“Ciência Política”: Mais Política, Menos Ciência
O Trabalhador Fatigado – Giorgio de Chirico
“Ciência Política”: Mais Política, Menos Ciência
ERIK HAAGENSEN GONTIJO
No dia 21 de dezembro de 2015, Chico Buarque foi abordado numa rua do Leblon por ostrogodos antipetistas que, aos latidos, o afrontaram por seu posicionamento pró-PT e por possuir um apartamento em Paris.
Um deles grita que “o PT é bandido”, no que Chico retruca: “Acho que o PSDB é bandido, e agora? /…/ Procure se informar mais, com base na revista Veja você não irá muito longe”.
A partir da repercussão desse fato, um professor de ciência política da PUC-SP afirmou, em artigo publicado na revista Carta Maior (edição de 28 de dezembro), que a fala de Chico Buarque simplesmente “barrou a suposta moralidade golpista”:
– “As respostas de Chico Buarque sobre o PSDB ser, segundo ele, um “partido bandido” e sobre a “desinformação de quem lê a Revista Veja”, entre outras respostas, são, por si só, desconstrução da legitimação moral do golpe. /…/ Ruiu, portanto, do ponto de vista social, em seu veio simbólico, o golpismo… /…/ daqui para frente, salvo acontecimentos completamente imprevistos, o golpismo terá mais dificuldade de se articular e sobretudo de [se] justificar moralmente. Trata-se de mais uma obra de nosso maior artista!”.
E, pra concluir,
– “somente o encerramento do processo de impeachment, conjugado com um novo modelo de desenvolvimento (a queda de Joaquim Levy é, nesse sentido, alvissareira) a [SIC] à articulação com movimentos sociais progressistas poderá fazer com que o Governo Dilma realmente comece!”, sendo que, “Para tanto, o enfrentamento moral – referente à moralidade pública, típica da ação política, enfatize-se – é elemento-chave”.
Como se vê, trata-se de um artigo de fé, recheado por um bocado de vontade investida na crença em santos e milagres. Mas talvez isso não seja casual. De todo esse amontoado de pérolas científicas redigidas à la ENEM, duas coisas podem se observar.
A primeira não é nenhuma novidade: o petismo se sustenta pragmaticamente sobre a mais infantil forma de consciência, a fé; e como toda boa fé, afirma sua validade no fato de ser a minha, “e agora?” (agora se cumprirá a profecia da “guinada” do governo Dilma). Entretanto, e pior que isso, trata-se da mais pueril fé ideológica, a má-fé; pois a consciência politólatra nunca é apenas mera idiotia, mas sempre se pretende útil (o que se demonstra sobejamente no politicismo de direita). No caso em tela, ainda traz o plus da pretensão de ser expressão de “ciência política”.
A segunda vem na sequência deste último detalhe: para apreciar em toda sua justeza o que venha a ser isso – “ciência política” –, convém antes rascunhar um breve escólio.
O entendimento burguês do que seja “ciência” provém de uma trajetória histórica iniciada com as inocentes, mas sinceras, formulações de Galileu, Francis Bacon e Descartes; imediatamente, sofre sua mais decisiva depleção ontológica nas mãos do cardeal Roberto Belarmino, donde posteriormente descamba em franca e aberta crise com Kant e canta como cisne moribundo em Hegel, resultando no que filosoficamente ilumina hoje o fazer científico dominante (até mesmo a maior parte do que se apresenta como, e/ou se crê, “crítico” e “de esquerda”): as trevas do positivismo e do bundalelê conhecido como “pós-modernismo”.
Para apontar diretamente pro que está em questão aqui, basta lembrar que, na prática científica, especialmente a que diz respeito ao objeto das vulgarmente ditas “ciências humanas” (objeto este compreendido sempre, e cada vez mais, à parte da natureza, ao ponto máximo de se tornar o mais puro éter desprovido de propriedades materiais – inclusive a propriedade de meios de produção; manjou a parada?), temos o caso da Economia Política, correndo paralelamente à degradação filosófica burguesa: promissora em sua adolescência fisiocrática, atarantada nas mãos de Adam Smith e encurralada sob David Ricardo, decompõe-se nas mais diversas migalhas científicas. Um restolho irá reivindicar o nome de “Economia”, outro será a “Sociologia”, e dos farelos desta caídos no chão, teremos a tal “Ciência Política”.
