Machismo e homofobia sobrevivem no comunismo?
MACHISMO E HOMOFOBIA SOBREVIVEM NO COMUNISMO?
ERIK HAAGENSEN
É muito frequente o argumento que diz “sem se pautar pelas lutas feministas, anti-racistas, anti-homofóbicas etc., o comunismo reproduziria todos os vícios da subjetividade capitalista”.
E, como justificativa: “o machismo, o racismo, a homofobia etc. surgiram muito antes do capitalismo”.
Há algumas noções que subjazem essa argumentação e que merecem ser comentadas.
Em primeiro lugar, a noção de que a subjetividade seja algo separado da objetividade social. Assim, se a sociabilidade muda, se todo o solo social em que floresce o indivíduo (e sua personalidade) se transforma, a subjetividade pode ainda continuar igual.
Ora, é exatamente a mesma noção que imagina ser “a sociedade” uma outra coisa que os indivíduos, uma entidade fantasmagórica que paira sobre eles e com a qual ninguém tem nada a ver.
Com menos de um passo, chegamos no idealismo bocó de um Max Stirner e sua vulgaríssima “revolução interior” (sim, essa que sai da boca de qualquer charlatão dos altos astrais e dos mequetrefes das quitandas de incensos indianos made-in-China e livros do Paulo Coelho) [*]. É o mesmo dualismo ontológico, desta vez apontado pro indivíduo: organização de movimentos sociais? de assistência social nas bases? de intervenção ideológica na educação? grupos de pressão política? sindicatos e partidos? Tudo isso é inútil e desgastante, o que realmente muda o mundo é você cuidar de seu jardim, ainda que ele não passe de um miserável pezinho de feijão plantado num copo com algodão à guisa de vaso. Mude sua pessoa e o mundo muda! Quer dizer, o SEU mundo muda, esse no qual você mesmo quase não tem tempo de viver, principalmente se você tem insônia.
Antes de fazermos aqui ilações apressadas: por acaso estou dizendo que há somente um único vetor aqui, que sai do social e chega no indivíduo? Ou será que deu pra notar que, se a sociedade não é uma “coisa outra” que os indivíduos, mas que é justamente tais indivíduos em relação uns com os outros, então há um trânsito entre sociedade e indivíduo que é, digamos assim, dialético? Portanto, que fique claro o seguinte: de modo algum o caráter classista da luta comunista exclui o feminismo e os demais embates por reconhecimento travados pelas assim chamadas minorias; ao contrário, os pressupõe. E vice-versa, pois não há luta por emancipação que logre vitórias consistentes deixando intocadas as condições atuais de reprodução da sociedade e dos indivíduos.
Entretanto, essa relação social instaurada entre os indivíduos certamente ultrapassa cada um deles considerado em separado. Inclusive porque trata-se de uma relação que não pode ser reduzida a – e aqui segue um outro termo bastante vulgar também – a tal “intersubjetividade”, essa mesma noção que desemboca no culturalismo e demais formas de relativismo e arbitrariedade, como se não houvesse um bocado de objetividade em jogo, de encadeamento que não é apenas subjetivo, mas também material, em torno não apenas de sujeitos, mas da natureza etc.
O que nos leva a um segundo ponto.
Os elementos que compõem o capitalismo não surgiram no capitalismo (tal pensamento é apenas uma variante profana da crença na criação ex nihilo da natureza por Deus). Por exemplo, dentre outras tantas categorias, a centralíssima propriedade privada, essa que sustenta toda a atual sociabilidade em torno de si, surgiu há décadas de milhares de anos.
Parece haver acordo quanto ao fato de que o patriarcalismo, forma específica de relação social que incide sobre (e hierarquiza) a divisão do trabalho entre homens e mulheres, resulta do desenvolvimento de técnicas de cultivo do solo que farão surgir a propriedade privada como forma dominante de organização social do trabalho em torno daquele novo procedimento de lida com a natureza.
