Pelo Direito da Mulher ao seu Corpo
BEAUVOIR E A LEGALIZACÃO DO ABORTO
SIMONE DE BEAUVOIR
[Excerto da obra “O Segundo Sexo”] – Importante: esta exposição de seu pensamento sobre a mulher data dos anos 1940 (a obra foi escrita a partir de meados daquela década e publicada em 1949), o que atesta o entrave evolutivo de 76 anos, ocorrido no Brasil, que vem impedindo a imprescindível Legalização do Aborto, haja vista seu caráter de questão de saúde pública.
A Mãe
É pela maternidade que a mulher realiza integralmente seu destino fisiológico; é a maternidade sua vocação “natural”, porquanto todo o seu organismo se acha voltado para a perpetuação da espécie. Mas já se disse que a sociedade humana nunca é abandonada à natureza. E, particularmente, há um século, mais ou menos, a função reprodutora não é mais comandada pelo simples acaso biológico; é controlada pela vontade.[1] Certos países adotaram oficialmente métodos precisos de controle de natalidade; nas nações submetidas à influência do catolicismo, esse controle realiza-se clandestinamente; ou o homem pratica o coitus interruptus ou a mulher expulsa os espermatozoides do corpo após o ato amoroso. Isso constitui, muitas vezes, uma fonte de conflitos e rancores entre amantes e esposos; o homem irrita-se por ter de vigiar seu prazer; a mulher detesta a tarefa da lavagem; ele se ressente com a fecundidade do ventre da mulher; ela receia esses germes de vida que ele arrisca depositar nela. E é uma consternação para ambos, quando, apesar das precauções, ela “pega” o filho. O caso é frequente nos países em que os métodos anticoncepcionais são rudimentares. Então o anti-physis assume assume uma forma particularmente grave: o aborto. Igualmente proibido nos países que autorizam o controle da natalidade, tem muito menor número de oportunidades de se propor. Mas na França é uma operação a que numerosas mulheres se veem obrigadas a recorrer e que assombra a vida amorosa da maioria delas.
Há poucos assuntos a cujo respeito a sociedade burguesa demostre maior hipocrisia: o aborto é um crime repugnante a que é indecente aludir. Que um escritor descreva as alegrias e os sofrimentos de uma parturiente, é perfeito; que fale de uma absortante e logo o acusarão de chafurdar na imundície e de descrever a humanidade sob um aspecto abjeto: ora, há na França anualmente número igual de abortos e de nascimentos. É um fenômeno tão expandido que cumpre considerá-lo como um dos riscos normalmente implicados na condição feminina. O código obstina-se, entretanto, a fazer dele um delito: exige que essa operação delicada seja executada clandestinamente. Nada mais absurdo do que os argumentos invocados contra a legislação do aborto. Pretende-se que se trate de uma intervenção perigosa. Mas os médicos honestos reconhecem, como o Dr. Magnus Hirschfeld, que “o aborto feito pela mão de um médico especialista, numa clínica e com as medidas preventivas necessárias, não comporta esses graves perigos cuja existência a lei afirma”. É, ao contrário, em sua forma atual, que ele faz a mulher correr grandes riscos. A falta de competência das “fazedoras de anjos”, as condições em que operam, provocam muitos acidentes, por vezes mortais. A maternidade forçada leva a botar no mundo crianças doentias, que os pais são incapazes de alimentar, que se tornarão vítimas da Assistência Pública, ou “crianças mártires”. Cabe observar, aliás, que a dita sociedade tão encarniçada na defesa dos direitos do embrião se desinteressa da criança a partir do nascimento; perseguem as praticantes do aborto em vez de procurarem reformar essa escandalosa instituição Assistência Pública; deixam em liberdade os responsáveis que entregam os pupilos a verdugos; fecham os olhos à horrível tirania que exercem “em casas de educação” ou em residências privadas os carrascos de crianças; se recusam a admitir que o feto pertence à mulher que o
[1] Cf. vol. 1, p. 177 e segs., em que se encontrará um histórico da questão do controle de natalidade e do aborto.
