Walter Benjamin (Parte III)
A OBRA DE ARTE
NA ERA DA SUA REPRODUTIBILIDADE TÉCNICA (Parte III)
WALTER BENJAMIN
XII
A reprodutibilidade técnica da obra de arte altera a relação das massas com a arte. Reaccionárias, diante, por exemplo, de um Picasso, transformam-se nas mais progressistas frente a um Chaplin. O comportamento progressista é caracterizado pelo facto do prazer do espectáculo e da vivência nele suscitar uma ligação íntima e imediata com a atitude do observador especializado. Tal ligação é um indício social importante. Porque quanto mais o significado social de uma arte diminui, tanto mais se afastam no público as atitudes, críticas e de fruição – como reconhecidamente se passa com a pintura. O convencional é apreciado acriticamente e o que é verdadeiramente novo é criticado com aversão. No cinema, coincidem as atitudes críticas e de fruição do público. Neste caso, a circunstância decisiva é que em nenhum outro lugar, como no cinema, a reacção maciça do público, constituída pela soma da reacção de cada de um dos indivíduos, é condicionada à partida pela audiência em massa. À medida que essas reacções se manifestam, o público controla-as. A comparação com a pintura continua a ser útil. A pintura sempre foi apresentada para ser vista por uma, ou algumas pessoas. A observação simultânea de pinturas, por parte de um grande público, como sucede no século XIX, é um sintoma precoce da crise da pintura que, não só através da fotografia, mas também de modo relativamente independente dela, foi desencadeada pela pretensão da obra de arte, a dirigir-se às massas.
A pintura não está, pois, em condições de ser objecto de uma recepção colectiva simultânea, como sempre sucedeu com a arquitectura, outrora com a epopeia e actualmente com o cinema. E por pouco que esta circunstância, em si, nos permita tirar conclusões sobre o papel social da pintura, é certo que isso institui uma séria limitação num momento em que, devido a uma série de circunstâncias particulares, e de um modo que até certo ponto contradiz a sua natureza, ela se vê directamente confrontada com as massas. Nas igrejas e mosteiros medievais e nas cortes da nobreza, até finais do século XVIII, a recepção colectiva da pintura não se terá verificado simultaneamente, sendo transmitida de uma forma graduada e hierárquica. Na mudança que entretanto se verificou, está contida a expressão do conflito particular causado pelo envolvimento da pintura na reprodutibilidade técnica da imagem. Mas, embora fosse exibida em público, em galerias e salões, não houve meio que permitisse às massas organizar ou controlar a sua recepção23. Assim, exactamente o mesmo público que reage com uma atitude progressista a um filme grotesco, tem de reagir de forma reaccionária perante o surrealismo.
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23 Esta perspectiva pode parecer tosca, mas como mostra o grande teórico Leonardo, perspectivas toscas podem, sem dúvida, ser utilizadas ao serviço da sua época. Leonardo compara a pintura com a música, usando as seguintes palavras: “A pintura é superior à música porque não tem que morrer logo que lhe é dada vida, como sucede com a pobre música… A música que se esvai logo que surge é inferior à pintura que se tornou eterna com o uso do verniz.” (Leonardo de Vinci: Frammenti letterarii e filosofici, citado por Fernand Baldensperger: Le raffermissement des tecniques dans Ia littérature occidentale de 1840, in: Revue de Littérature Comparée, XV/I, Paris 1935, pág. 79 – nota 1 -)
XIII
O que caracteriza o filme é não só a forma como o homem se apresenta perante o equipamento de registo, mas também a forma como, com a ajuda daquele, reproduz o seu meio ambiente. Um olhar sobre a psicologia do desempenho ilustra a capacidade de teste do equipamento. A psicanálise ilustra esse facto de outro modo.
