Homenagem ao Amigo Escritor e Poeta Max Portes
HOMENAGEM AO AMIGO ESCRITOR E POETA
MAX PORTES
(Caratinga, 14.10.1944 – Caratinga, 06.01.2014)
ELEGIA A NÓS MESMOS
MAX PORTES
a começar por nós
somos os outros
porque não vamos mais e além e depois
de nós mesmos –
nos deixamos plantados em esperas
pois havemos de voltar cedo ou tarde
quando seguir
é o inteirar-se da volta
nos amanhãs de ontens
e porque somos assim
nos reinventamos
nos suportamos antigos
retidos no tempo
ao redor das voltas incontidas
do relógio
num círculo mágico
em retorno para nos comover
para suspirar entre o silêncio
e a carne
– argamassa de músculos e esperas
inteirados de mortos
e de marcas
sem muita explicação eu me resigno
na vazante da insônia se o mistério é fatigado :
pausa do dia perfurando o túnel da memória
me faço pergunta e carência
nas gavetas de dentro onde me arquivo.
e se em cada quarto em mim
respirando tempo antes
as paredes perdoam –
os olhos vazam o longamente fixo
na possível ausência de nós
venho e calo
e sei
estamos mais que restamos
nos instantes resguardados
e a palavra ausência
reparte e distribui no indivisível
o indisfarçado medo comum
que nos alenta e insiste:
nos visita em suposto de angústia
nesse calado de mãos vazias
nesta largueza de tudo reduzindo a desassossego
da volta ao ponto onde partimos
e não somos mais
não estamos ali
– permanecemos
sombras
no desconforto do que será além do para lá de nós
onde restamos
se o que nos sobra no embornal é qualquer coisa
não sabida
nem pelo menos um soluço de vida
um gemer de esperança
um engasgo recobrando cotidianos
– com dor e com ternura
e com o amargo do tempo na madureza brotada
quase ruga
na vivência de aprender nos calos
de entre muros
como se minhas mãos estreitando no ar
entre o papel e o pensar
o que não foi fácil de seguir
e me somando no que me fiz crescer enorme
como fui tão pouco
me chego confesso :
peço afinal um gesto à sombra sim
– lugar de estender as marcas do meu chão
no que me foi lembrança
no que me fez coragem
no que me replantei
no que me foi inteiro
– no que me fiz a mim
(no que me foi exausto)
pois ainda escrevo as palavras que não me habitam
e passam por mim bando de aves
que sabem elas mesmas e talvez nem quisessem
se às margens da estrada ou do abismo
meu corpo mala pronta é pleno de azul
e significado
e fico
– quem sabe neste momento recomeço
e sem nome e sem ruído a noite
engasga um instante essencial?
nesse momento um estreitar no peito
pode ter seu nome
ou causa
ou quem sabe
sem mistificação ou mistério
a vida apenas?
mas há de haver um muito de lembranças (penso)
no dizer por mim
não que sofrera mais do que pudera
não que guardara mais do que houvera
se me foi por certo um inevitável engano
talvez no só viver a espera
– quem sabe não fui mais do que inventei?
pois se ainda me importa no que não fui imenso
reparto a solidão de mim no que me falta
e ameno a dor além do que não pude.
tudo me lembra o que tentei
me lembra mais do que tentei
porque desfiz também
a tentativa de amar
fica o manso fica o lerdo
fica o resto fica o ranço
(que a mágoa é sempre)
fica a fome fica o estômago
fica o prato fica o arroto
(que o dia é sempre repetido)
fica o beijo fica a dor
fica o corpo fica o gesto
(que o amor é sempre repetido em tudo)
fica o leito fica o jogo
fica o espasmo fica o gozo
(que a viagem é sempre)
fica o medo fica o grito
fica o escuro fica a ausência
(que o desespero é sempre repetido)
fica o cedo fica o tarde
fica a noite fica a insônia
(que a solidão é sempre repetida em tudo)
e as palavras de amor mudam de dono
quando fácil de dizê-las no até quando
depois
– impronunciáveis
porque a palavra fere
a palavra digere
a palavra confere
o cio do momento
na corredeira dos fatos
queda em poema
e o poema é a navalha
que corta e consola
é o desejo que agride
e perdoa
que importa agora essa ausência sentida
se no calado das mãos que te acenam
o que é de longe em mim
tudo te permanece?
