Filosofando sobre o direito à morte
FILOSOFANDO SOBRE O DIREITO À MORTE
LEILA BRITO
A gente morre para provar que viveu.
GUIMARÃES ROSA
… E tudo na Vida se resume na Morte. Nascemos para viver, mas vivemos para morrer. Assim, Vida e Morte conformam o paradoxo existencial de todo ser vivo da natureza.
Sobre a questão, reporto-me a um trecho de um famoso ensaio de Jorge Luis Borges – A Imortalidade, onde ele se refere ao Fédon de Platão, um diálogo que conta o que se passou na última tarde vivida por Sócrates, quando seus amigos sabem que chegou o navio de Delos, e que nesse dia Sócrates beberá a cicuta: Em seguida, vem uma súplica admirável – talvez a parte mais admirável do diálogo. Os amigos entram, Sócrates está sentado na cama e já lhe retiram os grilhões. Esfregando os joelhos e saboreando o prazer de não mais estar sofrendo com o peso das correntes, disse: “É extraordinário! As correntes me eram pesadas – era uma forma de dor. Agora sinto alívio porque elas me foram retiradas. O prazer e a dor não se separam, são gêmeos”. Que admirável o fato de que, nesse momento, no último dia de sua vida, Sócrates não diga que está para morrer, mas, sim, que faça reflexões no sentido de que o prazer e a dor são inseparáveis!
E neste ponto do discurso, Borges filosofa sobre a idéia defendida por Sócrates, que, ao encarar corajosamente sua morte iminente, diz aos amigos, que a substância psíquica (a alma) pode viver melhor sem o corpo; que o corpo é um estorvo, lembrando a doutrina, vigente na Antiguidade, de que estamos encarcerados em nosso corpo. E Borges enfatiza a interrelação corpo e alma: Gustav Spiller em seu admirável tratado de psicologia, diz que se pensamos em outras desventuras sofridas pelo corpo – uma mutilação, um golpe na cabeça – isto não causa nenhum benefício à alma. Não há por que supor que um grave acidente sofrido pelo corpo seja benéfico para a alma.
Considerando a alma no sentido estrito ao pensamento (ideias) e à emoção (sentimentos) que regem a essência do ser humano, e não no sentido metafísico (religioso), há que concordar com Spiller e Sócrates, de que, assim como corpo e alma, o prazer e a dor são inseparáveis. E sendo assim, há que defender a Eutanásia como um meio de libertação do ser humano de um sofrimento incurável do seu corpo e, consequentemente, de sua alma. Neste âmbito da indivisibilidade do ser, o Suicídio pode ser referenciado como contraponto da Eutanásia, já que ele se dá, exatamente, quando o sofrimento da alma decide pela morte do corpo.
Como atesta Borges, Santo Tomás de Aquino, o mestre máximo, nos legou esta frase: “Intellectus naturaliter desiderat esse semper” – a mente espontaneamente deseja ser eterna. À qual poderíamos responder que deseja outras coisas também; deseja, muitas vezes, parar. Há os casos dos suicidas, ou nosso exemplo cotidiano de pessoas que desejamos dormir – o que também é uma forma de morte. […] E o escritor ressalta a estrofe do poeta francês Leconte de Lisle: “Liberem-no do tempo, do número e do espaço e devolvam-lhe o repouso que lhe haviam tirado”.
Este é o primeiro ponto a ser considerado, quando se fala da Eutanásia. O segundo aspecto, está relacionado à vida no estágio intra-uterino, como Borges abordou em sua reflexão filosófica: Fechner pensa no embrião, no corpo antes de sair do ventre da mãe. Nesse corpo há pernas que para nada servem, assim como braços, mãos – nada disso tem sentido; só pode ter sentido em uma vida ulterior. Segundo Borges, devemos supor que o mesmo ocorre conosco, que estamos plenos de esperança, de temores, de conjecturas. E de nada disso precisamos para uma vida puramente mortal. Precisamos do que os animais têm, e eles podem prescindir de tudo isto, que pode ser usado depois, em outra vida mais plena. É um argumento a favor da imortalidade.
