Crônicas de Viagem (II)
De Belo Horizonte a Lisboa: no aeroporto sob esdrúxula escolta
LEILA BRITO
Sete horas da manhã e, repentinamente, o infinito azul do mar é invadido pela terra em estonteante aproximação da orla que circunda Lisboa, traçando as linhas do continente europeu até onde minha vista alcança, enquanto a paisagem cresce sob meus pés de águia em queda livre. Com seus alvos condomínios residenciais se destacando na paisagem urbana, rapidamente, a cidade me engole em repousante e suave aterrissagem.
O tom poético finda aqui, pois é substituído pelo desconforto que sinto ao caminhar na congestionada fila que segue pelo estreito corredor até o pequeno box que dá para a escada, carregando minha incômoda e pesada bagagem de mão que inclui trevesseiro, bolsa, frasqueira e notebook. Sensibilizado, o passageiro de trás oferece ajuda, carregando meu computador escada abaixo, até os últimos degraus onde ouço uma voz feminina, em brusco sotaque português, a chamar-me pelo nome em tom interrogativo: “Senhora Leila?” Ao levantar a cabeça, dou de cara com uma mulher morena aparentando trinta anos, esguia e carrancuda, acompanhada de duas raparigas e um mancebo, certamente colegas de trabalho, pois trajando o mesmo uniforme a la bandeirante e escoteiro.
Ainda sob o efeito estonteante da pressurização, antes que eu entenda o que está acontecendo, ela interroga-me abrupta e autoritária: “Onde está sua cadeira de rodas?” Atônita com a descabida pergunta, toco o solo português no imenso pátio de manobra, ainda sem entender a situação, quando um flash de memória leva-me de volta ao aeroporto de Confins e ao balcão da TAP, quando a gentil funcionária brasileira que fez meu chek-in, após destacar um funcionário da empresa para carregar a minha bagagem de mão até eu me acomodar no avião, avisa-me que irá se comunicar com a TAP em Lisboa, para dar-me a mesma atenção assim que eu lá desembarcasse, em razão da minha condição de deficiente físico.
“Ah!”, digo-lhe emergindo do insigth: “Então você é a funcionária da TAP que veio ajudar-me! Olha, eu não uso cadeira de rodas para me locomover, porque minha limitação física é parcial. Só preciso que você me ajude a carregar a minha pesada e volumosa bagagem de mão até o portão de embarque do voo das nove e quarenta e cinco para Barcelona”. Num tom de voz ainda mais agressivo, ela me pergunta: “A senhora pagou o valor dessa taxa especial na passagem?”. Ao que respondo: “Não! Porque, no Brasil, esse tipo de atenção dispensa pagamento, por se tratar de um direito garantido pela lei de proteção ao deficiente físico”. E ante o meu gesto de entregar-lhe meu notebook e minha frasqueira, para meu espanto, ela se afasta de mim como de um doente contagioso, dizendo-me, no seu agora agressivo sotaque português: “Somos funcionários do aeroporto e a lei nos proibe de tocar em bagagem de passageiro. A senhora é quem vai carregar sua bagagem. Nós apenas vamos acompanhá-la até o portão de embarque da sua conexão”.
Sem dar-me tempo para reagir, com autoridade de polícia, ela segue em direção ao ônibus à disposição dos passageiros do meu voo acompanhada dos outros três agentes aeroportuários. Enquanto isso, curvo-me para pegar a bagagem no chão, ando alguns passos e com extrema dificuldade subo no ônibus, onde me instalo de pé com a frasqueira entre as pernas, segurando-me na barra vertical disponível, que transformo em apoio para o corpo, já que os poucos bancos estão ocupados. Eu ainda não sabia, mas começava ali a minha via sacra pelo aeroporto de Lisboa.
Na primeira parada do ônibus, ao ver todos os passageiros descendo, sigo-os, perdendo de vista meus indesejáveis acompanhantes. Atordoada, adentro a segunda estação da via sacra, caminhando vergada sob o peso da bagagem e de dores lancinantes. Mais uns passos, e paro para identificar aquele lugar tumultuado por imensas filas formadas em frente a diminutos guichês. Percebo, então, que estou no temido setor de imigração. É tal o impacto do susto, que me esqueço dos tais acompanhantes. A espera é breve, pois ponho-me à frente, depois de solicitar e obter a ajuda do primeiro estrangeiro da primeira fila. Com a bagagem no chão e apoiada em minhas pernas, apresento o passaporte, o seguro-saúde, os cartões de crédito, a matrícula no curso na Universitat de Barcelona e, antes que eu termine, a funcionária solicita a reserva do hotel, ao que eu respondo com a entrega do comprovante de locação da habitación enviado pela minha afintrioa, e dispensa, por medida de segurança, a apresentação dos euros, mas depois de visualizar o maço de notas dentro da minha bolsa.