o que o tempo tem feito é revisitar-nos
à sombra de nós mesmos escondidos na soleira da porta
de verdade em verdade não soubemos transpor o corpo
feito pedra/ita e calma-una uníssona
de ossos/galhos
onde a fonte dos olhos em orvalho sabe a prantos
derramando sonhos de carne/terra em nós reconstruídos
no que se diz vivência
porque te reescrevo
sempre num poema às pressas no muito devagar
em que não te ausento o pensar
dou comigo entre as palavras todas como se despertas
no outroragorainda
e nas mesmas e tantas lembranças cansadas de doerem
esmaecidas – e insistentes
por isso ou provavelmente por isso somos assim
feitos de ontens
e se há que nos delongar amanhãs antigos
hei-de revezar o efêmero e o eterno
em conversas que repassam o tempo desde quando
nos degredamos pela vida sem limites
ainda que nos pesem as memórias não rememoradas
importa sabermos um do outro como temos sido
se em vão debaterem e debelaram as raias dos confins:
o que não fomos mais – nos intentamos
e o que me aperta sem saber de espaço
e o que me envolve sem conter no abraço –
é o que me insiste sem saber que existo
mas reivento o não contido amor restado
em comoção ao velho chão do entardecer
no que me vejo partir na última quimera
(que importa o que será
se não nos coube o antes por certeza
e o amanhã é uma interrogação?)
o tempo
ainda bem que refaz o encontro
– pois é o renascer quem nos resigna
e nos faz infinitos por equívoco
agora como a escutar no silêncio a canção da ausência
entendo sermos vinhos de sabor
e de guardados
na masmorra da adega onde nos depositamos poeira
dos rumos
e havemos de degustar carinhos
às coisas restadas e que nos ficaram bem
e nos amanteceram nas alamedas do escuro
(pano preto e noturno de estrela-guia
nos incertos momentos perguntados)
não que nos fizesse falta o pranto – apenas mais
de espanto e assim – ao menos assim –
que não fora por engano ao que talvez devesse –
a tarde engasga o espaço onde um vazio
faz de demora a volta e reedita a solidão
de nós mesmos
ou mesmo nós – recompostos a um velho quarto
sem janelas –
um instante sem momentos
um silêncio sem palavras
um agrado sem segredos
e um seguir-se insistente sem caminhos :
enquanto ainda sabemos de colocar em cada ouvido
as nuvens feito algodão
para não nos importar com o grito de luz
no vitral de outono apontado para o horizonte das coisas
onde morávamos
porque te ferem as palavras que nos revoam pássaros
sem gorjeios de respostas
nesta vontade incontida de estar contigo
de novo outra vez hoje
e nada tendo de mim a te trazer
senão no que já tens no que fiquei
– calo e consinto a essas coisas submissas do amor
que não pensamos tido
e (mais sofridos)
nos rememoramos
no escuro que te cega os dias que te importam
talvez no sem querer da última esperança
e que te desencontra o espanto que te aporta
no que te lembra tanto o que te fez espera
o que te desespera o que te fez (quem dera)
em resguardado amor a quem ninguém de herança
no que te reconforta e que te faz alento
repasta o corpo em mim que te descobre lento
ao som do teu gemido em redobrado abraço
no que transcende em nós em rumos que não traço
concede-me o amor ao que não fiz segredo
ressente a dor antiga de amainar meu medo
no que te fez soluço ao susto que te aguarda
e se não somos mais do que um só – retarda
ao menos por instante o que te pronuncia
no que te faz ternura em mim que te arrepia
aos antes e depois se muito fora incerto
o que não houvesse mais o que por nós revisse
e que talvez previsse ao que nos fora certo
mas se morrer me fosse o gesto mais preciso
rasga em memória agora o que assim devesse
e me renova em pranto o que te amarga o riso
de onde vens em mim já não me importo
uma vez mais de novo já não lembro
se vens mais outra vez ou permanecesses
no já restado em mim que te pertence
desde o primeiro adeus dito em silêncio
no fim de tudo quando começamos
se não recordo mais de ter ficado
quem sabe sou mais eu que já partira?
e nos deixando assim com queríamos
em cada gesto novo algo em memória
para sabermos tudo o que não fomos
agora estás em mim como te existo
e sem caber a nós somos nós todos
– além de cada um em separado
Referência:
PORTES. Max de Figueiredo. Das razões inquietas. Elegia a nós mesmos. Belo Horizonte: Imprensa Oficial / S. E. da Cultura, 1988, p. 14-32.
Ilustração:
Max Portes – Foto de Alberto Escaldas/EM/D.A Press – 20.09.1984.
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