E com base nele, dentre os seguidores da filosofia oriental, há quem ateste que a morte é uma questão de livre arbítrio: A morte física estará sempre disponível, mas sempre foi e é uma questão de escolha pessoal. Neste sentido, o estágio de vida intra-uterina também remete a outro pressuposto, naturalmente aqui abordado no sentido dialético, sob a ótica de uma lógica pura e simples, ou seja, desvinculada de qualquer fundamentação religiosa: o Aborto (aqui tratado superficialmente e do ponto de vista do embrião, e não do direito inalienável da mulher sobre o próprio corpo), quando se discute o direito da mãe decidir sobre a vida do filho nela fecundado (porque a mulher não se autofecunda, mas é fecundada pelo homem). É nessa escolha pessoal, afiançada pelo livre arbítrio, que se pode fazer a defesa do direito à morte, à Eutanasia. Porque assim como é defendido que o embrião do ser humano teria “direito à vida”, inclusive legalmente, considerando-se o fato de já existir como ser vivo independente da vontade da mãe que o carrega no ventre (se a Vida em si é onipotente, o Existir em si é soberano), da mesma forma o ser humano teria “direito à morte”, uma vez que também a Morte é onipotente e, portanto, em si soberana. Infere-se, pois, que Morte e Vida são direitos inalienáveis de todos os seres vivos, indistintamente, constituindo, portanto, a lei magna da natureza.
Em decorrência de tal princípio, todas as situações envolvendo a Eutanásia, o Suicídio e o Aborto são passíveis de uma análise profunda das razões que movem o ser humano para o limiar do confronto entre a Vida e a Morte. Há que sermos condescendentes e jamais julgarmos as razões que conduziram um ou outro ser humano a decidir pela morte, acatando e respeitando sua decisão. Aqui, sim, reside a verdadeira grandeza de uma visão evoluída: quando a Vida deixa de ser melhor que a Morte? Posso responder isto por alguém que não seja Eu?
LEILA BRITO
Belo Horizonte, 2003.
Referência:
BRITO, Leila. Filosofando sobre o direito à morte. Chá.com Letras. Belo Horizonte, 2003. Disponível em: http://www.chacomletras.com.br/2009/12/filosofando-sobre-o-direito-a-morte/. Acesso em: dia, mês, ano. (ex.: 02 dez. 2009)
Ilustração:
A Morte de Sócrates
Jacques-Louis David, 1787.
Obra de apoio científico:
BORGES, Jorge Luis. Cinco visões pessoais (A Imortalidade). Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1985. p. 13-20
É complexo mesmo Leila. A questão de respondermos isso por alguem é de uma responsabilidade e de uma irresponsabilidade ao mesmo tempo. Quando a vida deixa de ser melhor que a morte, desvincular a matéria da vida, como se, quem já não prima pela vida visse na morte uma forma de se liberta de qualquer tipo de sofrimento e aflição. E isso ocorre mesmo não tendo a certeza do que ocorre depois.
Falando unicamente por mim, afirmo que não gosto mesmo de julgar nessa questão. Porque acho que quem chega a esse ponto de querer o direito à morte ( não importando de que forma) já está a um nível de sofrimento tão grande.
Leila, li gostei.
Mas fazer comentário não sei.
Não gosto muito de falar em MORTE.
Eu 74 anos – meu marido 80 anos.
A morte, vira um monstro q pode chegar a qualquer momento.
Beijos
Querida Solange…
Escrevi este ensaio, em 2003, quando participava de um grupo de debate, via Internet, liderado pelo meu amigo professor de História e autor de livros didáticos e paradidáticos Ricardo Moura Faria (saudades daquele tempo, Ricardo!). A motivação dele na escolha do tema foi a polêmica gerada por uma solicitação de Eutanásia ao governo francês. Não me recordo se pela enferma ou se pela família dela, em seu nome.
