Walter Benjamin (Parte II)
A OBRA DE ARTE
NA ERA DA SUA REPRODUTIBILIDADE TÉCNICA (Parte II)
WALTER BENJAMIN
V
A recepção da arte verifica-se com diversas tónicas, quais se destacam duas, polares. Uma assenta no valor culto, a outra no valor de exposição da obra de arte10;11. A produção artística começa por composições ao serviço do culto. E lícito supor-se que estas composições sejam mais importantes pela sua existência do que pelo facto de serem vistas. O alce representado pelo homem da idade da pedra, nas paredes das suas cavernas, é um instrumento mágico. É certo que ele o expõe perante os outros homens, mas é principalmente dedicado aos espíritos. Hoje o valor de culto parece requerer que a obra de arte permaneça oculta: certas estátuas de deuses só são acessíveis ao sacerdote na sua cela, certas virgens permanecem cobertas durante quase todo o ano, determinadas esculturas em catedrais medievais não são visíveis observador que está no plano térreo. Com a emancipação de cada uma das práticas da arte, do âmbito ritual, aumentam oportunidades de exposição dos seus produtos. A possibilidade de expor um busto que pode ser enviado para qualquer lado, é maior do que a de expor uma divindade que tem o seu lugar no interior de um templo. A possibilidade de expor uma pintura é maior do que a de expor o mosaico ou o fresco que a precederam. E ainda que a possibilidade de expor, em público, uma missa não seja inferior à de o fazer relativamente a uma sinfonia, esta surgiu numa época em que a sua possibilidade de ser exposta prometia ser superior à da missa.
Com os diversos métodos de reprodução técnica da obra de arte, a sua possibilidade de exposição aumentou de forma tão poderosa que o desvio quantitativo entre ambos os seus pólos, tal como originalmente existiam, se traduz numa alteração qualitativa da sua natureza. Nos primórdios, a obra de arte, devido ao peso absoluto que assentava sobre o seu valor culto, transformou-se, principalmente, num instrumento de magia que só mais tarde foi, em certa medida, reconhecido como obra de arte. Da mesma forma, actualmente, a obra de arte devido ao peso absoluto que assenta sobre o seu valor de exposição, passou a ser uma composição com funções totalmente novas, das quais se destaca a que nos é familiar, a artística, e que, posteriormente, talvez venha a ser reconhecida como acidental12. É certo que actualmente a fotografia e, mais ainda, o filme, nos proporcionam um útil acesso a este tipo de questões.
________
10 Esta polaridade não pode assentar na estética do idealismo, cujo conceito de beleza, no fundo, a engloba como uma estética una (e, por conseguinte, a exclui como estética separada). Todavia, ela apresenta-se em Hegel com toda a clareza que as barreiras do idealismo permitem. Nas lições sobre a Filosofia da História, diz-se “imagens existiam há muito: a piedade há muito que necessitara delas para a devoção, mas não precisava de imagens belas, eram mesmo perturbadoras. Em quadros belos também há algo de não espiritual, de exterior, mas na medida em que são belos, o seu espírito interpela o homem; mas na devoção, a relação com uma coisa é essencial, porque ela própria é apenas um embotamento, sem espírito, da alma… as belas-artes surgiram na própria Igreja… embora… a arte tenha emanado do princípio da Igreja”.
(Georg WilheIm Friedrich Hegel: Obras. Edição completa, através de uma Associação de Amigos do Eternizado. Tomo 9: Lições sobre a Filosofia da História. Editado por Eduard Gans. Berlim 1837, pág. 414.) Também uma passagem, nas lições sobre a Estética, chama a atenção para o facto de Hegel ter, aqui, pressentido um problema. Assim, afirma-se, nesse texto: “Já não estamos… em posição de, além disso, venerar e ser devotos, de forma divina, de obras de arte; a impressão que nos causam é de um tipo sensato, e aquilo que provocam em nós necessita de um exame mais elevado.” (Hegel, 1.c. Tomo 10: Lições sobre a Estética. Editado por H. G. Hotho. Tomo I Berlim, 1835, pág. 14.)