O beco sem saída em que a Economia Política se meteu, sob a lucidez e honestidade intelectual de Ricardo, mostrou que sua cientificidade só poderia ser resguardada e desenvolvida sob a forma de uma crítica – e eis o que Marx elabora, a crítica da Economia Política.
É interessante notar que todo esse percurso histórico do pensamento científico acompanhava o estabelecimento da burguesia enquanto classe dominante; e sua crise coincide com a ascensão dos primeiros levantes proletários.
(Como já dizia Marx, “não é a consciência que determina a vida, mas a vida que determina a consciência”.)
Eis que, então, à burguesia não interessava mais a consciência científica, e sim a apologia do capital. Isso significou a transformação da ciência em uma charlatanice certificada pela auréola do trabalho profissional acadêmico, cartório auto-legitimado do estatuto de cientificidade das ideologias as mais chulés.
Para fazer frente à ciência da História – cuja maior expressão e amplitude se encontra na crítica marxiana da Economia Política –, forjaram-se nos gabinetes, cafés e bares de copo sujo as atuais “ciências” do puro e imponderável fluido humano, aquilo que os alemães chamam, com seu habitual disfemismo, de “ciências do espírito”.
Hegel, campeão do espiritualismo filosófico, entendia a natureza enquanto uma “alienação” do espírito, que dela se tornava livre através do trabalho. Auschwitz feelings? Exatamente.
Contra a apologética idealista burguesa, Marx irá afirmar: “O trabalho não é a fonte de toda riqueza. A natureza é a fonte dos valores de uso (e é em tais valores que consiste propriamente a riqueza material), tanto quanto o é o trabalho, que é apenas a exteriorização de uma força natural, da força de trabalho humana. /…/ Apenas porque desde o princípio o homem se relaciona com a natureza como proprietário, a primeira fonte de todos os meios e objetos de trabalho, apenas porque ele a trata como algo que lhe pertence, é que seu trabalho se torna a fonte de todos os valores de uso, portanto, de toda riqueza. Os burgueses têm excelentes razões para atribuir ao trabalho essa força sobrenatural de criação; pois precisamente do condicionamento natural do trabalho segue-se que o homem que não possui outra propriedade senão sua força de trabalho torna-se necessariamente, em todas as situações sociais e culturais, um escravo daqueles que se apropriaram das condições objetivas do trabalho” (Crítica do Programa de Gotha).
Para combater Marx, Hannah Arendt, entre outros tantos nomes, irá cultivar o entendimento da política como o campo da atividade “verdadeiramente humana”, uma vez que o trabalho, determinado pela natureza enquanto seu meio e objeto, ainda seria um domínio do agir pouco afeito à liberdade, ou, como entendia Hegel, alheio à espiritualidade.
Sim, tudo isso é o velho dualismo metafísico-religioso ultra-remastigado, o antagonismo carne x alma dando as caras novamente e sempre que for necessário justificar a dominação social – com pompa e requinte filosóficos, claro, que é pra auferir alguma credibilidade.
Pois a liberdade da politicidade, que Hannah Arendt et caterva têm na mais alta estima, é a liberdade no sentido burguês mais pleno: trata-se da liberdade em relação à natureza enquanto “fonte de todos os meios e objetos de trabalho”, enquanto “condições objetivas do trabalho”. Eis que, portanto, os trabalhadores, na medida de sua determinação política na figura da cidadania (enquanto membros da comunidade política, o Estado), são tão livres quanto um saco de lixo jogado na rua; assim, compartilham fraternalmente, isto é, no doce reino da fantasia burguesa, com o patronato um estatuto de igualdade – abstrata, jurídica, mas suficiente para os propósitos espirituais da sociabilidade capitalista – que permitirá a ambos negociar a compra e venda de trabalho no mercado e assinar os contratos de trabalho de acordo com o Direito. São partes “iguais”, pois ambos são proprietários: uns, de sua própria força e capacidade de trabalho, ou seja, do próprio corpo; enquanto os outros detêm os meios e materiais (eis aí um bom negócio!) para que os primeiros possam trabalhar.
