“Higesipo Brito” por Higesipo Brito (Cap. II)
AS MEMÓRIAS DE UM MENINO, DE UM RAPAZ, DE UM HOMEM
HIGESIPO BRITO
Narra-se aqui alguns fatos de preocupação e risco. O primeiro. Para uma finalidade da qual não se recorda, Higesipo e sua irmã Margarida foram na casa de Luzia. No São Miguel. Mais ou menos na metade da viagem – a pé – eles teriam de passar na casa da Joaninha, que ia com eles. Era uma época de entressafra. E por isso o gado da região encontrava-se solto para o aproveitamento das palhadas. Entre as casas de Joaninha e Luzia havia uma dessas palhadas pela qual os três pedestres haveriam de passar. Lá chegando, no meio de um desses rebanhos, um touro da raça zebu levantou logo a cabeça. Higesipo então falou para Margarida: – Não olhe para ele. E aí passaram sem problemas. Chegados que foram na casa da Luzia, ela perguntou-lhes: – Vocês viram um gado lá na palhada? – Vimos. Responderam. A Luzia então lhes disse: – Olhem, gente…Vocês foram de sorte. Naquele gado tem um touro zebu que está correndo até cavaleiro. Informados do risco pelo qual passamos na ida, quando de volta, ao chegarmos na palhada, um boi preto berrou e veio correndo do outro lado, e nós passamos a correr, morrendo de medo. Já próximo à casa da Joaninha, entramos num brejo. Atola aqui, arranca um pé ali, conseguimos, assim – sem notícia do paradeiro do boi preto – chegarmos sãos e salvos à casa da Joaninha.
Um outro acontecimento, também com boi, ocorreu numa tarde de céu limpo. Deslumbrante! Higesipo e Amantino, montados – em pelo – na Mimosa, levando-a para o pasto do São Miguel. Ao passarmos pela encruzilhada da cachoeira, deparamos com um gado leiteiro, e junto, na condição comando, o touro chumbadinho de cara branca que, ao nos ver, levantou a cabeça. Mas como estávamos montados na égua, não teve problema. Por esse motivo, ao voltarmos, resolvemos passar pelo caminho da cachoeira, dando assim uma volta de aproximadamente seis quilômetros, no intuito de nos livrarmos do boi. Aconteceu porém que, chegada a hora de separar os bezerros, o retireiro, ao fazê-lo, soltou o gado no pasto da cachoeira, quando chegamos no Altinho da Cachoeira. Já quase chegando em casa, a mais ou menos uns duzentos metros, deparamos com o gado. Íamos conversando. O boi, ouvindo a nossa voz, balançou a cabeça, bateu as orelhas, e partiu ao nosso encontro. À nossa direita, havia um rastão que dava em um mato. Era por onde tinha sido puxada uma madeira. Corremos para o mato e lá subimos numa árvore. Morrendo de medo. Aguardamos algum tempo… O necessário para que o boi chegasse. Como ele não chegou, nós atravessamos o mato – uma pequena distância – e saímos na estrada por onde havíamos passado na ida, já quase na entrada do lugarejo, quando ouvimos o tropel do boi. O bandido. A fera. Havia já, em poucos minutos, percorrido o trajeto. E com porteiras em toda a volta que havíamos dado. Corremos. Entramos numa vendinha. Momento em que o boi meteu a cabeça na porteira que havíamos deixado fechada, entrando no lugarejo bufando. O comerciante foi taxativo:– Vocês escaparam por um milagre.
Um outro fato, que pode ser considerado um “festival de cobras”, ocorreu quando numa bela tarde de um calor insuportável, Higesipo e seus irmãos José e Amantino, aproveitando a ausência do pai, que se encontrava viajando, foram nadar no Poço da Cachoeira. Um remanso no rio Pirapetinga. Situado a mais ou menos 1.500 metros do lugarejo. Em um determinado ponto do caminho, havia dois lagos que, em virtude de uma prolongada seca, estavam secando. Os peixes existentes, em grande número, saltavam incessantemente devido ao forte calor da água. Motivo pelo qual as cobras – de várias espécies – existentes na redondeza, corriam, num sem número, formando uma grande esteira móvel por sobre o trilho, em direção aos lagos que já se encontravam cheios delas, fazendo um barulho achicotado de enorme proporção. Descalços, sem podermos caminhar, paramos, enquanto as cobras passavam por sobre os nossos pés, durante alguns instantes. Cessada que foi a medonha passagem dos répteis, e satisfeita a intenção de nadar, voltamos para casa sem poder relatar a caótica situação pela qual passamos. O pai era com os filhos demasiadamente exigente. Extremamente exigente. E por isso, boca calada. Ninguém ficou sabendo.