11 A transição do primeiro género de recepção artística para o segundo, determina o percurso histórico da recepção artística em geral. Apesar disso, verifica-se uma certa oscilação, entre ambos os pólos daquela recepção, que constitui um princípio válido para qualquer obra de arte. Como, por exemplo, a Virgem da Capela Sistina. Desde a investigação de Hubert Grimme, sabe-se que a Virgem da Capela Sistina foi originalmente pintada para ser exposta. Grimme foi levado a empreender as suas investigações, através da seguinte questão: no primeiro plano do quadro, qual a finalidade da ripa de madeira, sobre a qual se apoiam os dois cúpidos? Como pôde chegar um Rafael, perguntava ainda Grimme, ao ponto de decorar o céu com um par de reposteiros? A investigação permitiu concluir que a Virgem da Capela tinha sido encomendada por ocasião da vigília pública, em câmara ardente, do papa Sisto. As vigílias dos papas realizavam-se numa determinada capela lateral da Igreja de S. Pedro. Pousado sobre o féretro, numa espécie de nicho ao fundo da capela, estava o quadro de Rafael, por ocasião da vigília festiva. O que Rafael representa neste quadro, é a forma como, surgindo do nicho contornado por reposteiros verdes, ao fundo, a Virgem envolta por nuvens se aproxima do féretro papal. Nas exéquias de Sisto, o quadro de Rafael adquiriu um extraordinário valor de exposição. Algum tempo depois, foi colocado sobre o altar-mor da Igreja do Mosteiro dos Monges Negros de Piacenza. A razão deste exílio reside no ritual romano. Este proíbe o uso, como objectos de culto no altar-mor, de quadros exibidos em cerimónias fúnebres. A obra de Rafael foi, em certa medida, desvalorizada, devido a esta norma. No entanto, para obter o preço correspondente, a cúria decidiu tolerar tacitamente a colocação do quadro no altar-mor, ao efectuar a transacção. Para evitar celeuma, permitiu-se a entrega do quadro à irmandade de uma distante cidade de província.
VI
Na fotografia, o valor de exposição começa a afastar, em todos os aspectos, o valor de culto. Porém, este não cede sem resistência. Ocupa uma última trincheira: o rosto humano. Não é, de modo nenhum, por acaso que o retrato ocupa um lugar central nos primórdios da fotografia. No culto da recordação dos entes queridos, ausentes ou mortos, o valor de culto da imagem tem o seu último refúgio. Na expressão efémera de um rosto humano acena, pela última vez, a aura das primeiras fotografias. É isto que faz a sua melancolia e beleza inigualáveis. Mas quando o homem se retira da fotografia, o valor de exposição sobrepõe-se, pela primeira vez, ao valor de culto. Ter fixado localmente esta evolução é o significado sem paralelo de Atget que fixou as ruas de Paris vazias, por volta de 1900. Com muita razão, disse-se dele que as fotografava como um local de crime. Também o local do crime é vazio, sem pessoas. O seu registo fotográfico destina-se a captar os indícios. Os registos fotográficos, com Atget, começam a tornar-se provas no processo histórico. É nisso que reside o seu significa político oculto. Em certo sentido, já exigem uma recepção. A contemplação nefelibata já não lhes é adequada. Desassossegam o observador; com tais registos o observador sente que tem que procurar um determinado caminho até eles. Os jornais ilustrados começam, ao mesmo tempo, a fornecer-lhe indicadores. Certos ou errados, tanto faz. Neles, a legenda torna-se – pela primeira vez, obrigatória. E é claro que têm um carácter completamente diferente do título de uma pintura. As indicações que o observador recebe das imagens de um jornal ilustrado, através da legenda, tomar-se-ão, pouco mais tarde, no filme, mais exactas e peremptórias, filme em que a apreensão de cada uma das imagens parece ser determinada pela sequência de todas as anteriores.
___________
12 A outro nível, Brecht inicia reflexões análogas: “Se o conceito de obra de arte já não é aceitável, relativamente à coisa que surge quando uma obra de arte é transformada em mercadoria, então temos que abandonar esse conceito, cuidadosa e prudentemente, mas com ousadia, se não quisermos ser nós próprios a liquidar a função desta coisa, porque ela tem que ultrapassar esta fase, e sem preconceitos; não se trata de um desvio facultativo do caminho certo, pois o que aqui lhe acontece é uma modificação radical, o apagar do seu passado, de forma tal que se o antigo conceito fosse recuperado – e sê- lo-á, porque não? – não evocaria qualquer recordação da coisa que, no passado, designara.” ([Bertolt] Brecht: Ensaios 8-10 [Fascículo] Berlim 1931, págs. 301/302.)
