Sobre o Alvoroço da Visita de Betty Friedan ao Brasil
Homenagem à Patrona do Feminismo Brasileiro
AS MULHERES
ROSE MARIE MURARO
Em 1971, a Editora Vozes fazia setenta anos, e a ideia era comemorá-los com tudo a que se tinha direito. Pedi licença ao diretor para trazer um autor estrangeiro. Eu queria convidar ou Nornan Brown, que fazia muito sucesso na época, Michel Foucault, ou então Betty Friedan. Madre Cristina, de São Paulo, me deu o livro de Betty Friedan para ler, e eu tinha gostado tanto que a tradução já estava pronta. Falei com ela ao telefone e ela se prontificou a vir só pela passagem, a estada e o que acontecesse, principalmente.
Fiquei com medo do evento, talvez porque eu esperava que seu livro ficasse fechado dentro das paredes das universidades. Mas, mesmo antes dela chegar, as coisas começaram a acontecer. O Pasquim fez uma entrevista preparatória comigo. Lá estavam Glauber Rocha, Paulo Francis, Ziraldo e toda a patota. Foi aí que percebi o que o feminismo realmente significava para os homens. Tenho certeza de que os “juntei”, porque eles não sabiam nada das articulações da opressão das mulheres com o econômico… Só pensavam no medo que as novas mulheres lhes causavam.
Isto foi o bastante para chamar a atenção de toda a mídia. Quando Betty Friedan chegou, as coisas explodiram. Os jornalistas subiam em árvores em frente à casa onde ela estava hospedada, na Barra da Tijuca. Nunca me passara pela cabeça que aquilo pudesse ser tão frenético. Nos três dias em que ela apresentou o livro à mídia, eu tinha a impressão de que ia morrer. Eram os tempos mais duros da ditadura. Por mais que eu a avisasse de que as coisas que dissesse comprometeriam a mim e não a ela, ela dizia sempre que podia dizer o que quisesse porque era uma cidadã americana livre. E eu que me danasse…
A TV Globo começou a fazer enquetes em todas as esquinas do país. Todos os jornais, revistas, televisões nos deram as primeiras páginas ou chamadas. A Igreja e o Estado começaram, também, a cair em cima da minha cabeça. Logo da minha! Mostrei as ela as marchadeiras de 64, as mulheres populares, os torturados, as feministas… Ela falou mal dos militares e mandou Millôr Fernandes à merda numa memorável entrevista aos machões do Pasquim.
Quando ela foi embora, não ficou pedra sobre pedra. Ela era muito feia e agressiva, e daí em diante passou a fazer parte do inconsciente coletivo brasileiro como o modelo de mulher que as outras, as que quisessem continuar femininas, não deveriam imitar. Até hoje, nos mais recôncavos cantos deste país, sua figura é conhecida, ridicularizada e temida por homens e mulheres.
Naquela época, apenas algumas pouquíssimas mulheres ousavam levantar o problema da mulher. Era Carmen da Silva, a nossa grande precursora, na Abril, Heloneida Studart na Bloch, e Hellieth Saffioti, que acabara de escrever o fantástico Mulher na Sociedade de Classe. Tinha também Romi Medeiros, que considerávamos de direita, mas que sempre foi muito decente. E Zuzu Angel, com toda a sua tragédia, que se desenrolou exatamente naquela época.
Compreendemos então que o problema da mulher já fora espantosamente levantado por toda a sociedade. E que as ideias de Betty Friedan não serviam para o Brasil. E fomos pouco a pouco construindo um outro feminismo.
Era o tempo do milagre brasileiro. Quem ia para a televisão e era entrevistada até no Sílvio Santos era eu (a louca!), porque as outras tinham muito medo. Naquele momento eu não conseguia compreender por que tanta entrevista. Em 72, a Manchete fez um inquérito com seiscentas estudantes no Rio e seiscentas em São Paulo, perguntando porque queriam entrar na Universidade. E houve uma quase unanimidade na resposta: elas queriam primeiro ter uma carreira e conseguir o seu lugar no mundo, e só depois ter marido e filhos. Eram essas, na época, as reivindicações feministas mais avançadas. A revolução sexual estava apenas começando.
O motivo verdadeiro daquilo tudo só apareceu mais tarde, em 75, quando estávamos preparando um dossiê para uma reunião paralela da Cidade do México por ocasião do Ano Internacional da Mulher. Vimos que o número de universitárias crescera cinco vezes num período de cinco anos! Em 69, eram 100.000 mulheres e 200.000 homens. E em 75 já seriam 500.000 mulheres e 508.000 homens! A população universitária inteira crescera três vezes, o número de homens pouco mais que dobrara, mas as mulheres cresceram cinco vezes e se igualavam aos homens!
Por outro lado, em 1970 o número de mulheres que formavam a força de trabalho feminina chegava a seis milhões. Em 1976, crescera para doze milhões. Mais importante do que o que estava acontecendo nas universidades, as mulheres de todas as classes sociais estavam entrando em massa para o mundo público da economia e do trabalho. Era a maior transformação que a mulher brasileira jamais atravessara.
Essa transformação econômica implicava outras transformações ainda mais aprofundadas na área do comportamento, entre elas uma completa reestruturação da sexualidade feminismo. E era por isso que, apesar da imagem negativa de Betty Friedan, o feminismo nunca deixou de sair das páginas. O establishment acenava aquela imagem como um espantalho: “Está vendo o que você vai virar se sair do seu papel tradicional? Uma mulher feia, agressiva, mal-amada, uma bruxa… vai perder a sua feminilidade…”.