Lamento tê-la impressionado, minha amiga. Sei que o tema é delicado e forte, mas, realista e naturalista que sou, e sendo a Morte inevitável e NATURAL, depois de vivenciar a experiência de tê-la sentido próxima, bem próxima de mim, em 1987 (ocasião em que compus o último poema postado aqui no blog: “Naquelas madrugadas…”), e questionando a conotação religiosa NEGATIVA que sempre lhe foi dada (de se pagar no fogo do inferno pelos “pecados” cometidos em vida), eu (e isto é algo pessoal, claro!) optei por encará-la de frente, sem medo, independente da idade que ela decidisse levar-me.
Na verdade, nunca tive medo dela, apenas me preocupei, nessa ocasião específica em que ela se achegou de forma ameaçadora, com meus filhos ainda crianças, que ela me levasse antes de educá-los e capacitá-los para “andar” com as próprias pernas. Como vê, uma preocupação de ordem prática.
Comentar sobre este fato, lembrou-me outro poema que escrevi anteriormente, em 1986, salvo engano – “Confissão”. Vou postá-lo a seguir, especialmente, para você, Solange – para que reflita. É uma forma de passar-lhe um sentimento positivo contrário ao comumente negativo sentido pelos humanos (culturalmente estimulados a tomar a morte como castigo) em relação a este fim existencial que, no meu entendimento, deve ser assimilado, se não com alegria, pelo menos com SABEDORIA. Pense: quanto mais velho se morre, mais gratificada a pessoa deve morrer, pela dádiva de ter vivido o máximo de tempo possível, pois isto é privilégio de poucos, concorda?
De minha parte, pretendo morrer feliz, seja lá a idade em que tal ocorrer, pois encaro a Morte como coroamento da Vida. Mas teimosa que sou, pretendo viver muito e ser a velhinha mais porralouca do pedaço, que nem a Maude de “Ensina-me a viver”… rsrs Mas sem o final que ela buscou.
Abraço,
Leila
PS.: sugiro-lhe que veja filme: “Ensina-me a viver” ou, no título original, “Harold e Maude”. É fantástico! Maravilhoso!!!
Corajoso colocar o tema. Os filósofos sempre se interessaram pela morte, mas, como dizia Espinosa, pensam mais na vida (como vivê-la), a morte dá a finitude do ser. Adequada e célebre a ilustração. Excelente, como sempre, o texto de Borges.
Leila, não consigo separar a morte na forma de suicídio e aborto das religiões, as suas regras de dominação atravéz da moral imposta. Quem inventou a primeira puta, foi um religioso regeitado por uma viúva muito bonita e assim recebendo o apoio das perversas da hora, puderam exercitar o sádismo “puritano” no seu orgasmo pleno, quem traduziu que mãe solteira é puta? Quem excíta a discriminação entre “puros” e pecadores? Pois é na mesma forma que no passado extraiam confissões atravez da tortura pregando a tolerância, hoje eles apelam mais uma vez na forma covarde de sua prejudicial existência. Materia prima de religião é miséria, ignorâcia e angustia. É muito mais harmonioso com a natureza humana uma festa do calígula do que uma missa com quem parío o demônio…
Walter…
Atéia que sou, por convicção (posso dizer que meu ateísmo é crônico), vejo a(s) religião(ões) como um mal terrível. Dentre seus malefícios centrais: 1) o rebaixamento do homem como ser “dïminuto” e “sujo” perante a grandeza e pureza de deus – o onipotente, onipresente e onisciente que tudo pode; e 2) a sua dependência psico-emocional a esse poder todo poderoso que o aliena do seu próprio ser, da sua potencialidade humana e da sua realidade existencial, aprisionando-o na fantasia covarde da vida além da morte (incentivar capciosamente o medo da morte, pela sua negação com a promessa da vida eterna, é o alvo principal das religiões).
Alienação perniciosa cujo fim único é destitui-lo de senso crítico, imobilizando-o pela ignorância (como você bem disse), para que seja mais facilmente dominado pelos mais fortes, como bem nos lembra Marx com sua célebre frase: “A religião é o ópio do povo”. Portanto, é uma droga mesmo.
Abraço…
A AFIRMAÇÃO ” …O CORPO É UM ESTORVO…” ALÉM DE MUITO PROFUNDA É UM DESPRENDIMENTO TOTAL.
MUITO BOM TEXTO….