VII
A controvérsia travada no decurso do século XIX, entre a pintura e a fotografia relativamente ao valor artístico dos seus produtos, parece hoje dúbia e confusa. Mas isto não invalida o seu significado, podendo mesmo sublinhá-lo. De facto, essa controvérsia foi expressão de uma transformação na história mundial, de que nenhum dos intervenientes teve consciência. Na medida em que a era da reprodutibilidade técnica da arte a desligou dos seus fundamentos de culto, extinguiu para sempre a aparência da sua autonomia. Mas a alteração da função da arte, que com isso se verificou, deixou de existir na perspectiva do século. O mesmo sucedeu no século XX, que assistiu evolução do cinema.
Já se tinha dedicado muita reflexão vã à questão de saber se a fotografia seria uma arte – sem se ter questionado o facto de, através da invenção da fotografia, se ter alterado o carácter global da arte – e, logo a seguir, os teóricos do cinema sucumbiram ao mesmo erro. Mas as dificuldades que a fotografia tinha levantado relativamente à estética tradicional, eram uma brincadeira de crianças comparadas com as que foram provocadas pelo cinema. Daí a violência cega que caracteriza a teoria do cinema nos seus primórdios. Assim, Abel Gance, por exemplo, compara o filme com o hieróglifo: “Eis como, em consequência de um retrocesso altamente curioso, regressamos ao nível de expressão dos Egípcios… A linguagem das imagens ainda não atingiu a sua maturidade porque os nossos olhos ainda não evoluíram o suficiente. Ainda não existe suficiente respeito, culto por aquilo que elas exprimem.”13 Ou, Séverin-Mars escreve: “A que arte estava reservado um sonho, que… fosse, em simultâneo, poético e real! Considerado de tal ponto de vista, o cinema representaria um meio de expressão absolutamente incomparável e, na sua atmosfera, só poderiam mover-se pessoas de pensamento muito nobre, em momentos de total perfeição e mistério do trajecto da sua vida.”14 Por seu lado, Alexandre Arnoux conclui uma fantasia sobre o cinema mudo com a seguinte pergunta: “Não deveriam todas as ousadas descrições de que aqui nos servimos tender para a definição de oração?”15 É muito instrutivo observar como o esforço de atribuir o filme à “arte” força estes teóricos, sem qualquer pejo, a reconhecer nele elementos de culto. E, no entanto, na época em que se publicavam tais especulações, já existiam obras como “L’opinion publique” ou “La ruée vers l ́or”?. Isso não impede Abel Gance de estabelecer paralelos com os hieróglifos, e Séverin-Mars de falar de filmes, corno se poderia falar de quadros de Fra Angelico. É significativo que, ainda hoje, autores particularmente reaccionários procurem um significado do filme mesma direcção, senão no sagrado, pelo menos no sobrenatural. A propósito da versão em filme, de Reinhardt, do Sonho de Uma Noite de Verão, Werfel comenta que, indubitavelmente, era a cópia estéril do mundo exterior, com as suas ruas, interiores, estações de caminho de ferro, restaurantes, automóveis e estâncias balneárias, que tinha impedido, até então, o cinema de atingir o império da arte.
“O filme ainda não apreendeu o seu verdadeiro sentido, suas verdadeiras possibilidades… estas consistem na sua faculdade única de, com meios naturais e um poder de persuasão incomparável, expressar a ambiência do conto de fadas, do maravilhoso, o sobrenatural.” 16
