Rito post mortem
RÉQUIEM PARA EDILSON
(Dedicado a Edilson Alves de Brito)
LEILA BRITO
Hoje, 18 de março de 2012 (09:37), impossibilitada de estar presente aos seus últimos momentos entre nós, junto com sua adorável companheira de uma vida inteira – Milena, e seus amados filhos, netos, irmãos, sobrinhos, genros, noras, sua querida Tia Osmira e seus primos, expresso toda a minha tristeza pela sua intempestiva e prematura partida deste mundo que você soube transformar num expansivo arco-íris, não apenas para seus entes queridos, como também para os muitos cidadãos itabirenses premiados com seu trabalho de cunho social. Portanto, o que fica de você Edilson, na vivência da sua maturidade, é o exemplo de uma rara sensibilidade que transcendeu objetivos pessoais para alcançar objetivos sociais.
Sem dúvida, tem-se, neste trabalho doador do político íntegro, a expressão da mesma sensibilidade que, na vivência da infância, fez de você um menino de sentidos tão aguçados que, aos olhos dos adultos, ameaçava desequilibrar a ordem vigente. E desequilibrava. Guiado por incontrolável desejo de revolucionar a injustiça de uma realidade educacional inquisitora, você desafiava os conceitos e preconceitos que os adultos tentavam impor-lhe, revelando, desde a mais tenra idade, a sua capacidade de antever o futuro, antenando-se com o que ainda estava por vir, pois antecipando-se no plano das ideias aparentemente loucas, e das ações aparentemente ainda mais loucas. Na verdade, ideias e ações simplesmente revolucionárias, ditadas por uma inteligência ímpar que, na idade adulta, forjou um perfil pessoal dotado de raro carisma, intensa energia e forte capacidade de ação.
A mesma energia e força capazes de provocar eventos aparentemente impossíveis, como o episódio presenciado por mim e alguns de meus irmãos em nossa casa, quando você, por volta dos treze/quatorze anos, desafiou o demônio a descer à terra e mostrar sua força, elevando uma foice no ar e em seguida baixando-a e raspando-a violentamente no cimento, enquanto invocava a besta-fera com um chamado aterrador, pois provocador de um inusitado raio que, num estrondo, desceu pelo espaço e cortou a cidade de ponta a ponta, fazendo o maior estrago. Surgido não sabemos de onde, pois o tempo estava ensolarado, o fato é que o diabo, transvestido em raio, além de danificar a subestação do Mingú e deixar Rio Acima no escuro, passou por debaixo das pernas da Comadre sua mãe, que estava estendendo roupas no varal, quase levando-a à morte – assim ela contou. Passado o susto, lembro-me de ter tido um pesadelo com o demônio, e de ficar com muito medo de você por causa da sua intimidade com ele, com quem dizia ter papos frequentes. Bastava chamá-lo e ele aparecia na beirada da sua cama durante a noite.
E surgiram também dessa poderosa energia revolucionadora de conceitos, as ações do estudante transgressor da rígida disciplina vigente no Ginásio Américo Renné Giannetti, ditada pela autoridade máxima do disciplinador Jair Marçal – expedicionário da Segunda Guerra Mundial, e pautada no rigor militar das filas milimetricamente alinhadas de alunos por turma, de orações feitas em retumbante voz uníssona e de um silêncio mortal durante a marcha até a sala de aula, onde deveria ser mantido. Desde o introduzir besouros na parte de trás das blusas das meninas para causar distúrbios no ritual comandado pelo disciplinador, passando pelo ato de fazer xixi nas plantas aquáticas alvo de experiências dos alunos do curso primário, para depois de um tempo desafiar a servente D. Adelaide a cheirá-las para provar que tinham apodrecido, e se deleitar com seu ataque de vômito, ao emparelhar-se com o professor de Música Tigesipo, fingindo ir até o quadro negro para perguntar algo sobre a pauta em discussão, só para provar ao primo Britinho que já estava mais alto que o pai dele, provocando risinhos nos colegas. E isto, sem deixar de mencionar as ofensivas adaptações de letras de marchas patrióticas, cantadas bem alto pelas ruas na saída das aulas, quando passava das dez da noite, tendo você por maestro da turma transgressora, sendo esta a marcha preferida: “Sonhei com a imagem tua, / mijei na cama e caguei na rua. / A bosta endureceu, / passou o carro e furou o pneu. / Levaram pra prefeitura, / examinaram, era bosta pura. / Prenderam-me em um xadrez, / por desaforo eu caguei outra vez”. E também as homéricas brigas com o primo Murilo, que dividiam os alunos em dois grupos: a turma do Edilson e a turma do Murilo, confrontos que costumavam findar na porta da casa da sua Tia Isabel que, entrando na peleja para defender o filho, inflamava ainda mais a turba.