BJUSSSSSSSSSSSSSSSS
Que maravilhoso texto, Leila. Tenha pensado muito sobre isso e tenho programado uma crônica a fazer sobre esse mesmo assunto. Pena que estou apressadíssimo (tratando da renovação da CNH no DETRAN) e não possa ficar mais tempo.
Adquiri recentemente o livro (best seller americano), intitulado “A Solução Final” (recomendo fortemente esta leitura) que trata exatamente sobre este assunto, apoiando o direito de qualquer pesoa morrer com dignidade e poder escolher e/ou autorizar pela eutanásia, ortotanásia ou “suicídio assistido” a hora e a forma da sua morte.
É um tema que precisa ser seriamente discutido. Alguns países já reconhecem esse direito ao ser humano, mas a maioria não.
Volto aqui com mais tempo para falarmos sobre isso. Procure o livro recomendado, vasculhe bibliotecas, sebos e internet, mas ache-o. LEIA O LIVRO, LEILA! (só não digo que é uma ordem, porque não tenho autoridade para tanto). O meu, demorei mais de um mês e só consegui por encomenda, em um sebo virtual.
Obrigado pelo seu texto (Grupo Bilderberg e palavras de Kennedy sobre “A Nova Ordem Mundial”), colocado pela Marilda na rede Observatório Político Brasileiro. Veja lá o meu comentário.
Se quiser aprofundar-se sobre o assunto (os judeus e a “nova ordem mundial”), visite a rede “Irreligiosos” (http://irreligiosos.ning.com). O texto fala sobre a inquisição católica e os perigos do islamismo e do judaísmo.
Abraços!
Em tempo: Desculpe os erros de digitação e palavras repetidas em parágrafo no comentário anterior. É a pressa.
Leila Brito, minha irmã espiritual, aonde suas severas críticas sempre construtivas elevou meu espírito, me conduzindo com mais liberdade, dizendo realmente o que vem do fundo da minha alma e do meu ser.
Todos tem o direito de desfrutar sua vida.
Alguns, captam, recebem com mais facilidade as mensagens de firmesa da força para proseguir.
Outros, não conseguem absorver esta força, são almas fracas que tem seu destino traçado para
viverem até o dia já predestinado.
No sofrimento físico, quando não se tem mais condições de a Medicina algo fazer, concordo com a eutanasia.
Do sofrimento espiritual daquele ser que não pratica o bem, somente a maldade, o egoismo perverso,
prejudicando o próximo, não haverá quem o socorra; esta alma perversa nem a eutanasia, nem
o suicídio, vão livrá-la de vagar pelos becos mais penosos e obscuros no caminho das trevas.
Sabemos que a vida é linda e temos todas as oportunidades para vivê-la.
Recebemos a força; cabe a cada um de nós dirigir o caminho no sentido positivo do equilíbrio, do correto, orientando, criticando, aceitando, amando e ensinando.
Eu amo o meu pé de louro com 38 anos de idade aonde o beija-flor faz seu ninho, alí ganhando seus
filhotes; troco todos os dias sua água doce; quando esqueço, eles entram na casa me avisando, isto é a magia do amor, do viver bem, do querer o melhor para todos.
Não devemos temer a morte.
Este mundo não é nosso, estamos nele de passagem, e devemos apreciar o brilho das estrelas
Marilda Oliveira
A vida inteira tentamos driblá-la e quando, finalmente, a esquecemos, ela nos passa a perna. E recomeçamos tudo outra vez…
Brinco de esconde-esconde com a morte, há cinco décadas! Mas, a cada dia, fica mais difícil achar um lugar para me esconder. rs
Sou a favor da legalização da eutanásia. A vida, em que pese alguns assim o acharem, não é bem indisponível. Prova disso é que o suicídio não é punível do ponto de vista do Direito Penal, em face de um princípio desse ramo do Direito, segundo o qual ninguém será punido pelo mal que pratica contra si mesmo (princípio da alteridade), a não ser com objetivo de fraude. Entretanto, tenho posição contrária ao aborto, uma vez que a vida que a mulher carrega no ventre não lhe pertence, não cabendo o qrgumento que se trata de direito relacionado ao próprio corpo.