____________
13 Abel Gance, op. cit, págs. 100/101.
14 Citado por Abel Gance, op. cit, pág. 100
15 Alexandre Arnoux; Cinéma. Paris 1929, pag. 28.
16 Franz Werfel: “Sonho de Uma Noite de Verão”. Um filme de Shakespeare e Reinhardt. “Neues Wiener Journal”, cit. Lu, 15 de Novembro 1935
VIII
Não há duvida de que no teatro o desempenho artístico actor é apresentado ao público pela sua própria pessoa; pelo contrário, o desempenho artístico do actor de cinema é apresentado ao público por um equipamento, o que tem dois tipos consequências. Não se espera do equipamento que transmite ao público a actuação do actor de cinema, que respeite essa acção na sua totalidade. Sob a direcção do operador de câmara, esse equipamento toma constantemente posição perante essa mesma actuação. A sequência de cenas que o montador compõe, a partir do material que lhe é fornecido, é que constitui o filme acabado. Este engloba um determinado número de momentos de acção, reconhecidos como tal pela câmara, para não falar de planos especiais, de primeiros planos. Assim, a representação do actor é submetida a uma série de testes ópticos. Esta é a primeira consequência do facto de a representação do actor de cinema ser apresentada pelo equipamento. A segunda assenta no facto de que uma vez que o actor de cinema não representa perante o público, não pode adaptar, durante a actuação, o seu desempenho à reacção do mesmo, possibilidade reservada apenas ao actor de teatro. Por essa razão, o público assume a atitude de um apreciador que não é perturbado pelo actor, uma vez que não tem qualquer contacto pessoal com ele. A identificação do público com o actor só sucede na medida em que aquele se identifica com o equipamento. Assimila, pois, a sua atitude: testa17. Isto não é atitude a que se possam expor valores de culto.
IX
Para o cinema é mais importante que o actor se apresente perante a câmara a si próprio do que perante o público como outrem. Uma das primeiras pessoas a sentir tal mudança do actor, devido à pressão dos testes, foi Pirandello. As observações que faz no seu romance “Filma- se”, continuam válidas a de ele se limitar a realçar o lado negativo da questão, e de se referir apenas ao cinema mudo. Porque o cinema sonoro pouco alterou esta questão. O importante é que se representa para um equipamento e, no caso do filme sonoro, para dois. “O actor de cinema”, escreve Pirandello, “sente-se no exílio. Exilado não só do palco, mas também da sua própria pessoa: com um mal-estar sombrio sente o inexplicável vazio causado pelo facto seu corpo se tomar numa manifestação ausente, de se desvanecer e de ser privado da sua realidade, da sua vida, da sua voz e dos sons que emite quando se move, para se transformar numa imagem muda que estremece na tela por um instante para pois desaparecer no silêncio… O pequeno equipamento que representará para o público com a sua sombra, e o actor tem que se contentar com a representação perante a máquina18. Pode caracterizar-se o mesmo facto da seguinte forma: pela primeira vez -e isso é obra do cinema – o homem vê-se na situação de actuar com a sua totalidade de pessoa viva, mas sem a sua aura. Porque a aura está ligada ao aqui e agora. Dela não existe cópia. A aura que se manifesta em tomo de um Macbeth pode ser separada da que, para um público ao vivo, rodeia o actor que representa aquele personagem. A especificidade do registo em estúdio cinematográfico reside no facto de colocar o equipamento no lugar do público. Assim, a aura que envolve actor tem de desaparecer e, por conseguinte, também a do personagem representado.
Não é de espantar que seja precisamente um dramaturgo como Pirandello que inadvertidamente, ao caracterizar o cinema, aponta as razões da crise que assola o teatro. Para a obra de arte que surge integralmente da sua reprodução técnica – como o filme – não há maior contraste que o palco. Qualquer observação cuidadosa prova este facto. Há muito que observadores especializados reconheceram que na representação cinematográfica «quase sempre se obtêm os melhores efeitos, quando se “representa” o mínimo possível… a mais recente evolução» – admite Arnheim em 1932 –, “considera o actor como um acessório que é escolhido pelas suas características e… se insere no lugar próprio.”19 A esta ideia está intimamente ligada uma outra. O actor que representa no palco, identifica-se frequentemente com um papel. Ao actor de cinema esta possibilidade é frequentemente recusada. A sua actuação não é, de modo nenhum, um trabalho único, mas sim o resultado de várias intervenções. Para além de considerações fortuitas como a renda do estúdio, a disponibilidade de contracenantes, cenários, etc. Trata-se de necessidades elementares da maquinaria que dispersam a representação do actor numa série de episódios que é preciso depois montar. Trata-se, principalmente, da iluminação cuja instalação requer, para a apresentação de acontecimento que, na tela, aparece como uma cena única se desenvolve rapidamente, a realização de uma série de registos que, no estúdio, consoante as circunstâncias, pode prolongar-se por várias horas; sem mencionar os casos cuja montagem é mais evidente. Assim, se um actor tem de saltar por uma janela, filmam-no a saltar no estúdio, com recurso a um andaime, mas a cena seguinte, da fuga, eventualmente será filmada semanas mais tarde em exteriores. Aliás, é muito fácil conceber casos ainda mais paradoxais. Pode pedir-se ao actor que, depois de baterem à porta, faça um movimento brusco, assustado. Talvez esta actuação não tenha correspondido à desejada. O realizador pode recorrer a um expediente: oportunamente, quando o actor volta ao estúdio, pode, que ele o espere, ser disparado um tiro. O susto do filmado neste momento, pode ser montado no filme. Nada mostra mais claramente que a arte abandonou o império da “bela aparência” que, até então, era considerado o único em que podia prosperar.