traz no ventre, e asseguram por outro lado que o filho é coisa dos pais; acabamos de ver na mesma semana um cirurgião condenado por práticas abortivas suicidar-se e um pai, que batera no filho até quase matá-lo, ser condenado a apenas três meses de prisão com sursis. Recentemente, um pai deixou o filho morrer de difteria por falta de cuidados; uma mãe recusou chamar o médico para a filha, em nome de seu abandono incondicionado à vontade divina; crianças jogaram-lhe pedras no cemitério, mas com a indignação de alguns jornalistas, uma coorte de pessoas de bem protestou declarando que os filhos pertenciam aos pais, que qualquer controle estranho era inaceitável. Há hoje “um milhão de crianças em perigo” diz o jornal Ce Soir; e France-Soir imprime que “quinhentas mil crianças encontram-se em perigo físico ou moral”. No norte da África, a mulher árabe não tem a possibilidade de provocar voluntariamente um aborto: em cada dez filhos que concebe, sete ou oito morreram e ninguém se incomoda que as penosas e difíceis maternidades matem o sentimento materno. Se a moral se satisfaz com isso, que pensar de tal moral? É preciso acrescentar que os homens que mais respeitam a vida embrionária são também os que se mostram mais diligentes quando se trata de condenar adultos a uma morte militar.
As razões práticas invocadas contra o aborto legal não têm nenhum peso; quanto às razões morais, reduzem ao velho argumento católico: o feto possui uma alma a que se veda o paraíso, suprimindo-o antes do batismo. É de observar que a Igreja autoriza ocasionalmente a morte de homens feitos: nas guerras ou quando se trata de condenados à morte; reserva porém para o feto um humanismo intransigente. Não é ele resgatado pelo batismo, mas, na época das guerras santas contra os infiéis, estes não o eram tampouco e o massacre deles era fortemente encorajado. As vítimas da Inquisição não se achavam sem dúvida todas em estado de graça, como hoje o criminoso que é guilhotinado ou os soldados que morrem no campo de batalha. Em todos esses casos, a Igreja confia na decisão de Deus; ela admite que o homem não passa de um instrumento em sua mão e que a salvação de uma alma se resolve entre essa alma e Deus. Por que proibir então que Deus acolha uma alma embrionária em seu Céu? Se um concílio o autorizasse, ele não protestaria como o fez na bela época do piedoso massacre dos índios. Em verdade, chocamo-nos aqui com uma velha tradição obstinada que nada tem a ver coma moral. É preciso contar também com esse sadismo masculino de que já tive a oportunidade de falar. O livro que o Dr. Roy dedicou a Pétain em 1943 é um exemplo edificante; é um monumento de má-fé. Insiste ele, paternalmente, sobre os perigos do aborto, mas nada lhe parece mais higiênico do que uma cesariana. Ele quer que o aborto seja considerado um crime e não um delito; deseja que seja proibido mesmo em sua forma terapêutica, isto é, quando a gravidez põe em risco a vida ou a saúde da mãe; é imoral escolher entre uma vida e outra, declara, e apoiando-se nesse argumento aconselha a sacrificar a mãe. Declara que o feto não pertence à mãe, que é um ser autônomo. Entretanto, quando esses mesmos médicos bem-pensantes exaltam a maternidade, afirmam que o feto faz parte do corpo materno, que não é um parasito alimentando a expensas dele. Vê-se a que ponto o antifeminismo é ainda vivo pela obstinação de certos homens em recusar tudo o que poderia libertar a mulher.
Aliás, a lei, que condena à morte, à esterilidade, à doença muitas jovens mulheres, e totalmente impotente em assegurar o aumento da natalidade. Um pouco acerca do qual concordam partidários e inimigos do aborto legal, é o fracasso radical da repressão. Segundo os professores Doléris, Balthazard, Lacassagne, teria havido na França quinhentos mil abortos por ano, por volta de 1933; uma estatística (citada pelo Dr. Roy), de 1938, calculava o número em um milhão. Em 1941, o Dr. Aubertin, de Bordéus, hesitava entre oitocentos mil e um milhão. Esta última cifra parece a mais próxima da verdade. Em um artigo de Combat, datado de março de 1948, o Dr. Desplas escreve:
O aborto entrou nos costumes… A repressão praticamente fracassou… No Seine, em 1943, 1.300 inquéritos acarretaram 750 inculpações com 360 mulheres detidas, 513 condenações de menos de um ano a mais de cinco, o que é pouco em relação aos 15.000 abortos presumidos no departamento. Em todo o território constam-se dez mil processos.
