Walter Benjamin (Parte I)
As nossas belas-artes foram instituídas e os seus tipos e usos fixados numa época que se diferencia decisivamente da nossa, por homens cujo poder de acção sobre as coisas era insignificante quando comparado com o nosso. Mas o extraordinário crescimento dos nossos meios, a capacidade de adaptação e exactidão que atingiram, as ideias e os hábitos que introduzem anunciam-nos mudanças próximas e muito profundas na antiga indústria do Belo. Em todas as artes existe uma parte física que não pode continuar a ser olhada nem tratada como outrora, que já não pode subtrair-se ao conhecimento e potência modernos. Nem a matéria, nem o espaço, nem o tempo são desde há vinte anos o que foram até então. E de esperar que tão grandes inovações modifiquem toda a técnica das artes, agindo, desse modo, sobre a própria invenção, chegando talvez mesmo a modificar a própria noção de arte em termos mágicos.
Paul Valéry: Pièces sur l’art. Paris (s. data) pp. 103/104 (‘La conquête de l’ubiquité”).
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(*) Trata-se da segunda versão do texto, iniciada por Walter Benjamin em 1936 e publicada em 1955.
PRÓLOGO
Quando Marx empreendeu a análise do modo de produção capitalista, este modo de produção estava ainda nos seus primórdios. Marx orientou a sua análise de tal forma que ela adquiriu um valor de prognóstico. Recuou até às relações fundamentais da produção capitalista e apresentou-as de forma tal que elas explicitaram aquilo que, de futuro, se poderia esperar do capitalismo. Ficou explícito que dele seria de esperar, não %ó uma exploração crescentemente agravada do proletariado, como também, por fim, a criação de condições que tomariam possível a sua própria abolição.
A transformação da superstrutura, que decorre muito mais lentamente do que a da infra- estrutura, necessitou de mais de meio século para tomar válida a alteração das condições de produção, em todos os domínios da cultura. Só hoje se pode indicar sob que forma isso sucedeu. A essas indicações colocam-se certas exigências de prognóstico. Mas estas exigências correspondem menos a teses sobre a arte do proletariado depois da tomada de poder, para não falar da sociedade sem classes, do que a teses sobre as tendências de evolução da arte, sob as condições de produção actuais. A sua dialéctica nota-se tanto na superstrutura como na economia. Por essa razão seria errado subestimar o valor de luta de tais teses. Eliminam alguns conceitos tradicionais – como a criatividade, a genialidade, o valor eterno e o secreto – conceitos cuja aplicação descontrolada (e actualmente dificilmente controlável) conduz ao tratamento de material factual num sentido fascista. Os conceitos seguidamente introduzidos, novos em teoria da arte, diferenciam-se dos correntes pelo facto de serem totalmente inadequados dos para fins fascistas. Pelo contrário, são aproveitáveis para formulação de exigências revolucionárias em politica de arte.
I
Por princípio a obra de arte sempre foi reprodutível. O que os homens tinham feito sempre pôde ser imitado por homens. Tal imitação foi também exercitada por alunos para praticarem a arte, por mestres para divulgação das obras e, finalmente, por terceiros ávidos de lucro. Em contraposição a isto, a reprodução técnica da obra de arte é algo de novo que se vai impondo, intermitentemente na história, em fases muito distanciadas umas das outras, mas com crescente intensidade. Os Gregos conheciam apenas dois processos de reprodução técnica de obras de arte: a fundição e a cunhagem. Bronzes, terracotas e moedas eram as únicas obras de arte que podiam produzir em massa. Todas as outras eram únicas e não podiam ser reproduzidas tecnicamente. As artes gráficas foram reproduzidas pela primeira vez com a xilogravura e passou longo tempo até que, pela impressão, também a escrita fosse reproduzida. São conhecidas as enormes alterações que a impressão, a reprodutibilidade técnica da escrita, provocou na literatura. Mas à escala mundial, tais modificações são apenas um caso particular, ainda que extraordinariamente importante do fenómeno que aqui se observa. À xilografia juntam-se, no decorrer da Idade Média, a gravura em cobre e a água- forte, bem como a litografia no início do século XIX.