De facto, o cinema enriqueceu o nosso horizonte de percepção com métodos que podem ser ilustrados pela teoria freudiana. Há cinquenta anos um lapso numa conversa passava, mais ou menos, despercebido. Podia considerar-se uma excepção que tal lapso abrisse perspectivas profundas, numa conversa que parecia decorrer superficialmente. Desde “Psicopatologia da Vida Quotidiana”, esse facto alterou-se. Esta obra isolou e, simultaneamente, tornou analisáveis coisas que, anteriormente, fluíam na ampla corrente do percepcionado. O cinema, em toda amplitude da percepção óptica, e agora também acústica, teve como consequência um aprofundamento semelhante da percepção. O reverso deste facto reside em que os desempenhos num filme são analisáveis mais exactamente e sob mais pontos de vista do que os desempenhos apresentados num quadro ou no palco. No que diz respeito à pintura, o que permite uma melhor análise do desempenho apresentado num filme é a informação mais exacta sobre as situações que o cinema faculta. Relativamente ao palco, a maior capacidade de análise do desempenho apresentado no filme é condicionada pelo facto deste ser mais facilmente isolável nos seus elementos constituintes. O significado principal desta circunstância reside na tendência para promover a penetração mútua entre arte e ciência. De facto, num comportamento cuidadosamente preparado, em determinada situação – como um músculo num corpo – é quase impossível determinar em que reside o seu grande fascínio, se no seu valor artístico, se na possibilidade de um aproveitamento científico. Uma das funções revolucionárias do cinema será a de tornar reconhecíveis como idênticos os aproveitamentos artístico e científico da fotografia, até agora divergentes, na maioria dos casos24. Isto porque o cinema, através de grandes planos, do realce de pormenores escondidos em aspectos que nos são familiares, da exploração de ambientes banais com uma direcção genial objectiva, aumenta a compreensão das imposições que rege nossa existência e consegue assegurar-nos um campo de acção imenso e insuspeitado. As nossas tabernas, as ruas das grandes cidades, os nossos escritórios e quartos mobilados, as nossas estações ferroviárias e as fábricas, pareciam aprisionar-nos irremediavelmente. Chegou o cinema e fez explodir este mundo de prisões com a dinamite do décimo de segundo, de forma tal que agora viajamos calma e aventurosamente por entre os seus destroços espalhados. Com o grande plano aumenta-se o espaço, com o ralenti o movimento adquire novas dimensões. Uma ampliação não tem por única função tornar mais claro o que “sem isso” teria permanecido confuso, o mais importante sendo a revelação de estruturas de matéria inteiramente novas. Assim, também o ralenti não revela apenas motivos conhecidos em movimento, antes descobrindo nestes movimentos conhecidos outros, desconhecidos, “que longe de parecerem movimentos rápidos retardados, actuam como peculiarmente deslizantes, aéreos e supraterrenos”25. Assim se torna compreensível que a natureza da linguagem da câmara seja diferente da do olho humano. Diferente, principalmente, porque em vez de um espaço preenchido conscientemente pelo homem, surge um outro preenchido inconscientemente. Mesmo que seja comum observar, ainda que grosseiramente, o andar das pessoas, nada se sabe da sua atitude na fracção de segundo em que avançam um passo. Em geral, o acto de pegar num isqueiro ou numa colher é-nos familiar, mas mal sabemos o que se passa entre a mão e o metal ao efectuar esses gestos, para não falar de como neles actua a nossa flutuação de humor. Aqui, a câmara intervém com os seus meios auxiliares, os seus “mergulhos” e subidas, as suas interrupções e isolamentos, os seus alongamentos e acelerações, as suas ampliações e reduções. A câmara leva-nos ao inconsciente óptico, tal como a psicanálise ao inconsciente das pulsões.
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24 Se procurarmos uma analogia para esta situação, depara-se-nos uma, muito elucidativa, na pintura renascentista. Também aqui enfrentamos uma arte, cujo incomparável desenvolvimento e significado se devem ao facto de ter integrado um determinado número de novas ciências ou, pelo menos, de novos dados da ciência. Ela reivindica a anatomia, a perspectiva, a matemática, a meteorologia e a teoria das cores. “Que poderia ser para nós mais distante”, escreve Valéry, “do que a estranha pretensão de Leonardo, para quem a pintura foi supremo objectivo e demonstração do conhecimento, de forma tal que tinha a convicção que a pintura requeria um saber universal, pelo que não se furtava a uma análise teórica, perante a qual, devido à sua profundidade e exactidão, hoje ficamos perplexos.” (Paul Valéry: Pièces sur l’art, op. cit. pág. 191, “Autour de Corot”.)