Apesar de certas esquerdas sentirem estranhas afinidades com a ideologia arendtiana, o fato é que o pensamento de direita não é mais que isso: o trabalhador escolhe seu patrão, seu salário, seu emprego e, portanto, não existe exploração e arrocho salarial, pois ele é livre para dizer “não” ao trabalho e morrer de fome – o que é uma alternativa como outra qualquer, certamente; pra não falar de sua função purificadora da alma (e Deus não ama ver os famélicos evoluindo?). Donde que as greves são ingratas violações dos contratos, e por isso a polícia sempre age pedagógica e civilizadamente para reinstaurar a igualdade e reintroduzir os trabalhadores na comunidade política dos cidadãos. Aí, resta medir forças na arena dos direitos – e, quanto a isso, é excepcional a capacidade da burguesia enxergar um Brasil venezuelano desde Getúlio: nossa enorme carga de direitos trabalhistas é expressão sensível do exercício parasitário dos trabalhadores sobre o “interesse geral da nação”; ou seja, trata-se de vagabundagem e, aqui sim, exploração – do laborioso e injustiçado patronato, por via do “aparato socialista” configurado e encarnado no Estado, esse monstro que Hobbes prescreveu contra a liberdade com seus terríveis intentos comunistas.
Deixando o delírio direitista de lado e voltando ao chão da “bürgerliche Gesellschaft” (isso que em português se traduz com o eufemismo sociedade “civil” – pois “sociedade burguesa” não pode, é baixo calão), observa-se que, de fato, ao ser convertido na vaga figura do cidadão, o indivíduo real é dessubstanciado de todas as suas características singulares, aquelas mesmas que fazem com que ele seja quem realmente é; e assim é que todos se tornam “iguais perante a lei” – apesar de que, persistindo a existência prática e concreta no animalesco mundo material, onde o tal cidadão é bem mais que uma penca de números e documentos, as penas são reles cócegas para a minoria e a mais completa desgraça para o resto.
Logo se vê, portanto, que a ideologia burguesa acompanha rasteirinha a prática burguesa mercantil e estatal, e transforma suas ilusões econômicas e políticas em parâmetro do que produzirá sob as alcunhas de “filosofia” e “ciências humanas”.
A crítica, como vimos, conspurca o objeto das “ciências humanas” na vil naturalidade e, além disso, reducionismos materialistas ultrapassam o seu casto campo de estudos. Portanto, é preciso que se leve adiante a toada ideológica da “ciência livre” – livre de manter relações reais com o mundo real – e, por meio da articulação de interesses particulares aqui e costuras políticas internas ali, as academias evacuam novas e universais “áreas do saber”, quer dizer, novos departamentos e novas fontes de aquisição de verbas.
Pois bem, agora podemos compreender como é que a “ciência política” – que o professor universitário tão exemplarmente nos oferece em seu artigo – pode ser tão depauperada quanto uma merreca de opinião de cunho político para entreter gente bêbada, ou mais, uma expressão de fé ideológica de carola que suga padres atrás do altar; e como ela pode, desse deplorável arrimo fantasioso, tirar de um evento já tornado trivial, e em si mesmo insignificante, um indício do renascimento do governo petista, ou seja, de sua mística “guinada à esquerda”, esperança esquálida que só o marketing político mais desavergonhado pode ainda pretender fazer vicejar – por obra e graça da ficção voluntarista de uma “moral da ação política”!
Referência:
HAAGENSEN, Erik Gontijo. “Ciência Política”: Mais Política, Menos Ciência. Chá.com Letras. 23 jan. 2016. Disponível em: http://www.chacomletras.com.br/2016/01/ciencia-politica-mais-politica-menos-ciencia/
Ilustração:
O Trabalhador Fatigado – Giorgio de Chirico – Disponível em: http://lounge.obviousmag.org/augere/assets_c/2015/06/Giorgio%20de%20Chirico-miniatura-900×604-109165.jpg
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