Com a litografia, a técnica de reprodução regista um avanço decisivo. O processo muito mais conciso, que diferencia a transposição de um desenho para uma pedra do seu entalhe num bloco de madeira, ou da sua gravação numa placa de cobre, conferiu, pela primeira vez, às artes gráficas a possibilidade de colocar no mercado os seus produtos, não apenas os produzidos em massa (como anteriormente) mas ainda sob formas todos os dias diferentes. A litografia permitiu às artes gráficas irem ilustrando o quotidiano. Começaram a acompanhar a
impressão. Mas poucas décadas após a invenção da litografia, as artes gráficas foram ultrapassadas pela fotografia. Pela primeira vez, com a fotografia, a mão liberta-se das mais importantes obrigações artísticas no processo de reprodução de imagens, as quais, a partir de então, passam a caber unicamente ao olho que espreita por uma objectiva. Uma vez que olho apreende mais depressa do que a mão desenha, o processo de reprodução de imagens foi tão extraordinariamente acelerado que pode colocar-se a par da fala. O operador de cinema ao dar à manivela, no estúdio, pode acompanhar a velocidade com que o actor fala. Se o jornal ilustrado estava virtualmente oculto na litografia, também na fotografia o está filme sonoro. A reprodução técnica do som foi iniciada no fim do século passado. Os esforços convergentes fizeram antever uma situação que Paul Valéry caracterizou, com a seguinte frase: “Tal como a água, o gás e a energia eléctrica, vindos longe através de um gesto quase imperceptível, chegam a no sãs casas para nos servir, assim também teremos ao nosso dispor imagens ou sucessões de sons que surgem por um pequeno gesto, quase um sinal, para depois, do mesmo modo nos abandonarem”1. No início do século XX, a reprodução técnica tinha atingido um nível tal que começara a tornar objecto seu, não só a totalidade das obras de arte provenientes de épocas anteriores, e a submeter os seus efeitos às modificações mais profundas, como também a conquistar o seu próprio lugar entre os procedimentos artísticos. Para o estudo deste nível, nada é mais elucidativo do que as suas duas diferentes manifestações – a reprodução da obra de arte e o cinema – e a sua repercussão retrospectiva sobre a arte, na sua forma tradicional.
II
Mesmo na reprodução mais perfeita falta uma coisa: o aqui e agora da obra de arte – a sua existência única no lugar em que se encontra. É, todavia, nessa existência única, e apenas ai, que se cumpre a história à qual, no decurso da sua existência, ela esteve submetida. Nisso, contam tanto as modificações que sofreu ao longo do tempo na sua estrutura física, como as diferentes relações de propriedade de que tenha sido objecto2. Os vestígios da primeira só podem ser detectados através de análises de tipo químico ou físico, que não são realizáveis na reprodução; os da segunda são objecto de uma tradição que deve ser prosseguida a partir do local onde se encontra o original.
O aqui e agora do original constitui o conceito da sua autenticidade. Para averiguar a autenticidade de um bronze, pode ser útil proceder a uma análise de tipo químico, na sua patina, da mesma forma que, para verificar a autenticidade de determinado manuscrito medieval, pode ser útil a prova de que ele provém de um arquivo do século XV. O domínio global da autenticidade subtrai-se à reprodutibilidade técnica – e, naturalmente, não só a esta3. Mas enquanto o autêntico mantém a sua autoridade total relativamente à sua reprodução manual, que, regra geral, é considerada uma falsificação, isto não sucede relativamente à reprodução técnica. Para tanto há um motivo duplo: em primeiro lugar, relativamente ao original, reprodução técnica surge como mais autónoma do que a manual. Na fotografia pode, por exemplo, salientar aspectos do original, que só são acessíveis a uma lente regulável e que pode mudar de posição para escolher o seu ângulo de visão, mas não são acessíveis ao olho humano ou, por meio de determinados procedimentos como a ampliação ou o retardador, registar imagens que pura e simplesmente não cabem na óptica natural. Este o primeiro aspecto. Além disso, em segundo lugar, pode colocar o original em situações que nem o próprio original consegue atingir. Sobretudo, ela toma-lhe possível o encontro com quem a apreende, seja sob a forma de fotografia, seja sob forma de disco. A catedral abandona o seu lugar para ir ao encontro do seu registo num estúdio de um apreciador de arte, a obra coral, que foi executada ao ar livre ou numa sala, pode ser ouvida num quarto.