25 Rudolf Arnheim, op. cit., pag. 138.
XIV
Foi, desde sempre, uma das mais importantes tarefas da arte criar uma procura para cuja satisfação plena ainda não chegou a hora26. A história de qualquer forma de arte apresenta épocas críticas, em que determinada forma aspira a obter efeitos que só mais tarde, perante um novo padrão da técnica, podem ser facilmente obtidos, ou seja, numa nova forma de arte. As extravagâncias e excessos da arte que se manifestam principalmente em períodos ditos de decadência, surgem realmente das suas energias históricas mais ricas. Recentemente, tais barbarismos abundavam no dadaísmo. O seu impulso só agora se toma reconhecível: o dadaísmo tentava criar, através da pintura ou da literatura, os efeitos que hoje o público procura no cinema.
Toda a criação pioneira de procura, fundamentalmente nova, ultrapassa o seu objectivo. O dadaísmo faz isso ao sacrificar os valores de mercado, tão importantes para o cinema, em favor de intenções mais significativas de que evidentemente não tinha consciência no contexto que aqui descrevemos. Os dadaístas atribuíam muito menor valor à possibilidade de aproveitamento mercantil das suas obras de arte do que à sua inutilidade enquanto objectos de imersão contemplativa. O princípio da degradação dos materiais não foi de somenos importância na sua tentativa de atingir aquela inutilidade. Os seus poemas são “uma salada de palavras” que contêm obscenidades e os detritos verbais que é possível conceber. Não é diferente o panorama das suas pinturas em que colam botões ou bilhetes de transportes. O que conseguiram, com estes meios, foi uma destruição irreverente da aura das suas criações, as quais, pelos meios da produção, imprimem o estigma de uma reprodução. Perante um quadro de Arp ou de um poema de August Stramm é impossível ter a mesma atitude de recolhimento ou de opinião que se tem perante um quadro de Derain ou um poema de Rilke. Ao recolhimento, de que a degenerescência da burguesia fez uma escola de comportamento associal, contrapõe-se a distracção como uma espécie de jogo de comportamento social27. As manifestações dadaistas asseguravam de facto uma distracção intensa colocando a obra de arte no centro de um escândalo. Essa acção tinha que satisfazer, pelo menos, uma exigência: provocar o escândalo público.
De espectáculo atraente para o olhar ou sedutor para o ouvido, a obra de arte tornou-se, no dadaismo, um choque. Afectava o espectador, adquiria uma qualidade táctil. Assim, beneficiou a procura do cinema, cujo elemento de distracção, em primeiro lugar, também é táctil uma vez que se baseia na mudança de lugares e acção, cuja intermitência choca o espectador. Comparemos a tela em que se desenrola um filme com a que está subjacente a um quadro. Esta última convida o observador à contemplação, perante ela pode entregar-se ao seu próprio processo de associações. Diante do filme não pode fazê-lo, mal regista uma imagem com o olhar e já ela se alterou. Não pode ser fixada. Duhamel, que detesta o cinema e nada sabe do seu significado, mas percebe algo das suas estruturas, caracteriza esta circunstância da seguinte forma: “Já não posso pensar o que quero pensar. As imagens em movimento tomaram o lugar dos meus pensamentos.”28 De facto, a sucessão de imagens perturba o processo de associação daquele que as observa. Neste facto reside o efeito de choque do cinema que, como qualquer efeito de choque, deve ser suportado por uma presença de espírito acrescida29. Através da sua estrutura técnica, o filme libertou o efeito de choque físico do invólucro moral em que o dadaísmo ainda o mantinha, de certo modo envolvido 30.
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26 “A obra de arte”, diz André Breton, “só tem valor na medida em que vibrem nela os reflexos do futuro.” De facto, qualquer forma de arte desenvolvida situa-se no ponto de intersecção de três linhas de desenvolvimento. A técnica, em primeiro lugar, trabalha no sentido de uma determinada forma de arte. Antes de surgir o filme, havia aqueles livrinhos de fotografias cujas imagens, através da pressão do polegar, passavam muito depressa, para o observador, um combate de boxe, ou um jogo de ténis; havia as máquinas dos bazares que, dando uma volta à manivela, mostravam sequências de imagens. – Em segundo lugar, as formas de arte tradicionais, em determinadas fases do seu desenvolvimento, esforçaram-se por obter efeitos que, posteriormente, foram facilmente obtidos por novas formas de arte. Antes do cinema se impor, os dadaístas procuraram, através dos seus espectáculos, levar ao público um movimento que Chaplin provocou com toda a naturalidade. – Em terceiro lugar, mudanças sociais, que frequentemente passam despercebidas, suscitam uma mudança na recepção, que beneficia novas formas de arte. Antes do cinema ter começado a criar o seu público, já o público se reunia no ‘Kaiserpanorama’ para a recepção de imagens (que tinham deixado de ser imóveis). O público ficava em frente de um biombo no qual estavam instalados estereosc6pios atribuídos a cada um dos espectadores. Nestes estereoscópios surgiam imagens, uma a uma, que persistiam um instante para depois dar lugar às seguintes. Edison ainda teve que trabalhar com meios semelhantes (antes de se conhecer a tela de cinema e o método da projecção), ao apresentar as primeiras fitas de cinema a um público pouco numeroso que fixava o olhar num aparelho em que se desenrolava a sucessão de imagens. – Aliás, na instalação do ‘Kaiserpanorama’ é expressa muito claramente uma dialéctica do desenvolvimento. Pouco tempo antes do cinema ter tornado colectivo o visionamento de imagens, antes do estereoscópio, surge o visionamento individual, rapidamente ultrapassado, com a mesma intensidade que outrora tinha suscitado a contemplação da imagem de Deus pelo padre, na sua cela.