Mas nem isso teve o poder de fazer parar aquela corrente cultural nascente. Mesmo dizendo “eu sou feminina”, a mulher ia silenciosamente se modificando. Acendendo uma vela a Deus e outra ao diabo, ia conquistando o seu espaço e o seu orgasmo. As separações se tornaram comuns. O número de mulheres executivas cresceu dez vezes mais no fim da década. E assim foi.
Em 1975, no próprio Ano da Mulher, foi preciso que as Nações Unidas patrocinassem o primeiro encontro feminista, se não os militares não deixariam. Ele aconteceu na ABI em julho, e, embora a imprensa, censurada, não tivesse dito uma palavra, mais de mil mulheres do Brasil apareceram. Muitas viajaram dias, e todas por conta própria. E assim nasceu o Centro da Mulher Brasileira no Rio de Janeiro, o primeiro grupo feminista do Brasil moderno.
E quando eu estava ajudando a fundar o Centro de Desenvolvimento da Mulher Paulista na Câmara Municipal de São Paulo, no dia 9 de outubro desse mesmo ano, junto com mulheres militantes e membros da Igreja, recebi um telefonema. Era o meu diretor: “Filhinha, a polícia veio aqui e levou todos os seus livros…”
Era a vingança dos militares contra aquela farra toda. As mulheres que se cuidassem. Um dos livros proibidos era um livro sobre física, Automação e o Futuro do Homem. Pois bem, como o outro, A Mulher na Construção do Mundo Futuro, que já estava adotado nas escolas de segundo grau (e muitas religiosas), foram os dois proibidos como pornográficos. Com isso vimos que era pura perseguição pessoal, pois os censores não haviam sequer lido os livros.
Aquilo me deixou deprimida e assustada. Nessa época, eu recebera um convite de um amigo brasilianista para dar aulas nos Estados Unidos, e ele estava batalhando uma bolsa da Fullbrigth. Por feliz coincidência essa bolsa saiu em fins de 76, e passei quase todo o ano de 1977 nos Estados Unidos. De repente pareceu que o mundo se ampliou e ficou brilhante. Depois de tantos anos de tensão, tortura e censura, eu estava tomando um porre de liberdade.
Aquela ainda era um época da contracultura, e em cada canto e em cada casa daquele país se faziam as experiências mais fantásticas. Em meados da década de 70, os Estados Unidos eram o laboratório da humanidade. Lá havia desde as mais ferozes correntes da extrema direita, como a Ku Klux Klan ainda muito ativa, e John Birch Societies, até as experiências da mais ousada vanguarda. Eram desenvolvidas as técnicas para expandir o corpo e a mente, as novas místicas, a nova esquerda, os protestos estudantis, os gays e também a revolução sexual a pleno vapor. Eu procurava viver o máximo, participar de tudo, experimentar tudo.
Por isso, tive um choque cultural na ida e também na volta… O que sobrou de prático naquela viagem foi uma bolsa da Fundação Rockefeller para uma pesquisa sobre o problema da reprodução das mulheres camponesas. Devia ser uma pesquisa pequena, mas, como sempre, alguma coisa estava acontecendo.
Já era 1979, governo Figueiredo e sua “abertura” política. Os movimentos feministas, que no Rio e em São Paulo de 75 a 78 eram obrigados a permanecer limitados em pequenos círculos de mulheres profissionais de classe média, ganharam fôlego. Elas se espalharam pelo Brasil inteiro e, ainda mais, adquiriram amplitude. As mulheres começaram a fazer um trabalho nas periferias das grandes cidades com as mulheres do povo. E fazem isso em conjunto com os novos partidos progressistas, os legais como o PMDB e o novo PT e os clandestinos do PC (PCB e PC do B).
Os homens ficavam muito incomodados porque as feministas trabalhavam com reprodução e sexualidade e diziam que isto era divisionismo. “Larguem isso e venham lutar com seus companheiros para que o povo brasileiro volte a alcançar a democracia…”. Nascia então a polêmica que iria se estender pelos anos 80: a de qual era a luta mais prioritária, a geral (de classes) ou a específica, isto é, as lutas das mulheres, dos negros etc.
O embrulho teórico parecia sem saída. Havia os marxistas dizendo que a luta de classes englobava todas as outras e que, uma vez erradicada a sociedade de classes, automaticamente todas as outras contradições se resolveriam, e, do lado oposto, os outros. As feministas americanas e europeias provaram que a opressão da mulher era anterior à sociedade de classes e que seria a base de todas as outras opressões. E, o que era pior, perpassava todas as classes sociais, e até a sociedade socialista. Nenhuma de nós conseguia engolir aquilo de luta de classes, pois experimentávamos na carne que, na luta prática, o comando e as decisões estavam com os companheiros homens, e o trabalho pesado, arriscado e cotidiano, mas silencioso e sem reconhecimento, continuava com as mulheres. Por isso, não víamos saída nenhuma para nós.
Foi assim que rasgamos a proposta da Rockefeller e fizemos um outro projeto muito mais ambicioso e abrangente. Queríamos tirar no concreto a dúvida sobre qual era a mais prioritária, a sexualidade ou a classe social. E assim nasceu a pesquisa que veio a ser o livro Sexualidade da Mulher Brasileira – Corpo e Classe Social no Brasil.
Referência:
MURARO, Rose Marie. Os seis meses em que fui homem. 3. ed. Rosa dos Tempos, 1991, p. 16-21.
Ilustração:
Foto de Rose Marie Muraro. “Rose Marie – o nascimento da mulher livre”. Vídeofólio da Patrona do Feminismo Brasileiro. TV Humana.
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