As situações a que se pode levar o resultado da reprodução técnica da obra de arte, e que, aliás, podem deixar a existência da obra de arte incólume, desvalorizam-lhe, de qualquer modo o seu aqui e agora. Ainda que, de forma nenhuma, isto seja apenas válido para a obra de arte e corresponda, por exemplo à paisagem que, num filme, se desenrola perante o espectador atinge-se, através deste processo, um núcleo tão sensível do objecto de arte que uma vulnerabilidade tal não existe num objecto natural. É esta a sua autenticidade. A autenticidade de uma coisa é a suma de tudo o que desde a origem nela é transmissível, desde a sua duração material ao seu testemunho histórico. Uma vez que este testemunho assenta naquela duração, na reprodução ele acaba por vacilar, quando a primeira, a autenticidade, escapa ao homem e o mesmo sucede ao segundo; ao testemunho histórico da coisa. Apenas este, é certo; mas o que assim vacila, é exactamente a autoridade da coisa4.
Pode resumir-se essa falta no conceito de aura e dizer: o que murcha na era da reprodutibilidade da obra de arte é a sua aura. O processo é sintomático, o seu significado ultrapassa o domínio da arte. Poderia caracterizar-se a técnica de reprodução dizendo que liberta o objecto reproduzido do domínio da tradição. Ao multiplicar o reproduzido, coloca no lugar de ocorrência única a ocorrência em massa. Na medida em que permite à reprodução ir ao encontro de quem apreende, actualiza o reproduzido em cada uma das suas situações. Ambos os processos provocam um profundo abalo do reproduzido, um abalo da tradição que é o reverso da crise actual e a renovação da humanidade. Estão na mais estreita relação com os movimentos de massas dos nossos dias. O seu agente mais poderoso é o filme. O seu significado social também é imaginável, na sua forma mais positiva, e justamente nela, mas não sem o seu aspecto destrutivo e catártico: a liquidação do valor da tradição na herança cultural. Este fenómeno é mais evidente nos grandes filmes históricos. Cada vez engloba mais posições no seu domínio. E quando, em 1927, Abel Gance exclamou entusiasticamente “Shakespeare, Rembrandt, Beethoven, farão filmes… Todas lendas, as mitologias e os mitos, todos os fundadores de religiões, sim, todas as religiões… esperam a sua ressurreição pela luz do filme e os heróis acotovelam-se às portas”5, estava, provavelmente sem querer, a dirigir um convite a uma liquidação total.
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1 Paul Valéry: Pièces sur l’art. Paris [sem data, pag. 105 (“La conquête de l’ubiquité”)].
2 É evidente que a história da obra de arte abarca ainda mais: a história da Mona Lisa, por exemplo. O tipo e número de cópias que dela foram feitas nos séculos XVII, XVIII e XIX.
3 Precisamente porque a autenticidade não é reprodutível, o desenvolvimento intensivo de determinados processos de reprodução todos técnicos – forneceu o meio para a diferenciação e graduação autenticidade. Uma importante função do comércio da arte foi a desenvolver tal diferenciação. Este comércio tinha um interesse palpável distinguir uma placa de madeira para xilogravura, antes e depois de gravar de uma placa de cobre, e outras coisas deste tipo. Pode dizer-se que com a invenção da xilogravura se atacou pela raiz a qualidade da autenticidade mesmo antes do seu posterior florescimento a desenvolver. De facto, uma imagem medieval da Virgem na época em que era feita, ainda não era “autêntica”; tornou-se autêntica nos séculos vindouros e, principalmente, século XX.
4 A representação mais lamentável do “Fausto”, apresentada por um teatrinho de província, tem, relativamente a um filme sobre o ‘Tausto11, a vantagem de estar em concorrência ideal com a estreia em Weimar. E o que dos conteúdos tradicionais pode ser recordado no palco, deixa de ser explorado na tela, como o facto de o Mefistófeles de Goethe ser a representação do seu amigo da juventude, Johann Heinrich Merck, e outros.
5 Abel Gance: «Le temps de l’image est venu», in: L’art cinématografique. Paris 1927, pp. 94-96.
III
Em grandes épocas históricas altera-se, com a forma existência colectiva da humanidade, o modo da sua percepção sensorial. O modo em que a percepção sensorial do homem organiza – o medium em que ocorre – é condicionado não só naturalmente, como também historicamente. A época das grandes invasões, em que surgiram a indústria de arte do Baixo Império e a Génese de Viena, tinha não só uma arte diferente da da antiguidade como também uma outra percepção. Os eruditos da escola de Viena, Riegel e Wickhoff, que se opuseram ao peso da tradição clássica, sob a qual aquela arte tinha estado enterrada, foram os primeiros a pensar em tirar conclusões relativamente à organização da percepção na época em que ela vigorava. Por mais amplo que fosse o seu conhecimento, tinham limites que consistiam no facto destes investigadores se contentarem com a característica formal, específica, da percepção na época do Baixo Império. Não tentaram mostrar – e talvez não pudessem esperar consegui-lo – as transformações que foram expressas nestas transformações da percepção. Actualmente, as condições para tal entendimento são favoráveis. E, se pudermos entender, como decadência da aura, as alterações no medium da percepção de que somos contemporâneos, também é possível mostrar as condições sociais dessa decadência.