E acrescenta:
O aborto dito criminoso é tão familiar a todas as classes sociais quanto as políticas anticoncepcionais aceitas pela sociedade hipócrita. Dois terços das abortadas são mulheres casadas… Pode-se estimar aproximadamente que há na França o mesmo número de abortos que de nascimentos.
Em consequência de ser a operação praticada em condições frequentemente desastrosas, muitos abortos terminam com a morte da abortada.
Dois cadáveres de mulheres abortadas chegam por semana ao instituto médico-legal de Paris; muitos abortos provocam doenças definitivas.
Disseram às vezes que o aborto era um “crime de classes” e é em grande parte verdade. As práticas anticoncepcionais são muito mais espalhadas na burguesia; a existência do banheiro torna sua aplicação mais fácil do que entre os operários e camponeses privados de água corrente; as moças da burguesia são mais prudentes do que as outras; os filhos representam um fardo menos pesado para o casal; a pobreza, a crise de habitação, a necessidade de a mulher trabalhar fora de casa figuram entre as causas mais frequentes do aborto. Parece que é muitas vezes depois de duas maternidades que o casal resolve restringir os nascimentos; de modo que a abortada de traços horríveis é também a magnífica que embala nos braços dois anjos louros; a mesma mulher. Em um documento publicado em Temps Modernes de outubro de 1945, sob o título de “Sala Comum”, Mme Geneviève Sarreau descreve uma enfermaria de hospital em que teve a oportunidade de ficar algum tempo e onde muitas das doentes acabavam de sofrer curetagens: 15 em 18 tinham tido abortos, sendo que mais da metade provocados. A número 9 era mulher de um carregador do mercado; de dois casamentos tivera dez filhos vivos, dos quais só restavam três, e sete abortos sendo cinco provocados; empregava de bom grado a técnica do “gancho”, que expunha com complacência, e também comprimidos que indicava às companheiras. A número 16, com 16 anos, casada, tivera aventuras e sofria de uma salpingite em consequência de um aborto. A número 7, de 35 anos, explicava: “Faz vinte anos que estou casada, nunca o amei; durante vinte anos conduzi-me decentemente. Há três meses tive um amante. Uma só vez num quarto de hotel. Fiquei grávida… Então foi preciso, não é? Pus para fora. Ninguém sabe, nem meu marido, nem… ele. Agora acabou. Nunca mais recomeçarei. Sofre-se demais… Não me refiro à curetagem… Não, não, é outra coisa: é… amor-próprio, compreende”. A número 14 tivera cinco filhos em cinco anos; com quarenta anos parecia uma mulher velha. Em todas havia uma resignação feita de desespero: “a mulher foi feita para sofrer”, diziam tristemente.
A gravidade dessa experiência varia muito segundo as circunstâncias. A mulher burguesamente casada ou confortavelmente sustentada, apoiada num homem, com dinheiro e relações sociais, leva grande vantagem; primeiramente obtém muito mais facilmente uma licença para um aborto “terapêutico”; se necessário, tem os meios de pagar uma viagem à Suíça onde o aborto é largamente tolerado; nas condições atuais da ginecologia, é uma operação benigna quando executada por especialistas com todas as garantias de higiene e, se preciso, os recursos da anestesia. Na ausência da cumplicidade oficial, ela encontra ajudas oficiosas igualmente seguras: conhece bons endereços, tem bastante dinheiro para pagar cuidados conscienciosos e sem esperar que a gravidez se ache adiantada: irão tratá-la com consideração; algumas dessas privilegiadas acreditam que esse pequeno acidente faz bem à saúde e dá brilho à tez. Inversamente, há poucas desgraças mais lamentáveis do que a de uma moça sozinha, sem dinheiro, que se vê acuada a uma “crime” a fim de apagar a mancha de um “erro” que os seus não perdoariam: é anualmente na França o caso de trezentas mil empregadas, secretárias, estudantes, operárias, camponesas; a maternidade ilegítima é ainda um problema tão terrível que muitas preferem o suicídio ou o infanticídio à condição de mãe solteira: isso quer dizer que nenhuma penalidade a impediria de “botar o filho para fora”. Caso banal e que se encontra muitas vezes é o que vem relatado numa confissão recolhida pelo Dr. Liepmann.[1] Trata-se de uma berlinense, filha natural de um sapateiro e de uma doméstica:
[1] Liepmann, Jeunesse et sexualité.