Tanta disposição para cometer atos e liderar movimentos transgressores da ordem vigente não apenas o premiou com a fama de insubordinado como o castigou com as suas consequências nem sempre justas, mas que, quando injustas, você tirava de letra em retaliações vingativas ousadas e corajosas. Um bom exemplo é a derrubada do muro do lote do Agenor feita na calada da noite, depois de construído pelo Seu João Manco, que o acusou de ser o autor do crime. Depois de apanhar uma surra homérica do Tio João, para provar a inocência jurada enquanto o cinto açoitava seu corpo, você esperou o delator reconstruir o muro e o derrubou na frente dele, desafiando-o: “Agora, sim, vai lá e conta ao meu pai que eu derrubei o muro”. Dando-se por vencido, o constrangido pedreiro o construiu pela terceira vez.
Meu querido primo e amigo, são tantas as histórias que compõem sua memória de criança e adolescente, são tantos os fatos que se misturam à minha memória e a de nossos pais e irmãos, que neste instante em que você nos deixa para sempre [13:00], emocionalmente integrada à comovente cerimônia de despedida desse ser humano único que você se fez, que ora acontece na sua adorada Itabirito, eu me comovo às lágrimas ao expressar-lhe a minha gratidão pelas pegadas de sua singularidade e sensibilidade nas estradas de nossas vidas.
E o que se torna perceptível neste doloroso momento, amado Edilson, é a comprovação da consagrada filosofia do personagem Riobaldo de Guimarães Rosa, em “Grande sertão: veredas”: Só as pessoas não morrem; tornam a ficar encantadas.
LEILA BRITO
Belo Horizonte, 18 MAR 2012.
Referência:
BRITO, Leila. Réquiem para Edilson. Chá.com Letras. 18 mar. 2012. Disponível em: www.chacomletras.com.br . Acesso em: dia (18) mês (mar.) ano (2012).
Ilustração:
Foto do arquivo pessoal de João Alves de Brito. Data provável: 1949.
Obs.: Edilson é o segundo menino à esquerda (usando suspensórios), na primeira fileira de crianças. Ao seu lado vê-se Matilde, tendo à sua direita Joãozinho, e ao lado dele a Marilda. Atrás do Joãozinho vê-se a Maria Augusta (Lia), e mais atrás sua irmã Aparecida ao lado de sua mãe Maria, que carrega nos braços a então caçula Rivalina (Lilica). Mais atrás, à esquerda, seu pai João de Brito (irmão de minha mãe).
Estou aqui em lágrimas. Edilson, nosso primo tão querido, tão amado pelos nossos pais, que cresceu, e como cresceu, tornando-se pai de família exemplar e cidadão de bem, com importante participação em ações sociais em prol de sua querida Itabirito.
Lindo texto, Leila.
Abraços,
Clarinha.
Clarinha…
Eis a danada da morte aprontando uma surpresa desagradável.
Quem diria que o nosso encontro com Edilson no enterro da nossa Mãe era uma despedida. Nem o mais visionário dos mortais imaginaria isto.
Lembro-me dele muiíssimo emocionado, por amar a nossa Mãe como se filho dela fosse.