É aconselhável ilustrar o conceito de aura, acima proposto para objectos históricos, com o conceito de aura para objectos naturais. Definimos esta última como manifestação única de uma lonjura, por muito próxima que esteja. Numa tarde de Verão descansando, seguir uma cordilheira no horizonte, ou um ramo que lança a sombra sobre aquele que descansa – é isso a aura destes montes, a respiração deste ramo. Com base nesta descrição, é fácil admitir o condicionalismo social da actual decadência da aura. Essa decadência assenta em duas circunstâncias que estão ligadas ao significado crescente das massas, na vida actual. Ou seja: “Aproximar” as coisas espacial e humanamente é actualmente um desejo das massas tão apaixonado6 como a sua tendência para a superação do carácter único de qualquer realidade, através do registo da sua reprodução. Cada dia se toma mais imperiosa a necessidade de dominar o objecto fazendo-o mais próximo na imagem, ou melhor, na cópia, na reprodução. E a reprodução, tal como nos é fornecida por jornais ilustrados e semanários, diferencia-se inconfundivelmente do quadro. Neste, o carácter único e a durabilidade estão tão intimamente ligados, como naqueles a fugacidade e a repetitividade. Retirar o invólucro a um objecto, destroçar a sua aura, são características de uma percepção, cujo “sentido para o semelhante no mundo” se desenvolveu de forma tal que, através da reprodução, também o capta no fenómeno único. Assim, manifesta-se no domínio do concreto o que no domínio da teoria se toma evidente, com o crescente significado da estatística. A orientação da realidade para as massas e, destas para aquela, é um processo de amplitude ilimitada, tanto para o pensamento como para a intuição.
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6 Aproximar-se humanamente das massas pode significar: retirar a sua função social do campo de visão. Nada garante que um retratista actual, quando pinta um cirurgião famoso à mesa do pequeno-almoço e, no meio dos seus, represente mais exactamente a sua função social do que um pintor do século XVI que, como por exemplo Rembrandt, na sua “Anatomia”, apresenta ao público os seus médicos de modo representativo.
IV
A singularidade da obra de arte é idêntica à sua forma de se instalar no contexto da tradição. Esta tradição, ela própria é algo de completamente vivo, algo de extraordinariamente mutável. Uma estátua antiga da Vénus, por exemplo, situava-se – num contexto tradicional diferente, para os Gregos que a consideravam um objecto de culto, e para os clérigos medievais que viam nela um ídolo nefasto. Mas o que ambos enfrentavam da mesma forma, era a sua singularidade, por outras palavras a sua aura. O culto foi a expressão original da integração da obra de arte no seu contexto tradicional. Como sabemos, obras de arte mais antigas surgiram ao serviço de um ritual, primeiro mágico e depois religioso. É, pois, de importância decisiva que a forma de existência desta aura, na obra de arte nunca se desligue completamente da sua função ritual.7 Por outras palavras: o valor singular da obra de arte “autêntica” tem o seu fundamento no ritual em que adquiriu o seu valor de uso original e primeiro. Este, independentemente de como seja transmitido, mantém-se reconhecível, mesmo nas formas profanas do culto da beleza, enquanto ritual secularizado 8.
O culto profano da beleza, que surgiu na Renascença para se manter em vigor durante três séculos, permite reconhecer com nitidez aqueles fundamentos, ao expirar quando sofre os seus primeiros abalos significativos. Quando, com o aparecimento da fotografia, o primeiro meio de reprodução verdadeiramente revolucionário (que coincide com o alvorecer do socialismo), a arte sente a proximidade da crise que, cem anos mais tarde, se tinha tomado inequívoca, reagiu com a doutrina da “l’art pour l’art”, que é uma teologia da arte. Dela surgiu precisamente uma teologia negativa na forma de uma arte “pura” que recusa, não só qualquer função social da arte, como também toda a finalidade através de uma determinação concreta. (Na poesia, Mallarmé, foi o primeiro a alcançar esta posição.)