São breves instantes de absoluta concentração para transmitir confiabilidade e não perder nenhum documento até guardá-los dentro da bolsa junto com o passaporte carimbado. Vencido o grande desafio, considerando-se o conturbado momento vivido pelos brasileiros com o abuso de repatriamento no aeroporto de Madrid, sinto-me aliviada e feliz. Porém, basta eu ver meus quatro aviltosos acompanhantes aguardando-me perto da esteira do Raio X, para me angustiar. Lá estão eles firmes no propósito de impor-me a vexatória escolta. “O que as pessoas estão pensando? Que sou uma criminosa?” Pergunto-me enquanto retiro relógio, pulseira, anéis, brincos e o cinto de couro com metal e os coloco na bandeja, antes de ser irremediavelmente revistada pelos seguranças por causa das abotoaduras de metal fixadas no barrado das pernas de minha calça comprida. Experimento uma preocupante expectativa até sair do outro lado e pegar minha bagagem e objetos pessoais na esteira, e dar de cara com os quatro aeroportuários brincando de agentes federais portugueses.
Conformada, parto para a terceira estação da via sacra, com a agente-chefe seguindo altiva e silenciosa ao meu lado e seus três mudos subordinados ombreados atrás de mim. Ao senti-los firmes e insensíveis ao meu calvário pelo largo e interminável corredor que se abriu à nossa vista, percebo que minha revolta pela agressão moral em curso se transformara em indignação, pois minha vontade é parar, colocar a bagagem no chão, expulsá-los dali aos gritos, e seguir sozinha o percurso até o portão de embarque para Barcelona. Mas impedida pelo medo de ser repatriada por “desrespeito às leis aeroportuárias portuguesas”, por mais desumanas que sejam em relação às leis brasileiras, o máximo que faço é parar a cada dois minutos de caminhada, colocar a bagagem no chão, respirar fundo e fazer exercícios de alongamento dos braços, e deixá-los estacionados me aguardando feito bobos até curvar-me, erguer a bagagem com dificuldade e seguir cambaleante, pois minhas pernas protestam contra a insensibilidade daquelas covardes “autoridades”, incapazes, sequer, de ceder-me um carrinho de bagagem para aliviar meu sofrimento.
Ao longo desse extenso corredor, vivencio a quarta e quinta estação da via sacra até vizualizar a próxima e a mais cruel das provas: o suplício da escada rolante. E agora? Como subir na escada carregando a bagagem sem cair e machucar-me gravemente, por falta de apoio no corrimão? Enquanto me aproximo tropegamente, já no limite da resistência física, concluo ser impossível sobreviver ao suplício. É então que, determinada a me insurgir contra a autoridade dominante, paro em frente à escada e comunico-lhe minha decisão: “Se eu subir carregando minha bagagem sem me apoiar no corrimão, vou me desequilibrar, cair e me ferir nos degraus em movimento. Por isso, vocês terão que transportá-la até o final da escada”. Assaltada por milagroso lapso de raciocínio, mas mantendo-se impositiva no cumprimento da lei aeroportuária, a agente-chefe se dispõe a cuidar tão somente da frasqueira.
Confortada com o que pensei tratar-se de um parcial e tardio gesto de sensibilidade humana, deixo a frasqueira no chão e adentro a escada rolante segurando o notebook e o travesseiro com a mão esquerda, e mantendo a bolsa pendente no ombro, com a mão direita me apoio no corrimão. Quando olho para trás, assisto a uma cena inacreditavelmente estapafúrdia. Vejo a agente-chefe pegar a alça da minha frasqueira com as pontinhas dos dedos de uma só mão, como se ela estivesse suja de fezes, e praticamente jogá-la no primeiro degrau da escada, e subir logo atrás, de mãos vazias, seguida por seus pares. Quando saio da escada e olho para trás, novamente a vejo pegar na alça da minha frasqueira com as mesmas pontinhas de dedo, e lançá-la ao chão, para eu me abaixar e pegá-la com a mão direita que acabara de deixar o corrimão.