27 O arquétipo teológico deste recolhimento é a consciência de estar só com o seu Deus. Nesta consciência, nas épocas áureas da burguesia é reforçada a liberdade de sacudir a tutela da Igreja. Nas épocas da sua decadência, a mesma consciência teve que ter em consideração a tendência oculta de retirar à comunidade as energias necessárias a cada um no contacto com o seu Deus.
28 Georges Duhamel: Scènes de Ia vie future. 2a ed., Paris 1930, pág. 52.
29 O cinema é a forma de arte correspondente à vida cada vez mais perigosa que levam os contemporâneos. A necessidade de se submeter a efeitos de
choque é uma adaptação das pessoas aos perigos que as ameaçam. O filme corresponde a alterações profundas do aparelho de percepção, alterações como as com que se confronta, na sua existência privada, qualquer transeunte no trânsito de uma grande cidade, ou como as que, numa perspectiva histórica, actualmente, qualquer cidadão experimenta.
30 Tal como para o dadaísmo, o cinema pode dar importantes contributos para a compreensão do cubismo e do futurismo. Ambos surgem como tentativas insuficientes da arte, para empreender a penetração da realidade com aparelhagem. Diferenciadamente do cinema, estes dois movimentos realizaram a sua tentativa, não através da utilização da aparelhagem para a representação artística da realidade, mas através de uma espécie de aliança entre a representação do real e a aparelhagem. Assim se explica o papel preponderante que o pressentimento da construção dessa aparelhagem visual tem no cubismo e o pressentimento, no cubismo, dos efeitos dessa aparelhagem, tal como o cinema os irá concretizar através do rápido desenrolar de película.
XV
A massa é uma matriz da qual, actualmente, surgem novas formas relativamente aos comportamentos habituais para com a obra de arte. A quantidade transformou-se em qualidade: o número muito mais elevado de participantes provocou uma participação de tipo diferente. Que esta participação tenha começado por ser manifestada de uma forma depreciativa, não deverá confundir o observador. Claro que não faltaram os se agarraram a este lado superficial das coisas e o denunciaram com paixão. Entre estes, o que se exprimiu com maior radicalismo foi Duhamel. O que mais contesta no cinema é a forma de participação que suscita nas massas. Duhamel chama ao cinema “um passatempo para a ralé, uma diversão para criaturas iletradas, miseráveis, gastas pelo trabalho e consumidas pelas preocupações… um espectáculo que não exige concentração nem pressupõe qualquer capacidade de raciocínio…. que não ilumina nenhum coração e que de forma alguma desperta qualquer esperança a não ser a esperança ridícula de vir um a ser estrela em Los Angeles.31” Como se vê, no fundo, trata-se da velha queixa de que as massas procuram diversão mas que a arte exige recolhimento por parte do observador. Trata-se de um lugar-comum. Permanece a questão de saber se ele nos proporciona uma análise do cinema. Ou seja, uma visão mais próxima. A diversão e o recolhimento formam um contraste que nos permite a seguinte formulação: aquele que se recolhe perante a obra de arte, mergulha nela, entra nesta obra, como esse lendário pintor chinês ao contemplar a sua obra acabada. Pelo contrário, as massas em distracção absorvem em si a obra de arte. A construção de edifícios é disto o exemplo mais elucidativo. A arquitectura sempre foi o protótipo de uma obra de arte, cuja recepção foi distraída e colectiva. As leis da sua recepção são as mais instrutivas.