______________
17 “0 filme… dá (ou podia dar) pormenorizadas informações úteis sobre comportamentos humanos… As motivações não se manifestam devido ao carácter, a vida interior das pessoas nunca exprime a razão principal e raras vezes constitui o resultado principal do comportamento.” (Brecht, op. cit., pág. 268.) A ampliação do domínio do que pode ser testado, que o equipamento concretiza no actor de cinema, corresponde à extraordinária ampliação do domínio do que pode ser testado, que surgiu, para o indivíduo, devido às circunstâncias económicas. Assim aumenta, constantemente, o significado dos exames de aptidão profissional. Nos exames de aptidão profissional, o que importa são aspectos da representação do indivíduo. Tanto as filmagens como os exames de aptidão profissional são realizados perante um grupo de especialistas. O director de fotografia, no estúdio de cinema, ocupa exactamente o lugar que corresponde ao do director de testes, no exame de aptidão profissional.
18 Luigi Pirandello: On tourne, citado por Léon Pierre-Quint «Signification du Cinema», in: L’art cinématographique II, op. cit. p 14/15.
19 Rudolf Arnheim: O Filme enquanto Arte. Berlim 1932, págs. 176/177. Certos pormenores, aparentemente secundários, com os quais o realizador de cinema se afasta da prática do palco, adquirem, neste contexto, o maior interesse. É o caso da tentativa de fazer o actor representar sem caracterização, como sucede, entre outros, com Dreyer, em Joana d’Arc. Demorou meses para encontrar os quarenta actores que constituem o Tribunal da Inquisição. A procura dos actores assemelhou-se à dificuldade na procura de acessórios difíceis de obter. O maior esforço de Dreyer consistiu em evitar semelhanças de idade, estatura ou de fisionomias. (Cf. Maurice Schultz: Le Maquiliage, in: L’Art cinémaiographique VI. Paris 1929, págs.65/66.) Quando o actor se torna acessório de cena, não é raro que este, por sua vez, seja utilizado como actor. De qualquer forma, não é nada invulgar que o filme chegue a uma situação em que confere um papel ao acessório. Em vez de escolher um qualquer exemplo de uma série infinita de possibilidades, detenhamo-nos num de especial força probatória. No palco, um relógio em funcionamento torna-se sempre perturbador. A sua função de medir o tempo, não pode ser-lhe atribuída no palco. Até numa peça naturalista, o tempo astronómico colidiria com o tempo cénico. Nestas circunstâncias, é extremamente significativo que um filme utilize, de vez em quando e sem mais nem menos, a medição do tempo através de um relógio. Neste caso, pode reconhecer-se mais nitidamente do que noutros aspectos, como sob determinadas circunstâncias, cada um dos acessórios pode nele assumir funções decisivas. Estamos apenas a um passo da afirmação de Pudovkin, segundo a qual “a representação de actor que está ligada a um objecto e nele assenta é sempre um dos mais fortes métodos da concepção cinematográfica” [W. Pudovkin: realização cinematográfica e guião. (Livros da Praxis, Vol. 5) Berlim 1928, pág. 126.] Assim, o filme é o primeiro meio artístico que está em situação de mostrar como a matéria actua sobre o homem. Pode, por conseguinte, ser um magnífico instrumento de representação materialista.