Compartilho a sua dor e tento mensurar o tanto que ela está a doer no peito da Milena, do Edimilson, da Adriene e da outra filha, ainda sangrando pela morte do Emiliano.
Triste demais!
beijo…
Tia Leila, você se superou; seja pela inspiração de um amigo/primo que se foi, ou pela competência inerente a sua pessoa, este texto/despedida tem que ser guardado em nossas memórias para sempre, como prova de que o amor pelo próximo nos inspira e renova nossas emoções.
Parabéns !!!
Rodolfo Brito Moura
Obrigada pelo carinho, Rodolfo.
A tristeza é grande, mas realmente inspiradora.
Mas na verdade, o que interferiu mais na criação foi a singularidade do personagem.
Edilson era uma pessoa muito especial e inspiradora, sob todas os ângulos que se analisar seu comportamento.
Uma grande perda, sem dúvida.
Ele estava muito comovido no enterro de Mãe (a quem ele amava como um filho), e a gente jamais suspeitaria que aquela foi, na verdade, a despedida dele de todos nós.
beijo,
Tia Leila
Escrevestes com a alma, lindo texto. Com certeza foi um homem que marcou a história. Eu desde criança ouvi história deste primo que se destacou na família Brito.
Beijos!!!
Cláudia Brito
Oi Leila, que lindas palavras. Me emocionei muito, principalmente quando li trechos que referem-se às travessuras de meu amado tio Edilson, contada também por meus tios e minha mãe Maria Rivalina (Lilica). Tenho orgulho de fazer parte de uma família tão bonita e de tanto amor. Como alguns personagens da Família Brito, você tem o dom de escrever. Abraço,
Liziane Brito de Deus
Querida Cláudia…
É gratificante ter a sua presença no Chá.com Letras, especialmente neste post gerado na saudade que a memória cuida de eternizar em realidade imortal.
Abraço…
Doce Liziane…
Que alegria ler seu comentário! Tê-la aqui no Chá.com Letras compartilhando o sentimento de amor fraternal que nos une nos momentos de dor.
Uma surpresa muito feliz, acredite. Isto porque você me traz de volta gratas lembranças de sua mãe, com quem convivi na minha infância.
Que bom que as novas gerações vão se desdobrando em vida, num ato de renovação da esperança e da alegria de viver.
Abraço saudoso pra Lilica.
Um beijo pra você.
Leila
Obrigada pelo carinho Leila. Pode deixar que darei o abraço em minha mãe. Ela conta muitas histórias vividas em Rio Acima, até me emociono. É um grande prazer pra mim participar deste site tão bonito e com belas palavras ditas por você. Grande Abraço e um abraço em todos aí.
Liziane.
Leila,
fiquei super emocionada ao ler este texto.
Meu pai deixou muitas histórias, quem teve a oportunidade de conhecê-lo sabe que ele era uma pessoa de coração bom, íntegro e um homem cheio de ideais. Quando voltar a Rio Acima, sempre vou lembrar dele e das diversas histórias que Tia Maria me contava. Quem não lembra dele mergulhando no rio com Britinho, e fingia que tinha morrido e Vovó Maria ficava desesperada; do episódio do muro e muitas outras histórias. Foi um pai maravilhoso, e só faltava dar aos seus filhos o coração dele. Nos ensinou a vencer os obstáculos. Pra mim, meu pai será sempre meu Herói!!! Tenho muito orgulho de ser filha deste grande homem, e ainda mais de ser Brito.
Tenho certeza que um dia vamos nos encontrar novamente. Hoje ele está ao lado de seu filho Emiliano e estará olhando por todos nós.
Muito obrigada pelo carinho, amor e amizade!!!
E agora vejo que a Familia Brito tem o dom de escrever, pois meu pai herdou esse dom de expressar os sentimentos em belas e maravilhosas poesias.
Adriene
Adriene…
Inequivocadamente, o seu Herói é IMORTAL.
beijo,
Leila