(É claro que a propriedade privada atual não é do mesmo feitio de propriedade privada que dominou até o surgimento do capital – a propriedade ligada à terra -, quando então a terra mesma se torna apenas mais uma das possíveis formas de propriedade privada, fato este que torna ingênua a declaração de Rousseau: “O primeiro homem que cercou um pedaço de terra e que teve a idéia de dizer ‘isto é meu’, e encontrou gente simples o bastante para acreditar nele, foi o verdadeiro fundador da sociedade civil. Quantos crimes, guerras e assassinatos derivam desse ato! De quanta miséria e horror a raça humana poderia ter sido poupada se alguém simplesmente tivesse arrancado as estacas, enchido os buracos e gritado para seus companheiros ‘não dêem ouvidos a este impostor. Estarão perdidos se esquecerem que os frutos da terra pertencem a todos, e que a terra, ela mesma, não pertence a ninguém'”. Assim também não deixa de ser divertido ver que os ideólogos da propriedade privada consideram sua forma atual tão capaz de promover os mesmos desenvolvimentos humanos que a antiga pôde proporcionar.)
A luta por uma nova sociabilidade, chame-a de comunismo ou o nome que for, não é, pois, apenas a luta pela superação do capitalismo, mas do modo privado de apropriação dos recursos, dos meios, das capacidades de trabalho e da riqueza produzida. É sobre tal núcleo (des)organizador da sociedade que se moldam as individualidades e seus traços subjetivos, que àquele irão corresponder; pois o machismo et cetera não pairam no ar da casualidade, e se é correto que tais traços estão ligados ao patriarcalismo, este tampouco flutua sobre o éter de algum culturalismo arbitrariamente reproduzido e solidificado em uma estranha forma de tradição. O buraco é bem mais embaixo que a teia da intersubjetividade nos permite compreender.
“Os proletários não podem apoderar-se das forças produtivas sociais senão abolindo o modo de apropriação que era próprio a estas e, por conseguinte, todo modo de apropriação em vigor até hoje. Os proletários nada têm de seu a salvaguardar; sua missão é destruir todas as garantias e seguranças da propriedade privada até aqui existentes. /…/ O que caracteriza o comunismo não é a abolição da propriedade geral, mas a abolição da propriedade burguesa. Ora, a propriedade privada atual, a propriedade burguesa, é a última e mais perfeita expressão do modo de produção e de apropriação baseado nos antagonismos de classe, na exploração de uns pelos outros. Neste sentido, os comunistas podem resumir sua teoria nesta fórmula única: abolição da propriedade privada” – Karl Marx & Friedrich Engels, 1848.
* Seguem abaixo alguns trechos da Ideologia Alemã (Editorial Presença/Martins Fontes) em que Marx faz a crítica da “revolução interior” de Stirner:
p. 268-9):
Stirner: “Começar por procurar os erros fora de nós em vez de buscá-los em nós não é mais do que a manifestação de uma atitude já muito velha – e o mesmo acontece quando atribuímos ao Estado ou ao egoísmo dos ricos aquilo que só releva de culpas integralmente nossas”.
Marx: “Quem deve designar “a nossa culpa”? Será o pequeno proletário que nasce com escrófula, é alimentado a ópio e vai trabalhar em uma fábrica assim que chega aos sete anos? Será o trabalhador isolado a quem se pede que “se revolte” [alusão a uma exigência que o próprio Stirner faz aos trabalhadores, do alto de sua torre de marfim falsificado] com os seus punhos contra todo o mercado mundial? Ou a jovem que se prostitui ou morre de fome? Não: é precisamente “Aquele” que procura “em si mesmo” “todas as culpas”, isto é, “A Culpa” de todo o atual estado de coisas, ou seja e uma vez mais, Jacques le bonhomme [apelido jocoso que Marx dá a Stirner]. A atitude da fraseologia idealista, segundo a qual “Eu”, o “elemento real”, não devo modificar a realidade, pois só o posso fazer juntando-me a outros, mas sim modificar-me a mim mesmo, é “apenas a manifestação de uma velha atitude” da introspecção e da contrição cristãs sob a forma germano-especulativa”.
p. 271:
Marx: “[Stirner] Julga que, na sociedade comunista, poderão existir “deveres” e “interesses” enquanto pólos complementares de uma contradição que pertence exclusivamente à sociedade bourgeoise (quando se trata de interesses, o bourgeois pensativo introduz sempre um terceiro elemento entre ele próprio e a sua vida, processo que aparece sob forma clássica em Bentham, cujo nariz só se decide por cheirar quando tem interesse nisso. Confira “o Livro” a propósito dos direitos sobre o próprio nariz, p. 247)”.
p. 272:
Stirner: “Se o interesse pela questão social fosse menos apaixonado e cego, reconhecer-se-ia a impossibilidade de alcançar uma sociedade nova enquanto aqueles que a formam e a constituem continuarem a ser iguais ao que eram no passado”.