X
A estranheza do actor perante o equipamento, como refere Pirandello, é essencialmente do mesmo tipo da estranheza que se sente perante a própria imagem reflectida no espelho. Mas agora, a imagem é separável da pessoa, é transportável. E para onde é transportada? Para diante do público20. O actor de cinema nunca deixa de ter consciência deste facto. O actor de cinema, quando está perante a câmara, sabe que em última instância está ligado ao público: ao público dos receptores, que constituem o mercado. Este mercado, no qual o actor empenha não só a sua força de trabalho, mas também todo o seu ser, no momento em que efectua um determinado desempenho, é-lhe tão inacessível como qualquer produto feito numa fábrica. Não terá esta circunstância a sua parte de influência na inibição, na nova ansiedade, que acomete o actor perante o equipamento? O cinema reage ao aniquilar da aura, com uma construção artística da “personality” fora do estúdio. O culto da “estrela”, promovido pelo capital cinematográfico, conserva a magia da personalidade que, há muito, se reduz à magia pútrida do seu carácter mercantil. Enquanto o capital cinematográfico der o tom, não se poderá atribuir ao cinema actual, em geral, outro mérito revolucionário para além do de promover uma crítica revolucionária de concepções tradicionais da arte. Não contestamos que o filme actual, em casos particulares, possa promover, além disso, uma crítica revolucionária das relações sociais, mesmo das de propriedade. Mas o ponto central do presente estudo está tão longe disso, como o está a produção cinematográfica da Europa Ocidental.
É inerente à técnica do filme, tal como à do desporto, que quem quer que assista aos seus desempenhos profissionais, o faça como especialista incompleto. Basta ter ouvido um grupo de ardinas, apoiados nas suas bicicletas, a discutir os resultados de uma corrida de ciclismo, para nos rendermos à evidência deste facto. Não é por acaso que os editores de jornais organizam corridas para os seus ardinas. Estas despertam interesse entre os participantes, porque o vencedor tem a oportunidade de ser promovido de ardina a ciclista profissional. Da mesma forma, as “actualidades da semana” dão a quer um a possibilidade de passar de simples transeunte a figurante de cinema. Deste modo, em determinadas circunstâncias qualquer um pode ser parte de uma obra de arte; pense-se nas”Três Canções sobre Lenine” de Wertoff ou na “Borinage” de Ivens. Qualquer homem, actualmente, pode ter a pretensão de ser filmado. Esta pretensão pode ser mais bem clarificada olhando para a situação histórica da escrita contemporânea.
Durante séculos, a situação da escrita foi de tal ordem que a um reduzido número de escritores correspondia um número de vários milhares de leitores. No início do século passado verificou-se uma mudança nesta situação. Com a crescente expansão da imprensa, que proporcionava aos leitores cada vez mais órgãos locais políticos, religiosos, científicos e profissionais, uma parte cada vez maior dos leitores começou por, de início ocasionalmente, passar a escrever. Tudo isto começou com a imprensa diária a abrir aos leitores o seu “correio”, e actualmente a situação é tal que quase não deve haver um europeu, inserido no mundo do trabalho, que não tenha tido possibilidade de publicar uma experiência laboral, uma reclamação, uma reportagem, ou algo afim. Assim, a diferença entre autor e público está prestes a perder o seu carácter fundamental. Esta diferença torna-se funcional, podendo variar de caso para caso. O leitor está sempre pronto a tomar-se um escritor. Com a crescente especialização do trabalho, todos os indivíduos tiveram de se tornar, voluntária ou involuntariamente, especialistas numa dada área, ainda que num sentido menor, assim tendo acesso à condição de autor. Na União Soviética é o próprio trabalho que tem a palavra. E a sua representação na palavra constitui uma parte do saber necessário ao seu exercício. A competência literária deixa de ser fundamentada numa formação especializada para passar a sê-lo numa formação politécnica, tomando-se deste modo em bem comum21. Tudo isto pode ser transposto para o cinema, no qual se observam alterações numa década que relativamente à literatura demoraram séculos a impor-se. Porque na praxis do filme – principalmente no caso do russo – estas alterações já foram parcialmente concretizadas. Uma parte dos actores que encontramos em filmes russos, não são actores no nosso sentido, mas sim pessoas que representam um papel principalmente no seu processo de trabalho. Na Europa Ocidental, a exploração capitalista do filme impede a legítima pretensão do homem actual em ser considerado, em vir a ser reproduzido. Nestas circunstâncias, a indústria cinematográfica tem todo o interesse em incitar a participação das massas, através de concepções ilusórias e especulações ambíguas.