Travei relações com o filho de um vizinho, dez anos mais velho do que eu… As carícias me pareceram tão inéditas que, meu Deus, deixei correr a coisa. Entretanto, de modo nenhum aquilo era amor. Ele continuou porém a iniciar-me, dando-me a ler livros sobre mulher; finalmente dei a ele a minha virgindade. Quando, depois de uma espera de dois meses, aceitei um lugar de preceptora na escola maternal de Speuze, estava grávida. Não tive mais regras durante dois outros meses. Meu sedutor escrevia-me que era absolutamente necessário fazê-las voltar bebendo petróleo e comendo sabão de cinza. Não sou capaz de descrever-lhe os tormentos que sofri… Tive que ir sozinha até o fim dessa miséria. O medo de ter o filho levou-se a fazer a coisa horrorosa. Foi então que aprendi a odiar o homem.
O pastor da escola, tendo sabido da história por uma carta perdida, prega-lhe um sermão e ela separa-se do rapaz; tratam-na como ovelha negra.
Foi como se tivesse vivido dezoito meses numa casa de correção.
Em seguida ela se emprega como babá na casa de um professor e aí permanece quatro anos.
Nessa época aprendi a conhecer um magistrado. Senti-me feliz por ter um homem de verdade a amar. Com meu amor dei-lhe tudo. Como consequência de nossas relações, aos 24 anos dei à luz um menino bem-constituído. A criança tem hoje dez anos. Há nove anos e meio que não revejo o pai… como eu achasse insuficiente a importância de 2.500 marcos e como, por seu lado, recusando dar um nome ao filho, renegasse a paternidade, tudo terminou entre nós. Nenhum homem me inspira mais desejo.
É muitas vezes o próprio sedutor que convence a mulher a se livrar do filho. Ou ele já a abandonou quando fica grávida, ou ela quer generosamente esconder-lhe a desgraça, ou não encontra nenhum auxílio nele. Por vezes, não é sem o lamentar que recusa o filho; ou porque não resolve logo suprimi-lo, ou porque não conhece nenhum endereço, ou ainda porque não tem dinheiro disponível e perdeu tempo tentando drogas ineficientes; já chegou ao terceiro, quarto, quinto mês da gravidez quando decide livrar-se do feto; o aborto será então infinitamente mais perigoso, mais comprometedor do que durante as primeiras semanas. A mulher sabe disto; é com angústia e desespero que tenta livrar-se dele; no campo, o emprego da sonda não é muito conhecido; a camponesa que “errou” deixa-se cair da escada do celeiro, rola pelos degraus da escadaria, e muitas vezes machuca-se sem resultado; por isso acontece que se encontre nas cercas, nos cerrados, nas latrinas, algum cadaverzinho estrangulado. Na cidade, as mulheres auxiliam-se mutuamente. Mas nem sempre é fácil descobrir uma “fazedora de anjos” e menos ainda juntar a importância exigida; a mulher grávida pede socorro a uma amiga ou opera-se a si mesma; essas cirurgiãs ocasionais são muitas vezes pouco competentes; facilmente se perfuram com o gancho ou a agulha de tricô; um médico contou-me que uma cozinheira ignorante, querendo injetar vinagre no útero, injetou-o na bexiga, o que lhe provocou horríveis sofrimentos. Brutalmente executado e maltratado, o aborto, muitas vezes mais penoso do que um parto normal, é seguido de perturbações nervosas podendo ir até a beira do ataque epiléptico, provoca às vezes graves moléstias internas e pode desencadear uma hemorragia mortal. Collete contou em Gribiche a dura agonia de uma pequena dançarina de music hall entregue às mãos ignorantes da mãe; um remédio habitual era, diz, beber uma solução concentrada de sabão e correr em seguida durante um quarto de horas: com tais tratamentos é muitas vezes matando a mãe que se suprime o filho. Falaram-me de uma datilógrafa que ficou durante quatro dias no quarto , banhada em sangue, sem comer nem beber, porque não ousara pedir socorro. É difícil imaginar abandono mais horrível do que esse em que a ameaça de morte se confunde com a do crime e da vergonha. A provação é menos rude do que no caso das mulheres pobres, mas