Atônita com tamanha estupidez e maldade, sentindo dores lancinantes, caminho para a sétima e última estação daquela via sacra “portuguesa com certeza”, enquanto minha indignação alcança o limite máximo da intolerância à agressão física e moral sofrida. Mal consigo conter-me até cruzar a linha de chegada do portão de embarque do voo para Barcelona, quando a agente-chefe, num gesto de hipócrita sensibilidade, indica-me a direção dos bancos para eu sentar e, enfim, descansar. Contendo a ira que me corrói por dentro, lanço-lhe um olhar enfurecido, e me dirijo ao balcão onde ponho minha bagagem e me apoio, pois mantendo-me de pé, dou as costas para os quatro, a quem não mais desejo ver nem mesmo pelas costas.
Enquanto aguardo a conexão, concluo que acabo de adentrar o terceiro mundo, e preparo-me para mais provações.
Referência:
BRITO, Leila. De Belo Horizonte a Lisboa – no aeroporto sob esdrúxula escolta. Chá.com Letras, 8 dez. 2011. Disponível em: www.chacomletras.com.br . Acesso em: dia (8) mês (dez.) ano (2011).
Ilustração:
Foto/vídeo do Comandante António Escarduça da TAP, vindo do Rio de Janeiro.
Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=eQgH1GvS6Eg>
Inacreditável!
E ainda há os que chamam os lusos de nossos “irmãos”.
Ricardo…
A palavra é esta: INACREDITÁVEL! Mas foi exatamente isto que aconteceu. Naqueles momentos de total perturbação pela natural reação às quase 10 horas de viagem sob pressurização, nem pensei em recorrer à TAP. Mas penso que seria inútil. Até hoje me pergunto o que esse pessoal que fez essa maldade comigo tem na cabeça. Só pode ser titica de galinha, né mesmo?
Abraços…
É dessa forma que agradecem todo as riquezas daqui retiradas, e tão mal aproveitadas. Como Carlota Joaquina fez ao sair daqui, se algum dia tiver que pisar lá, baterei os sapatos para de lá não levar nem a poeira.
Tenho muita vontade de conhecer Portugal,mas esta “recepção”em nada me agrada.Sempre achei europeus preconceituosos e pensava que os portugueses fossem mais afetuosos,devido a grande colonia portuguesa que no Brasil reside.
Josué, o que se vê, por toda a Europa, é um esplendor cultural criado e construído às custas da exploração das riquezas dos povos sul-americanos e do trabalho escravo do povo africano, tratado como animais. Em Portugal, especificamente, totalmente às nossas custas. Portanto, não vejo méritos nesse acervo cultural, do qual os povos europeus deveriam se envergonhar.
E esteja certo, que a soberba de Carlota Joaquina sobrevive em Portugal. E otras cositas más que os imperadores portugueses deixaram de herança comportamental para seu povo.
Moacir…
Seu conceito dos europeus é realista. Nem é preciso voltar as páginas da História para constatar o complexo de superioridade do europeu. Basta atentar para os acontecimentos políticos presentes. Em se tratando de evolução humana, eles não têm do que se orgulhar e, muito menos, o que ensinar à Humanidade. Pelo contrário, têm muito do que se envergonhar e aprender com os povos classificados por eles como Terceiro Mundo, cuja condição de extrema pobreza é fruto da colonização ainda vigente. Uma coisa é certa, acredite: o Primeiro Mundo é aqui.
Leila, prá mim está havendo uma confusão de Europa com Portugal. Ora, eles nunca foram europeus, apesar da localização, sempre foram 3º mundo. Quando perderam as colônias, inclusive as africanas, mostraram que só sabiam viver da exploração. O que aconteceu com você (prá mim é bem claro) é o COMPLEXO DE INFERIORIDADE que merecidamente eles têm. E ainda pegar uma BRASILEIRA, ,justamente, quando o nosso país foi colocado no mapa. Um país que está conseguindo passar, brilhantemente, pela crise mundial!
Doeu! kkkkkkkkkkkkkkk
Sua análise faz sentido Ana Tereza, até porque, neste novo processo de crise mundial, que faliu a Europa, Portugal foi o primeiro país, salvo engano, a se ver em derrocada econômica irreversível. Está falido. Financeiramente acabado.