A construção de edifícios acompanha a humanidade desde os primórdios da sua história. Muitas formas de arte surgiram e desapareceram. A tragédia surge com os Gregos, para se ex- tinguir com eles e, só séculos após, fazer reviver as suas “leis”. A epopeia, cuja origem se situa no alvorecer dos povos, expira na Europa com o fim da Renascença. A pintura de quadros é uma criação da Idade Média, e nada garante a sua existência eterna. Mas a necessidade humana de um abrigo é duradoura. A arquitectura nunca parou. A sua história é mais antiga do que a de qualquer outra arte, e a sua capacidade de se actualizar é importante para qualquer tentativa de compreensão da relação das massas com a obra de arte. A construção de edifícios tem uma recepção de dois tipos: através do uso ou através da sua percepção. Melhor dizendo: táctil e óptica. Não podemos compreender a especificidade dessa recepção, se a entendermos segundo o tipo de recolhimento que, por exemplo, é habitual num grupo de viajantes perante edifícios célebres. No aspecto táctil não há contraponto para aquilo que a contemplação proporciona no domínio visual. A recepção táctil sucede não tanto através da atenção, como através do hábito. Relativamente à arquitectura, é este último que determina, em grande medida, a recepção visual. Também esta ocorre devido a uma observação natural do que a um esforço de atenção. Mas em determinadas circunstâncias, esta recepção criada pela arquitectura, tem um valor canónico. Porque: as tarefas que são apresentadas ao aparelho de percepção humana em épocas de mudança histórica, não podem ser resolvidas por meios apenas visuais, ou seja, da contemplação. Elas só são dominadas gradualmente, pelo hábito, após a aproximação da recepção táctil.
Também quem se distrai pode criar hábitos. Mais: poder dominar certas tarefas na distracção, só prova que a sua resolução se tornou um hábito. Através da distracção que a arte oferece, podemos verificar de modo indirecto em que medida se terão tomado resolúveis novas tarefas da percepção. Aliás, como para cada indivíduo existe a tentação de se furtar a tais tarefas, a arte conseguirá resolver as de maior peso e importância se conseguir mobilizar as massas. Concretiza-o no cinema actual. A recepção na diversão, cada vez mais perceptível em todos os domínios da arte, e que é sintoma das mais profundas alterações na apercepção, tem no cinema o seu verdadeiro instrumento de exercício. No seu efeito de choque, o cinema vai ao encontro desta forma de recepção. O cinema rejeita o valor de culto, não só devido ao facto de provocar no público uma atitude crítica, mas também pelo facto de tal atitude crítica não englobar, no cinema, a atenção. O público é um examinador, mas distraído.
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31 Duhamel, op. cit., pag. 58.
EPÍLOGO
A crescente proletarização do homem contemporâneo e a crescente formação de massas são duas faces da mesma medalha. O fascismo tenta organizar as massas recentemente proletarizadas, sem tocar nas relações de propriedade que estas pretendem eliminar. O fascismo vê a sua salvação no facto de permitir às massas que se exprimam mas, de modo nenhum, que exerçam os seus direitos32. 1 As massas têm direito a exigir uma alteração das relações de propriedade; o fascismo pretende dar-lhes expressão, conservando essas relações. Por conseguinte, o fascismo acaba por introduzir uma estetização na vida politica. À violência sobre as massas a quem, através do culto de um “führer”, o fascismo impõe a subjugação, corresponde a violência que sofre um aparelho utilizado ao serviço da produção de valores de culto.
