginos, colocados de antemão como “inocentes”… Ignora-se tudo o que diz respeito ao aspecto do simbólico, das relações sociais, das potencialidades da palavra, dos conceitos históricos, do lugar social ocupado pelo enunciador, da origem moral do discurso, do ponto de vista do opressor… Nada como a negação simbólica para tomar como realidade a mera ingenuidade do imediato. “Mas afinal, o que haveria de tão errado em enaltecer a família? Você não ama a sua família? Então, a família é algo bom!”, conclui o indivíduo inerte no pensamento hegemônico.
Naturaliza-se, por assim dizer, um imenso lastro de opressão e de injustiças sociais, pois tais valores provém de um mesmo discurso reacionário, moralista e hipócrita. Discurso que só adere à consciência, não por acaso, através do preconceito latente dos interlocutores. Em muitos casos temos o desprazer de ouvir coisas como: “Se existem tantos bandidos soltos pelas ruas, a culpa é das famílias que não deram um bom corretivo nos marginais”, “Se existe tanta marginalidade a culpa é do Estado que não pune os bandidos de forma mais severa”, “Se existe tanta pobreza é porque existem muitos preguiçosos que não querem trabalhar”, “Se existe tanto desemprego a culpa é dos programas sociais que incentivam as famílias a ficarem gerando filhos para não precisarem trabalhar”, “A família brasileira está se perdendo dos valores morais, preferindo viver na mais pura imoralidade!”.
Nos anos sessenta, por exemplo, o povo pobre que se organizava para lutar pelos seus direitos e pela própria sobrevivência, tinha ainda que aguentar o ferro em brasa do julgamento dos poderosos. “Comunistas!”, denunciavam os homens de bem. A identidade desse Outro – o pobre – aparece como uma aberração indigesta à família burguesa. É preciso, portanto, anular essa identidade, subjugá-la, pois trata-se da mais fétida sujeira social que, se não for reprimida o quanto antes, colocará em risco a conveniente ordem da vida social e a paz das famílias de bem. Se a classe subjugada está se organizando e está disposta a lutar, eis que se faz necessária a urgente intervenção do Estado: “abram alas para o fascismo e deixem o golpe passar!” Assim marcharam as famílias com Deus pela liberdade! Não por acaso, a família que marchou com Deus pela liberdade em 64 é a mesma representada hoje, no congresso, pelos homens de bem. Os mesmos que foram ao púlpito vomitar toda a arrogância do discurso burguês.
Repetem-se os mesmos chavões em rede nacional e o movimento da história parece entrar no círculo vicioso das injustiças perpétuas. A Família defendida pelos parlamentares, representa um grupo muito restrito de poderosos. São, em sua esmagadora maioria, homens brancos que mantém, em suas rédeas, seus súditos: a mulher, os filhos e o próprio Estado. Afinal, ambos são congênitos de mesma origem semântica (pater familias): a pátria é o patriarcado. Assim como o conceito de família burguesa infere as relações de opressão no ambiente doméstico, o Estado, dito democrático, permanece sequestrado pela mesma linhagem hereditária, reafirmando e perpetuando a opressão em nível nacional.
A evidente injustiça social é então, inacreditavelmente, justificada por um discurso moralista de quinta categoria, onde a definição de “bem” é convenientemente calvinista: o indivíduo abastado, que “venceu na vida”, só poderia ser um agraciado por Deus! Logo, para todo aquele que se arrasta nas bases da pirâmide social, só lhe resta a condição de desgraçado. Sabemos que o Todo-Poderoso não erra e mantém o mundo sob a impecável justiça divina, portanto Deus é o grande aliado que marcha contente ao lado das famílias envolto de anjos e suas trombetas. Inclusive, Ele, de tão piedoso que é, ainda concedeu o livre-arbítrio a todos que desejam, através do ~mérito~ do próprio esforço individual (jamais coletivo), deixar as bases da pirâmide, subir ao topo e alcançar a graça. Assim sendo, para o reacionário conservador de direita, o mundo está em perfeita ordem… Até porque, nada é mais legítimo que o direito de ter privilégios à custa do direito dos outros.
“Mas o que haveria então de errado em os deputados dedicarem seus votos às suas famílias, aos seus filhos e a Deus, se são todos abençoados por Ele?”
Voltemos à paz do algoritmo,
pois a paz de Deus continua presa em alguma sala do DOI-CODI.
Nota – Leopoldo Rezende é graduando em Jornalismo pela Universidade Federal de Minas Gerais.
Referência:
REZENDE, Leopoldo. A família com deus pela hipocrisia. Chá.com Letras. 20 abr. 2016. Disponível em: http://www.chacomletras.com.br/2016/04/a-familia-com-deus-pela-hipocrisia/
Ilustração:
Foto de autor desconhecido desta editora.
Últimos Comentários