___________
20 A alteração que aqui se verifica, do tipo de exposição devido à reprodução técnica, também se observa na política. A crise actual das democracias burguesas inclui uma crise das condições relevantes para a exposição dos governantes. As democracias expõem o governante, em pessoa, perante representantes eleitos. O parlamento é o seu público! Com as inovações do equipamento de registo que permitem que o orador seja ouvido por um número ilimitado de pessoas enquanto profere o seu discurso, e pouco depois divulgar a sua imagem também para muitas pessoas, a exposição do homem político perante esse equipamento de registo, passa a primeiro plano. Tanto os parlamentos como os teatros estão a ficar desertos. A rádio e o cinema alteram não só a função do actor profissional, mas também, exactamente da mesma forma a função daqueles que, como o fazem os governantes, se apresentam perante aqueles meios de comunicação. O sentido desta alteração é o mesmo tanto no que respeita ao actor como ao governante, independentemente do facto das suas tarefas específicas serem diferentes. Promove a exposição de desempenhos controláveis e até transmissíveis, sob determinadas condições sociais. Isto resulta numa selecção, selecção perante o equipamento que faz com que a estrela ou o ditador sejam os vencedores.
21 O carácter de privilégio das respectivas técnicas é assim perdido. Aldous Huxiey escreve: “Os progressos técnicos… conduziram vulgaridade… a reprodutibilidade técnica e a rotativa possibilitaram uma policópia imprevisível de escritos e imagens. A escolarização, em geral, e ordenados relativamente altos criaram um grande público que sabe ler e pode adquirir material escrito ou ilustrado. Para o disponibilizar, estabeleceu-se uma indústria significativa Mas o dom da arte é algo de raro; daí resulta… que, em cada momento e lugar, a maior parte da produção artística tenha sido de qualidade inferior. Mas hoje a percentagem dos resíduos da produção artística global é maior do que jamais… Defrontamo-nos, aqui, com um facto puramente aritmético. No decurso do século passado, a população da Europa Ocidental aumentou mais do dobro. Mas o material de leitura, ou ilustrado, segundo imagino, aumentou na proporção de 1 para 20 ou talvez mesmo, de 1 para 50, ou 100. Se uma população de x milhões dispõe de n talentos artísticos, então uma população de 2x milhões disporá provavelmente de 2n talentos artísticos. Podemos resumir a situação da seguinte forma: enquanto há 100 anos se publicava uma página de material escrito e ilustrado, hoje publicam-se 20 ou mesmo 100 páginas. Por outro lado, enquanto há 100 anos existia um talento artístico, hoje existem 2. Admito que, como consequência da escolarização, hoje haja um maior número de talentos virtuais que outrora não poderia ter-se tornado produtivo por não ter podido desenvolver os seus dotes. Admitamos, pois… que a um talento de então, correspondam hoje três ou mesmo quatro talentos artísticos. Isso em nada altera o facto de o consumo de material de leitura ou ilustrado ter ultrapassado, em larga medida, a produção natural de escritores ou desenhadores talentosos. Com o material sonoro, passa-se o mesmo. A prosperidade, o gramofone e a rádio criaram uma audiência de ouvintes cujo consumo cresceu desproporcionalmente ao respectivo crescimento demográfico e, por conseguinte, ao crescimento normal músicos de talento. Resulta, pois, que em todas as artes, tanto em números absolutos como relativos, a produção de resíduos é maior do anteriormente; e assim permanecerá, enquanto as pessoas continuarem a consumir em excesso, como actualmente, material de leitura, ilustrado ou de audição.” [Aldous Huxiey: Croisière d’hiver. Voyage en Amerique Centrale (1933) (tradução de Jules Castier). Paris, 1935, págs. 273-275.] Este tipo de consideração não é, manifestamente, progressista.