casadas, que agem de acordo com o marido e sem se atormentarem com escrúpulos inúteis: uma assistente social disse-me que nas favelas elas se aconselham mutuamente, emprestam instrumentos e se assistem tão simplesmente quanto se se tratasse de extirpar calos nos pés. Mas suportam duros sofrimentos físicos; os hospitais são obrigados a receber a mulher cujo abortamento se acha iniciado; mas a castigam sadicamente recusando-lhe qualquer calmante durante a operação final de curetagem. Como se vê do testemunho recolhido por G. Sarreau, tais perseguições não indignam sequer as mulheres, demasiadas habituadas aos sofrimento: mas elas são sensíveis às humilhações que as cumulam. O fato de ser a operação clandestina, e criminosa multiplica-lhes os perigos e dá-lhe caráter abjeto e angustiante. Dor, doença, morte assumem um aspecto de castigo: sabe-se que distância separa o sofrimento da tortura, o acidente da punição; através dos riscos que assume, a mulher sente-se culpada; é essa interpenetração da dor e do erro que é singularmente penosa.
Esse aspecto moral do drama é sentido com maior ou menor intensidade segundo as circunstâncias. Para as mulheres muito livres de preconceitos, graças à sua fortuna, à sua situação social, ao meio a que pertencem, e para aquelas a quem a pobreza ou a miséria ensinaram o desdém da moral burguesa, quase não há problema: há um momento mais ou menos desagradável a passar, e é preciso passar por ele, eis tudo. Mas numerosas mulheres são intimidadas por uma moral que guarda prestígio a seus olhos, embora não possam adaptar sua conduta a ela; respeitam interiormente a lei que infringem e sofrem por cometer um delito; sofrem ainda mais por terem de apelar para cúmplices. Suportam primeiramente a humilhação de mendigar: mendigam um endereço, os cuidados do médico, da parteira; arriscam-se a ser maltratadas com altivez ou se expõem a uma conivência degradante. Convidar deliberadamente outrem a cometer um delito é uma situação que, em sua maioria, os homens ignoram e que a mulher vive num misto de medo e vergonha. Essa intervenção que pede, muitas vezes, em seu coração, ela a rechaça. Acha-se dividida no interior de si mesma. É possível que seu desejo espontâneo seja conservar o filho que impede de nascer; mesmo que não deseje positivamente a maternidade, sente com mal-estar a ambiguidade do ato que pratica. Pois se não é verdade que o aborto seja um assassinato, não pode contudo ser tratado como uma simples prática anticoncepcional; houve um acontecimento que é um começo absoluto e cujo desenvolvimento se detém. Certas mulheres são perseguidas pela recordação do filho que não houve. Helen Deutsch[1] cita o caso de uma mulher casada, psicologicamente normal, que tendo, por causa de sua condição física, perdido duas vezes fetos de três meses, mandou erguer-lhes dois pequenos túmulos de que cuidou com grande devoção, mesmo depois do nascimento de numerosos filhos.
[1] Deutsch, Psycology of Women.
Com muito mais razão, sendo o aborto provocado, terá muitas vezes a mulher o sentimento de ter cometido um pecado. O remorso, que acompanha na infância o desejo ciumento da morte do irmãozinho recém-nascido, ressuscita e a mulher se sente culpada de ter realmente matado um filho. Melancolias patológicas podem exprimir esse sentimento de culpa. Ao lado das mulheres que pensam ter atentando contra uma vida estranha, muitas ha que pensam ter sido mutiladas de uma parte de si mesmas; nasce disso um rancor contra o homem que aceitou ou solicitou a mutilação. , ainda, H. Deusch que cita o caso de uma moça profundamente apaixonada pelo amante, que insistiu ela própria fazer desaparecer um filho que seria um obstáculo à felicidade de ambos; ao deixar o hospital, recusou-se, e para sempre, a rever o homem que amava. Se uma ruptura tão definitiva é rara, em compensação é frequente que a mulher se torne frígida, seja com todos os homens, seja com o que a engravidou.