Todos os esforços para introduzir uma estética na política culminam num ponto: a guerra. A guerra, e só a guerra, torna possível fazer de movimentos de massas em grande escala objectivo, mantendo as relações de propriedade tradicionais. Do ponto de vista político, assim se formula a situação. Do ponto de vista da técnica, formula-se da seguinte forma: só a guerra possibilita a mobilização dos actuais meios técnicos mantendo as relações de propriedade. É evidente que a apoteose fascista da guerra não utiliza este argumento. Apesar disso, vale a pena debruçarmo-nos sobre ele. No manifesto Marinetti, sobre a guerra colonial etíope, diz-se: “Há vinte e sete anos que nós, futuristas, nos manifestamos contra o facto de se designar a guerra com anti estética… por conseguinte declaramos:… a guerra é bela porque fundamenta o domínio homem sobre a maquinaria subjugada, graças às máscaras de gás, aos megafones assustadores, aos lança-chamas e tanques. A guerra é bela porque inaugura a sonhada metalização do corpo humano. A guerra é bela porque enriquece um prado florescente com as orquídeas de fogo das metralhadoras. A guerra é bela porque reúne numa sinfonia o fogo das espingardas, dos canhões, dos cessar-fogo, os perfumes e os odores de putrefacção. A guerra é bela porque cria novas arquitecturas, como a dos grandes tanques, a da geometria de aviões em formação, a das espirais de fumo de aldeias a arder e muitas outras… poetas e artistas do futurismo… lembrai-vos destes fundamentos de uma estética da guerra, para que a vossa luta possa iluminar uma nova poesia e uma nova escultura! 33”
Este manifesto tem a vantagem de ser claro. A sua forma de colocar as questões, merece ser retomada pelo dialéctico. A estética da guerra actual apresenta-se-lhe da seguinte forma: se o aproveitamento natural das forças produtivas for travado pelo sistema de propriedade, então o aumento de recursos técnicos, de ritmo, de fontes de energia, será impelido a uma valorização não natural. É o que sucede na guerra que, com as suas destruições, demonstra que a sociedade não tinha maturidade suficiente para incorporar a técnica como órgão seu, e de que a técnica não estava suficientemente desenvolvida para dominar as suas forças sociais elementares. A guerra imperialista é determinada, nos seus mais terríveis aspectos, pela discrepância entre os poderosos meios de produção e o seu aproveitamento inadequado no processo produtivo (por outras palavras, pelo desemprego e escassez de mercados). A guerra imperialista é uma revolta da técnica que reclama sob a forma de “material humano” aquilo que a sociedade lhe retirou como material natural. Em vez de canalizar rios, conduz a corrente humana ao leito das suas trincheiras, em vez de lançar sementes dos seus aviões, lança bombas incendiárias sobre cidades e, como a guerra do gás, encontrou um meio de aniquilar a aura, de uma nova forma.
“Fiat ars – pereat mundus”34, diz o fascismo e, como Marinetti reconhece, espera que a guerra forneça a satisfação artística da percepção dos sentidos alterados pela técnica. Isto é, evidentemente, a consumação da “l’art pour l’art”. A humanidade que, outrora, com Homero, era um objecto de contemplação para os deuses no Olimpo, é agora objecto de auto contemplação. A sua auto-alienação atingiu um grau tal que lhe permite assistir à sua própria destruição, como a um prazer estético de primeiro plano. É isto o que se passa com a estética da política, praticada pelo fascismo. O comunismo responde-lhe com a politização da arte.
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32 Neste aspecto, considerando principalmente as “actualidades da semana”, cujo carácter propagandístico não pode ser sobrestimado, há uma circunstância técnica relevante. À reprodução maciça corresponde principalmente a reprodução das massas. Nos grandes desfiles festivos, em reuniões gigantescas, em espectáculos de massas de tipo desportivo e na guerra, todas elas hoje captadas por equipamento visual e sonoro, as massas revêem- se a si próprias. Este processo, cuja amplitude não necessita de ser acentuada, está intimamente ligado ao desenvolvimento das técnicas de reprodução e registo. Os movimentos de massas apresentam-se mais nitidamente, em geral, às aparelhagens do que ao olhar. Enquadramentos de centenas de milhares de pessoas apreendem-se melhor de uma perspectiva aérea. E mesmo que esta perspectiva também seja acessível ao olho humano, a imagem obtida pelo olhar não é passível da reprodução que a fotografia possibilita. Quer isto dizer que os movimentos de massas, incluindo a guerra, representam uma forma particular de correspondência do comportamento humano à técnica dos aparelhos.
33 Cit. La Stampa Torino.
34 “Que a arte se realize, mesmo que o mundo deva perecer.”
Referência:
BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era da sua reprodutividade técnica [1955]. Tradução disponibilidade pela UFRS. Disponível em: http://www.ufrgs.br/obec/assets/acervo/arquivo/benjamin_reprodutibilidade_tecnica.pdf
Ilustração:
Imagem disponível em: https://arcuterie.wordpress.com/2011/03/11/the-work-of-art-in-the-age-of-mechanical-reproduction-walter-benjamin/
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