A Seta de Verena
A SETA DE VERENA
Abertura 1 (Guardo-o como quero)
PERCE POLEGATTO
Você se levantou e não pôde evitar o dia. Você se desvia do espelho que também encontrará em pouco, mas não deve admitir que seu rosto esteja inteiramente arruinado. Afinal, bem perto de onde vive, e por grandes extensões de terra, seus semelhantes compartilham misérias tão mais graves que as suas, embora de outro gênero. Tão mais urgentes são tais necessidades, tão exaustiva a marcha diária por conseguir o tão pouco que almejam, tão perverso o silêncio dos que os mantêm sob tais condições e sob controle, isso de tempos imemoriais até cercá-lo hoje, são tragédias pessoais e secretas, desde já riscadas da história, são medos que se repetem, são esperanças evanescentes em um mundo onde os homens saudáveis trapaceiam, matam e roubam, vestindo-se de suas pátrias e reverenciando seus deuses, são histórias que nos fariam a todos envergonhados só por sermos também seres vivos, chamamos a nós mesmos de pessoas, lembre-se, são grandes gritos desesperados entre silêncios devastadores, portanto não se espere que, em meio ao desamparo de tais solidões, alguns desses peguem a ler. E você escreve.
Você escreveu, por pouco não se perdendo de vez de sua normalidade e de sua lucidez, quase como a destruir-se silenciosamente – e pensar que ninguém o tenha obrigado a isso. Você conheceu inúmeros outros que também escreviam, outros que supunha seus pares, mas aprendeu que mais trabalhavam pelo elogio recíproco, pela autoafirmação, pelo dinheiro e pela vaidade, que uma coisa alimenta a outra, mas tudo, claro, sob a capa mágica da mais constrangedora modéstia, sim, eu disse modestos, mas só eu sei que não o são, e que nunca o foram de fato, porque os conheci. E não devemos nos esquecer dos verdadeiros humildes, o problema é que estes ignoram o mundo maquiavélico que se move por trás e ao largo de sua simplória visão, o que não quer dizer que estejam de todo livres de sua parcela de responsabilidade, vale até arriscar, conforme penso por minha conta, que, quanto mais humildes, mais me parecem culpados. Há também os espécimes de outro gênero, dos que seguem com o sublime ideal de contrapor a arte e a beleza às dores do mundo, que eles próprios ajudam a conservar feio e confuso, assim tentando destacar-se por meio do que julgam belo, mas isso só até morrerem um dia, que esse dia existe.
Vem de uma noite em claro, mas não transparente. Você sabe que não consegue dormir de bruços, por isso já pressente a velha insônia, aliás já instalada, como em tantas outras vezes se deu, e hoje tinge de uma estranha coloração os minúsculos rios que cruzam o seu cérebro, seu cérebro, sim, esse aglutinado singularíssimo, talvez tudo seja aí, tudo mesmo, já não brincava sua velha amiga Sylvia que, ao fechar os olhos, encerrava o mundo?
É preciso reconhecer, o que você procurava de fato eram respostas, por isso aventurava-se às perguntas. E apesar de sua breve jornada visando a inúmeras possibilidades de transcendência, essas que durante milênios serviram tanto à guerra quanto ao amor, mais essa coloração à parte, tanto familiar como repulsiva, sim, apesar de tudo, e irmã dos vermelhos, e você, em função de sua grande necessidade de palavras, procurando sempre mais o silêncio, tudo se soma às grandes incoerências.