Niños a caballo
Recorda-se, ainda, de um quarto acontecimento envolvendo, de certo modo, a vida de Higesipo. Foi quando montado no pelo da Rolinha, atracado na sua crina, no final de uma descida forte, quando o animal dispara os passos, o pequeno cavaleiro deslizou para o pescoço do animal e caiu batendo fortemente com a cabeça de encontro ao chão. Apanhado e levado pra casa, permaneceu pelo tempo de duas horas desacordado, completamente sem sentidos.
Outro fato que ficou marcado: Higesipo, José e Amantino iam assistir a um jubileu em Congonhas do Campo, e de véspera foram pegar os animais. Até Lafaiete iam a cavalo. Ao passarem à frente de um casebre onde morava determinada família, dois filhos da moradora – viúva – os acompanharam, dirigindo-lhes uma série de gracejos inconvenientes, para os quais os seguidos não davam a mínima atenção. Inconformados os três avançaram: o mais velho contra José e o mais novo contra Higesipo e Amantino. Neste momento, passávamos defronte à casa de uma tia dos agressores – de má fama. José tinha dominado seu agressor, mas sentindo a aproximação da mulher e necessitando precaver-se dela, saiu de cima de seu agressor, e começou a relatar o motivo da briga. Momento em que seu agressor apanhou o cabresto, que se encontrava no chão, e desferiu uma forte pancada com sua pesada argola na cabeça de José. Ferindo-a. Ao chegarmos em casa, papai, ao ver a cabeça de José com um grande ferimento sobre a testa, perguntou-lhe sobre o motivo do ferimento. Tenho José relatado o tal acontecimento, dada a gravidade do fato, no dia seguinte, Secundo foi à delegacia falar com o delegado, aliás, subdelegado de polícia, registrando uma queixa contra os agressores. Momento em que a referida autoridade mandou chamar os agressores, tendo a mãe dos mesmos ido junto e, com o intuito de justificar a agressão, mentiu dizendo que Higesipo havia desrespeitado-a moralmente. O pai de Higesipo. Pessoa moralmente rigorosa. Chegou em casa. Higesipo, inocente, perguntou-lhe como havia ficado resolvido o assunto. Ele respondeu-lhe: – Eu te falo já. Chamou em particular a esposa. Expôs-lhe o acontecido na reunião. E em seguida, morrendo de raiva, e com um chicote de sola grossa com quatro tiras, começou a surrar impiedosamente o filho. A mãe, ao ver tamanha brutalidade, arrebatou o filho das mãos do pai. As nádegas e as pernas do menino encontravam-se totalmente encalombadas. Motivo pelo qual foi ele colocado em banho de água salgada.
Aos meus filhos e demais pessoas que, porventura, lerem a história da minha vida, que não tomem o meu pai como uma pessoa de má fé. Recordo-me que estando eu acamado, de repouso absoluto, sob um processo de sarampo – eu não tinha brinquedos – ele levou-me um punhado de moedas para que eu na cama brincasse. Prova de que ele era uma pessoa muito boa. Carinhosa. Apenas nervosa.
HIGESIPO BRITO
Rio Acima, SET 1995.
A narrativa do autor prossegue em próxima postagem.
Referência:
BRITO, Higesipo Augusto de. As memórias de um menino, de um rapaz, de um homem [Rio Acima, set. 1995. 17 f. Mimeografado]. Chá.com Letras, ago./set./out., 2013.
Revisão, pesquisa de imagens e edição:
Leila Brito
Ilustração:
1 – Boiada – Tela de Pineda – 2002. Disponível em:
<http://academiapml.blogspot.com.br/2009/07/woodstock-for-ever.html>.
2 – Niños a caballo – Tela de Horacio Espondaburu – século XIX. Disponível em: <http://catalisecritica.wordpress.com/2011/06/17/meninos-a-cavalo-horacio-espondaburu/>.
Com a boiada Eugênio Brito se entende também!! Rsrsrs
E como, Aninha!
Herança de pai pra filho. rs
beijo…