XI
A realização de um filme, especialmente de um filme sonoro, proporciona um espectáculo como nunca anteriormente, em tempo ou lugar algum, tinha sido imaginável. É um processo onde não existe nenhum ponto de observação que permita excluir do campo visual o equipamento de registo, de iluminação, o pessoal de apoio, etc. (A não ser que a pupila do espectador coincidisse com a lente da câmara). Esta circunstância, mais do que qualquer outra, faz com qualquer semelhança entre a cena no estúdio e a do palco passe a ser superficial e insignificante. Em princípio, o teatro conhece o ponto a partir do qual a acção é apreendida como ilusória, sem dificuldade. Para o cinema não existe um tal ponto. A sua natureza ilusória é uma natureza em segundo grau: resulta da montagem. Ou seja: no estúdio cinematográfico, o equipamento penetrou de tal forma na realidade que o seu aspecto puro, livre dos corpos estranhos do equipamento, é o resultado de um procedimento particular, nomeadamente do registo de um aparelho fotográfico ajustado expressamente e da sua montagem com outros registos do mesmo tipo. O aspecto da realidade, isento de aparelhagem, adquiriu aqui o seu aspecto artificial, e a visão da realidade imediata tornou-se um miosótis no mundo da técnica.
O carácter do cinema, que assim se opõe ao do teatro, pode ser confrontado, ainda mais elucidativamente, com o que se verifica na pintura. Aqui, deve colocar-se a questão: como se comporta o operador de câmara relativamente ao pintor? Para a sua resposta, seja-me permitida uma construção auxiliar que se apoia no conceito de operador, tal como é conhecido da cirurgia. O cirurgião representa o pólo de uma ordem cujo outro extremo é ocupado pelo mago. A atitude do mago que cura o doente colocando-lhe a mão em cima, é diferente da do cirurgião que realiza uma intervenção no doente. O mago mantém a distância natural que existe entre si próprio e o paciente; melhor dizendo: ele diminui-a pouco – por força da mão que coloca no doente – e aumenta-a muito – por força da sua autoridade. O cirurgião procede ao contrário: diminui muito a distância relativamente ao paciente – na medida em que intervém no seu interior – e, aumenta-a apenas ligeiramente – através do cuidado com que a sua mão se move nos órgãos do paciente. Isto é, contrariamente ao mago (que ainda está presente no médico), o cirurgião prescinde, no momento decisivo, de se defrontar, enquanto homem, com paciente, intervindo nele de uma forma operante. O mago e o cirurgião comportam-se como o pintor e o operador de câmara. O pintor, no seu trabalho, observa uma distância natural relativamente à realidade, o operador de câmara, pelo contrário, intervém profundamente na textura da realidade 22. Há uma enorme diferença entre as imagens que obtêm. A do pintor é total, enquanto a do operador de câmara consiste em fragmentos múltiplos, reunidos devido a uma lei nova. Assim, para o homem contemporâneo, a representação cinematográfica da realidade é a de maior significado porque o aspecto da realidade isento de equipamento, que a obra de arte lhe dá o direito de exigir, é garantido, exactamente através de uma intervenção mais intensiva com aquele equipamento.
___________
22 As ousadias do operador de câmara são, de facto, comparáveis às do operador cirúrgico. Luc Durtain, numa lista de habilidades gestuais específicas da técnica, refere as que “são necessárias na cirurgia, determinadas intervenções difíceis. Selecciono, como exemplo, um caso da otorrinolaringologia; refiro-me ao chamado processo perspectivo endonasal ou chamo a atenção para a habilidade acrobática que a cirurgia da laringe tem que usar, através da imagem invertida, no laringoscópio; podia ainda falar do trabalho de precisão da cirurgia auricular, semelhante ao de um relojoeiro. Que riqueza de precisão e de subtil acrobacia muscular não é exigida ao homem que quer reparar ou salvar o corpo humano! Pense-se na operação às cataratas, em que se trava virtualmente uma luta do aço com um tecido quase fluido ou nas operações abdominais mais significativas (laparotomia)”. (Luc Durtain: La technique et l’homme, in: Vendredi, Março 1936, no 19.)
Referência:
BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era da sua reprodutividade técnica [1955]. Tradução disponibilidade pela UFRS. Disponível em: http://www.ufrgs.br/obec/assets/acervo/arquivo/benjamin_reprodutibilidade_tecnica.pdf
Ilustração:
Imagem disponível em: http://pt.slideshare.net/Kanachan1/walter-benjamin-class-notes
Últimos Comentários