E o apresentam como um escritor premiado, veja só como se alegram, um mistério. Só você sabe o que valem hoje esses afetados diplomas, se é que alguma vez valeram. E agora esse grupo de estudantes prestes a plantar-se à porta, por isso Verônica aguarda que você se apronte, promete avisá-lo quando chegarem, mais gente quer ouvi-lo e também vê-lo, como se fora você algum espécime silvestre, só porque expressa pensamentos da maneira como os expressa, o que esperam disso tudo afinal? Você se cansou de generosidades e hipocrisias, cansou-se de ler sobre si mesmo em textos alheios, que o tratam e aos seus obstinados experimentos escritos como uma literatura de sensações, sem perder de vista a consistência e a racionalidade, que gentileza, se pudessem vê-lo agora, se apenas soubessem o quanto lhe é difícil viver entre os homens sem acreditar no que constroem e sem compartilhar de seus interesses, se pudessem vê-lo agora os que o consideram por seu amadurecimento em relação aos trabalhos anteriores, que entendem os homens de amadurecimento, de evolução, de progresso, que alguém o diga, pois você é, acima de tudo, um leitor entre muitos leitores, tão intrigado ante o vasto plasma esbranquiçado que compõe a noite galáctica como seu ignorante ancestral pré-histórico, machado de pedra em punho, antes que a ele chegasse também o dia, ficando-lhe uns ossos a contar-nos que por ali estivera e caminhara, ninguém sabe por quê, entre outros como ele, de melhor sorte talvez, que tendo a vida se realizado e desaparecido, nem mesmo ossos deixaram.
O fato é que os teóricos e os mestres e outros bípedes do gênero sempre inventaram teses e filosofias novas para renovar suas tardes de tédio, pois nem sempre a necessidade lhes pediu algo, isso até o dia em que uma ciência qualquer, com um experimento qualquer, acabasse provando cruelmente o contrário, dando assim outro golpe de misericórdia em tantas discussões pretensamente frutíferas, mas finalmente estéreis. Pois assim se dá que tantos de sua laia, entre bardos e escrevinhadores, cada um deles em seu tempo de vida, que fora desse tempo nada mais são, tanto os prosadores mortos do passado quanto os poetas mortos ainda por nascer, procuram sempre aborrecer uns aos outros com suas inflamadas ideias e seu autoritarismo permanente, a esperança fica por conta de alguma nova ciência que nos possa a todos redimir, como já se tem constatado com as proposições vencidas, quando em tantos casos o raciocínio chegou antes da imaginação. Enquanto isso e enquanto não, também você continua perdido entre tantas imbricações, é preciso que se detenha antes que estrague também o fim desta história, que no fundo é sempre a sua história, enquanto o tempo ainda se amontoa à sua volta, antes que retorne de onde magicamente saiu, e antes que você, como já dito, finalmente estrague tudo.
Quando você tenta contar a verdade sobre si mesmo, tudo acaba se transmudando em outro discurso fictício, talvez inevitavelmente. Você usa a primeira pessoa porque parece mais verossímil, mas tudo não passa de ilusão, mantida por técnicas narrativas, todas mentirosas por sinal, pois toda a verdade, não se pode dizê-la; e meias verdades são também meias mentiras, registre-se. No fundo, nunca saberão o que penso, eu não o permitirei. Não o direi a ninguém. E não se trata de um direito meu. Trata-se de um poder. Guardo-o como quero, e nenhum objeto é mais secreto. Guardo-o desde que percebi que podia pensar até a última hora de minha vida, quando tornarei a não me revelar. E mesmo que um dia mude de ideia, mesmo que pretenda dizê-lo, o que penso, ainda que isso faça crescer uma legião de suicidas, nada mais tenho do que palavras, uma língua, composições, e nunca saberei dizer o que de fato conta, e nunca saberão de verdade o que eu de fato disse, e era essa, essencialmente, justamente, principalmente, a única coisa pela qual teria valido a pena aprender a falar.