E tem também o fato de que Portugal jamais teve afinidade com os outros povos europeus, inclusive, no próprio comportamento em relação aos povos que colonizou. Um exemplo? Enquanto os conquistadores ingleses JAMAIS se envolveram fisicamente com as africanas (mantendo a purificação de sua raça), os portugueses sempre agiram de forma contrária. E foi tal comportamento o responsável pela miscigenação da raça brasileira. Aqui chegando, eles não perdoaram nem as índias, quanto menos as africanas. Os holandeses jamais tiveram esse comportamento quando por aqui andaram lutando para se impor sobre Portugal.
Abraços…
Leila, os portugueses interpretam tudo ao pé da letra. Se a ordem que eles receberam foram de acompanhá-la, foi exatamente o que eles fizeram. A mente é tacanha, e não vai aqui nada depreciativo. Já estive em Lisboa duas vezes e eles são assim.
Abraços,
Indignada!!!
Leila, como você conseguiu passar por tudo isso? Bem você faria agora se enviasse essa crônica de viagem para a TAP. Mesmo que eles não tomem providência alguma, precisam saber da sua indignação. Lastimável o comportamento desses portugueses idiotas e insensíveis. Estou revoltada. Nossa, fiquei triste também!
Marise, você tem razão. Mas a ordem era ajudar-me em razão de deficiência física, e a agente-chefe o teria feito se eu tivesse pago pela atenção especial. Aí eles poderiam tocar em minha bagagem? Contráditório, né mesmo? Por isso, foi muita maldade. Se fossem sensíveis, teriam me arranjado um carrinho de mão para eu levar minha bagagem. Não há nada que justifique o comportamento deles a não ser INSENSIBILIDADE HUMANA.
Abraço…
Clarinha…
Não foi fácil, posso garantir. Inda mais na chegada. Espera que tem mais causos dessa natureza na próxima crônica.
Esses fatos apenas revelam o abismo cultural existente entre os europeus e os latinos, que eles, indiscutivelmente, tratam com um desprezo preconceituoso inegável.
Mas felizmente, a viagem foi cercada de coisas positivas, que fizeram valer o investimento.
O que se tem de fazer, e este é o motivo que levou-me a criar esse projeto literário, é estar muito atento a tudo e a todos nas incursões pela Europa e Estados Unidos. Realmente, a gente fica o tempo todo em sutil perigo.
Daí que, quando chegar sua vez, fica ligada; ligadíssima.
beijos…
Querida guerreira, cidadã brasileira, Leila Brito.
O Brasil é hospitaleiro assim como o seu povo, o mesmo não acontece com o povo português que na sua maioria é arrogante e soberbo tendo os brasileiros como seus subordinados achando… que D.Pedro de Portugal salvou o Brasil!!!
Chegou o momento querida mestra, de ministrar nestes portugueses arrogantes, e nada gentis, algumas aulas de história e filosofia, explicando o que D. Pedro de Portugal fez para o Brasil entrar na dependência econômica, ficando nas mãos do banqueiro Rothchild.
Grande Abraço,
Marilda Oliveira -SP
Querida, sinto muitíssimo que vc tenha tido esta experiência que insulta, mas, ao mesmo tempo, expõe a cultura de um país… que bom que vc usou a oportunidade de demonstrar avanços aos direitos humanos… Fiquei triste por vc, mas ao mesmo tempo contente que vc tenha expressado sua raiva, frustração e dor através desta crônica e nos alertado pras diferenças culturais entre estes 2 paises. Desejo melhores experiências internacionais pra vc, querida!
Obrigada Marilda, por suas belas palavras.
Também a você, Cleo.
Mas olha, gente, a despeito desses contratempos, experiências pesadas, essa viagem foi maravilhosa! É claro que em tudo vamos encontrar pontos negativos, mas no todo, foi super positivo, e eu fui feliz nesses 45 dias passados na Espanha, com as escapadas para a França (Paris) e Itália. Em Paris, então, foi tudo MA-RA-VI-LHO-SO! Na Itália, também, mas muito corrido (visitei 5 cidades em apenas 5 dias). Em Barcelona, como fiquei mais tempo lá, vivendo um cotidiano altamente enriquecedor, experenciei mais situações desafiadoras, que relatarei nas crônicas seguintes. Mas no todo, foi uma maravilhosa experiência internacional! Riquíssima no aprendizado cultural, mesmo nesse aí do Aeroporto de Lisboa que, cá pra nós, tem a ver com a mentalidade tacanha do povo português. Por isso, o que posso atestar é que os pontos críticos dessas viagens são os aeroportos e estações ferroviárias. São os mais extressante em todas as viagens internacionais, certo Cleo? Valeu, amigas!