Os homens tendem a encarar o aborto com displicência; consideram como um desses numerosos acidentes a que a malignidade da natureza condenou as mulheres; não medem os valores que se acham empenhados no aborto. A mulher renega os valores da feminilidade, seus valores, no momento em que a ética masculina se contesta da maneira mais radical. Todo o universo moral dela é abalado. Com efeito, repetem à mulher desde a infância que ela é feita para gerar e cantam-lhe o esplendor da maternidade; os inconvenientes de sua condição – regras, doenças etc. –, o tédio das tarefas caseiras, tudo é justificado por esse maravilhoso privilégio de pôr filhos no mundo. E eis que o homem, para conservar sua liberdade, para não prejudicar seu futuro no interesse de sua profissão, pede à mulher que renuncie a seu triunfo de fêmea. O filho não é mais um tesouro sem preço: gerar não é mais uma função sagrada: essa proliferação torna-se contingente, importuna, é mais um dos inconvenientes da feminilidade. O aborrecimento mensal da menstruação apresenta-se, comparativamente, como abençoado; eis que se aguarda ansiosamente a volta do escorrimento vermelho que mergulhara a menina no desespero; foi prometendo as alegrias do parto que a tinham consolado. Mesmo consentindo no aborto, desejando-o, a mulher o sente como um sacrifício de sua feminilidade: é preciso que ela veja em seu sexo, definitivamente, uma maldição, uma espécie de enfermidade, um perigo. Indo até o fim dessa renúncia, certas mulheres tornam-se homossexuais em consequência do traumatismo do aborto. Entretanto, no mesmo momento em que, para melhor realizar seu destino, o homem pede à mulher que sacrifique as suas possibilidades carnais, ele denuncia a hipocrisia do código moral dos homens. Estes proíbem universalmente o aborto; mas aceitam-no singularmente como uma solução cômoda; podem se contradizer com um cinismo absurdo; mas a mulher experimenta essas contradições em sua carne ferida; ela é geralmente demasiado tímida para se revoltar deliberadamente contra a má-fé masculina; conquanto considerando-se vítima de uma injustiça que a decreta criminosa contra sua vontade, sente-se humilhada, maculada; ela é que encarna, numa figura concreta e imediata, em si, a falta do homem; ele comete a falta, mas livra-se dela na mulher; ele diz somente palavras, num tom suplicante, ameaçador, sensato, furioso: esquece-as depressa; cabe a ela traduzir essas frases na dor e no sangue. Algumas vezes, ele não diz nada, vai-se embora; mas seu silêncio e sua fuga são um desmentido ainda mais evidente de todo o código moral instituído pelos homens. Não devemos nos espantar com isso que chamam “a imoralidade” das mulheres, tema predileto dos misóginos; como não teriam elas uma íntima desconfiança em relação aos princípios arrogantes que os homens afirmam publicamente e em segredo denunciam? Elas aprendem a não mais acreditar no que dizem os homens quando exaltam a mulher, nem quando exaltam o homem: a única coisa certa é esse ventre revolvido e sangrento, esses molambos de vida vermelha, essa ausência do filho. É com o primeiro aborto que a mulher começa a “compreender”. Para muitas delas o mundo nunca mais será o mesmo. E, no entanto, por falta de difusão dos métodos anticoncepcionais, o aborto é hoje na França o único caminho aberto à mulher que não quer pôr no mundo filhos destinados a morrer na miséria. Stekel[1] disse-o muito justamente: “A proibição do aborto é uma lei imoral, porquanto deve ser obrigatoriamente violada, todos os dias, todas as horas”.
[1] A mulher frígida.
***
Referência:
BEAUVOIR, Simone. O segundo sexo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009. p. 645-656.
Ilustração:
Estripador de seios (The Breast Ripper) – dispositivo de tortura utilizado exclusivamente em mulheres, de maneira dolorosa e cruel para mutilar seus seios, usados nas “bruxas” e, principalmente, nas acusadas de aborto e adultério. Disponível em: http://tabernadofauno.blogspot.com/2015/04/os-principais-objetos-de-tortura-da.html
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