“No fundo tudo são brutais distorções do instinto de sobrevivência.” Certa vez considerei essa frase um achado, acabei seduzido, e decidi aperfeiçoá-la. “Tudo são facetas do mesmo instinto de sobrevivência.” “Toda arte, ciência e religião não passam de variações do instinto de preservação da espécie humana.” Usei brutais distorções em uma das versões (despreze-se a rima imediata), sutis distorções em outra. Assim por diante, que há sempre uma maneira e outra, sempre há aquela outra maneira e esta uma, assim sempre, eis aí a literatura. Concluí, portanto, que isso não teria fim. Que os filósofos e os pensadores que nos brindavam com pérolas perdidas nos almanaques teriam de se interromper à força naquele mesmo momento da escrita, do contrário, entenda-se, se continuassem, eles próprios acabariam por distorcer seus ditos, tenderiam a aperfeiçoá-los e a lapidá-los, como se dera comigo. Talvez acabassem discordando de si mesmos. Talvez enlouquecessem.
Todo artista compreende um dia, ainda que se deixe classificar como criativo ou mesmo que continue se fingindo inocente, que nunca foi senão o resultado da convergência de inúmeros outros que ele próprio elegeu. Vivemos entre os invisíveis limites de um mistério que se deixa entrever por espasmos, como cristais guardados só para alguns momentos, nas frestas de umas estranhas revelações que talvez se tenham dado a uns, e não a outros. E não a outros uns. E não a outros outros. Ninguém é culpado de não ser o escolhido (escolhido, mas que palavra…) e ninguém merece a inveja dos semelhantes por encarnar a representação de tal acidente. O acaso nos incomoda, por isso o negamos, mas você não pode ignorar o que só reconhece nos autorretratos como os de Rembrandt ou nos últimos acordes da Tocata e fuga de J. S. Bach. Era preciso compreender por que os primeiros instantes da Nona Sinfonia o transtornavam, também por que você se comovia tão profundamente ao deparar com o pequeno Hareton, dos Ventos Uivantes, sua infância solitária, sim, você quase o alcança, são impressões furtivas como a que passava aquela ilha mágica que tinha o poder de afastar-se conforme as naus se aproximavam, com isso nunca podendo ser abordada.
Como nada se perde na natureza e nem tudo se perde nos homens, continua sendo dos conflitos que nascem todas as coisas importantes, mas não seja covarde, mencione a fonte, isso é Heráclito, ou vão pensar que tudo são pensamentos seus – se bem que não parece tão difícil articular pensamentos desses. Mas algo se perde, e o que não faltam são mestres rabugentos espargindo suas experiências e sua humildade, agora mesmo estudando para vencer-me, cultivando-se para destruir-me, aperfeiçoando-se e unindo forças contra mim. Para defender-me, teria de justificar-me, o que não pretendo absolutamente, e teria de recriar todas as minhas mentiras, que já eram falsificações bem feitas quando tiveram sua hora e sua vez. Teria de reescrevê-las sob outro prisma e sob outra luz, porém hoje não conto com a menor vontade de dar trela a coisas assim, prefiro que assumam como bem entenderem sua postura de semeadores, seu repetido discurso de homens idealistas e admiráveis, seu coração generoso de pastores de rebanhos. Só eu sei o quanto são traiçoeiros os que sobem ao púlpito e ao palanque. São homens que não saberão crescer, porque ainda não souberam nascer. Só eu sei como me olham sinistros, sabendo que eu sei. Pois eu sei quem eles são. E eles sabem que eu sei disso. Só eu sei que onde há meigos pastores, há também secretos assassinos.
Pois acredite quem quiser, que isso não faz diferença, digo, que se acredite ou não, jamais pensei em ser erudito, acadêmico, semioticista, poliglota de palestras, teórico em literatura, mestre questionador, doutor especializado, ser de exceção, gênio linguista, poeta representativo, líder intelectual ou qualquer outra porcaria que o valha. Você falava agora mesmo em primeira pessoa, o que impede a coerência do foco narrativo, e isso faz parte da liberdade que ninguém te pode conceder a não ser tu mesmo. Se soubessem, se na verdade soubessem do que eu não queria ser, tenho certeza de que não tornariam a examinar-me os olhos e o rosto e o corpo de alto a baixo, como quando se depara com os sinais de um espécime desconhecido, como quando você próprio viu certa vez a máscara do faraó e o fêmur do braquiossauro – depois que se veem coisas dessas, nunca mais você e eu somos os mesmos.