Marx: “’Stirner’ julga aqui que os proletários comunistas, que revolucionam a sociedade e estabelecem as relações de produção e a forma do intercâmbio sobre uma base nova, isto é, sobre si mesmos enquanto homens novos, sobre o seu novo modo de vida, continuam a ser “iguais ao que eram no passado”. A propaganda infatigável que esses proletários fazem, as discussões que eles organizam continuamente entre si, comprovam suficientemente quão pouco desejam manter-se “iguais ao que eram no passado” e quão pouco, de modo geral, desejam que os homens continuem a ser “iguais ao que eram no passado”. Só continuariam a ser “iguais ao que eram no passado” se, como pretende São Sancho [outro apelido que Marx dá a Stirner], procurassem “a culpa em si mesmos”; mas eles sabem muito bem que somente sob circunstâncias transformadas poderão deixar de ser “iguais ao que eram no passado”, e é por essa razão que se decidiram a fazê-lo o mais rapidamente possível. Na atividade revolucionária, a modificação das circunstâncias e a modificação de si mesmo coincidem”.
Nota: *Erik Haagensen Gontijo é professor de Filosofia.
Referência:
HAAGENSEN, E. G. Machismo e homofobia sobrevivem no comunismo? Chá.com Letras, 3 jul. 2015. Disponível em: http://www.chacomletras.com.br/2015/07/machismo-e-homofobia-sobrevivem-no-comunismo/
Ilustração:
Autor com nome ilegível – Disponível em: http://grabois.org.br/portal/cdm/noticia.php?id_sessao=30&id_noticia=8998
Achei interessante e, a quem está acostumado a pensar em termos de ontologias materialistas e/ou monistas, razoavelmente simples de compreender.
Todavia, acho que a reflexão, ainda que pontual e acertada, perde de vista um aspecto importante do desenvolvimento do comportamento humano: a mudança dos ambientes é o que explica a mudança “subjetiva”, grosseiramente falando, mas tal como já notou o próprio Marx, a mudança na superestrutura não acompanha em ritmo a mudança na superestrutura, esta muito mais lenta. O que significa dizer que, ainda que coloquemos abaixo as relações humanas que caracterizam o capitalismo enquanto sistema político, econômico e social, não passamos uma borracha na história de vida de cada indivíduo vivo que viveu o “velho mundo” e agora compõe uma nova organização. A reeducação tem que ser constante e altamente conveniente, no sentido de convincente e socialmente “premiada”, para que os velhos hábitos percam seu lugar no repertório pessoal e os novos sejam devidamente instalados.
Revolução é reforma, no sentido de que história de vida não se reseta. Ainda que os exemplos da História talvez não constituam o melhor possível para a argumentação filosófica, obras sólidas sobre a manutenção de uma lógica machista e de exclusão do gênero feminino nas sociedades supostamente comunistas que existiram (e ainda resistem) no planeta demonstram que tal relação não é tão necessária assim. Longe de cair no conto das políticas identitárias pós-modernosas e relativistas, ainda que as relações de propriedade privada, em última análise do próprio humano reificado, sejam derrubadas, as divisões das tarefas cotidianas e as atribuições sociais dos papéis de gênero ainda podem ser reproduzidas sem a menor criticidade, justamente porque velhos hábitos demoram a ser mudados, quando o são.
Eu quero concordar que a derrubada de um sistema derruba tudo aquilo que lhe caracterizaria, mas as ciências do comportamento demonstram que mudanças de repertório dos indivíduos dependem de constância ambiental e, no mínimo, de um período turbulento de adaptação. O que vimos até hoje, ainda que não corresponda aos ideais filosóficos, não nos autoriza a afirmar essa relação de necessidade.
A propósito, ao autor do post e à dona do blog, é um portal bonito e interessante. Esqueci, deselegantemente, de parabenizá-los. Esteja reparado meu imperdoável erro.