É indispensável a consideração de tais contextos, para a reflexão sobre a obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica. Porque eles preparam o reconhecimento que aqui é decisivo: a reprodutibilidade técnica da obra de arte emancipa-a, pela primeira vez na história do mundo, da sua existência parasitária no ritual. A obra de arte reproduzida, toma-se cada vez mais a reprodução de uma obra de arte que assenta na reprodutibilidade 9. A partir da chapa fotográfica, por exemplo, é possível fazer uma grande quantidade de cópias, o que retira sentido à questão da cópia autêntica. Mas nesse momento, com o fracasso do padrão de autenticidade na reprodução de arte modifica-se também a função social da arte. Em vez de assentar no ritual, passa a assentar numa outra praxis: a política.
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7 A definição de aura como “a manifestação única de uma lonjura, por mais próxima que esteja” mais não representa do que a formulação do valor de culto da obra de arte, em categorias da percepção espacial e temporal. Lonjura é o oposto de proximidade. A lonjura essencial é a inacessível. De facto, a inacessibilidade é uma qualidade primordial da imagem de culto. Pela sua própria natureza, mantém-se “longe, por mais próxima que esteja”. A proximidade propiciada pela sua matéria não afecta a lonjura que mantém depois da sua manifestação.
8 Na medida em que o valor de culto da imagem se seculariza, as noções de substrato da sua singularidade tomam-se mais indefinidas. Cada vez mais a singularidade da manifestação dominante na figura de culto é suplantada pela singularidade empírica do artista, ou da sua realização plástica, na concepção do observador. Claro que tal não se verifica integralmente; o conceito de autenticidade nunca cessa de se projectar para além da que se lhe atribui. (Isto é particularmente claro no caso do coleccionador que conserva sempre algo de servidor do fetiche e, através da posse da obra de arte, participa na sua força de culto.) Apesar de tudo isto, a função do conceito do autêntico na observação da arte mantém-se inequívoca: com a secularização da arte, a autenticidade toma o lugar do valor de culto.
9 Nas obras cinematográficas, a reprodutibilidade técnica do produto não é uma condição imposta do exterior para a sua divulgação em massa, contrariamente ao que sucede, por exemplo, com as obras literárias ou de pintura. A reprodutibilidade técnica da obra cinematográfica tem o seu fundamento directamente na técnica da sua reprodução. Esta possibilita não só a sua imediata divulgação em massa, como também a impõe. Impõe-a porque a produção de um filme é tão cara que alguém que pudesse, por exemplo, comprar um quadro, não poderia certamente dar-se ao luxo de comprar um filme. Em 1927, calculou-se que para rentabilizar um filme relativamente grande, seria necessário que ele atingisse um público de nove milhões de pessoas. Com o filme sonoro verificou-se, no entanto, de início um retrocesso; o seu público passou a estar limitado por barreiras de língua e isto ao mesmo tempo que os interesses nacionais eram acentuados pelo fascismo. Mas mais importante do que registar este retrocesso que, aliás, foi neutralizado pela dobragem, é considerar a sua relação com o fascismo. A simultaneidade de ambas as manifestações tem a sua origem na crise económica. Os mesmos elementos de perturbação que, de um modo geral, conduziram à tentativa de manter abertamente pela força as relações de propriedade existentes, conduziram a que o capital do cinema, ameaçado pela crise, fosse forçado a preparar terreno para o filme sonoro. Assim, a introdução do filme sonoro trouxe um alívio temporário. E não apenas porque o filme sonoro conduziu de novo as massas ao cinema, mas também porque conseguiu solidarizar novos capitais, da indústria eléctrica, com o capital do cinema. Considerado de fora, o filme sonoro promoveu assim interesses nacionais, mas considerado de dentro, internacionalizou a produção de filmes mais ainda do que anteriormente.
Referência:
BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era da sua reprodutividade técnica [1955]. Tradução disponibilidade pela UFRS. Disponível em: http://www.ufrgs.br/obec/assets/acervo/arquivo/benjamin_reprodutibilidade_tecnica.pdf
Ilustração:
Foto de autor desconhecido. Disponível em: https://pendientedemigracion.ucm.es/info/especulo/numero39/imadiale.html
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