“Eles estão aí”, diz Verônica como surgindo em meio a um sonho.
Você passa a mão pelo rosto de barba espinhenta, que se atrasou a apará-la, como muito se tem atrasado entre outras hesitações, resta-lhe apenas encarar seu rosto de frente, tendo-o refletido em outros, vamos, é apenas uma manhã de sua vida, embora tudo se tenha resumido aí, embora o tempo não vá se deter por causa de sua manhã, ou de sua noite, agora mesmo alguém acaba de nascer, alguém acaba de morrer, alguém acaba de se converter enquanto outro acaba de perceber que sempre foi enganado. Bem agora, o moribundo agoniza, o casal compartilha as delícias do sexo, o professor emudece ante a pergunta inquietante, alguém por acaso encontra seu caminho, o cidadão se descobre em estado de graça, a criança sofre sua primeira grande decepção, a fita termina, a orquestra silencia, o elenco se apresenta, o poema vem a lume, é declarada a guerra. Nem é preciso acreditar no que conto, continuarei contando assim mesmo. Faço o melhor que posso. Não tenho outras esperanças.
Você pensa que tem se exercitado, assim como os jovens musculosos precisam boxear ou correr, precisam criar conflitos para manter em boa forma seus instintos, até se transformarem em sombras do que uma vez foram e em guerreiros de pedra. Já deve estar chegando o tempo em que quase não compreenderemos mais o que há pouco parecia essencial, deve estar chegando, sei que deve estar chegando, já deve estar passando surdamente por sob nossos pés, como as lentas águas vistas da ponte adormecida, mesmo que eu continue sonhando que um objetivo maior há de encontrar-me ainda, mas é também possível que eu o tenha vivido e já tenha passado por ele sem ter notado, minha conhecida incompetência, minha dificuldade de ver, meus óculos, minha cegueira, as águas lentas, minha inocência triste, a ponte adormecida. Eu próprio considero minhas palavras asfixiadas, truncadas, sem saída, eu próprio, eu próprio, eu mesmo, calma, estou calmo, eu próprio não me expresso melhor do que os analfabetos quando pretendem escrever ou do que os desvalidos quando procuram falar. Eu próprio não sei falar.
“Eles estão aí”, repete Verônica.
Você passa a mão por sobre a boca, por sobre o queixo e uma das faces, faz a Verônica, que está à espera e à porta, mão na maçaneta, um gesto de que está pronto.
“Entrem, por favor.”
Ainda há pouco, minutos atrás, entre espasmos sonolentos e ligeiros calafrios, seu corpo tornava a virar-se sobre si mesmo, revolvendo todos os mortos da terra.
Referência:
POLEGATTO, Perce. A seta de Verena. 2. ed. Ribeirão Preto-SP, 2014. p. 7- 14. Disponível em: http://www.percepolegatto.com.br/2011/11/06/a-seta-de-verena-abertura-1/ – Este texto e o livro na íntegra.
Ilustração:
Pintura no deserto de Akakus ilustra uma figura humana segurando – ou tentando subir – em uma palmeira, possivelmente uma tamareira. Pintura nas pedras de Akakus contêm uma das maiores densidades de pinturas rupestres do mundo – Líbia. Disponível em: http://colunas.revistaepoca.globo.com/viajologia/tag/libia/
Leila, muito obrigado, eu me sinto grato e honrado por ter sido citado em seu blog. Grande abraço.
Perce…
A honra é do Chá.com Letras. Sou eu quem agradece pela oportunidade de proporcionar aos meus leitores o contato com esta sua grandiosa obra: A Seta de Verena, e com este escritor sensível e competente.
Abraço,
Leila