Nietzsche e a subversão dos valores dominantes (Ensaio I)
Nietzsche e sua irmã Elisabeth Förster-Nietzsche
LEILABRITO
As obras de Nietzsche pós-Zaratustra são todas cunhadas na idéia de transvaloração de todos os valores, porque, para o filósofo, todos os problemas da Filosofia têm origem no valor. Assim, todo pensamento anterior sobre o ser foi dominado pelo ponto de vista dos valores. Fato é que, para Nietzsche, o problema maior da Filosofia é ter estado, até então, comprometida com a verdade, e não, com a vida. É este pensamento que o leva a questionar a verdade e a buscar uma re-significação para a vida. Ele se coloca como homem, subordinando a questão da vida e do homem, para formar valores ligados à vida.
Assim, sua filosofia é uma luta contra os sentidos das coisas pela sua re-significação. Ele coloca em suspeita o que seria insuspeito e, em seu filosofar, destrói ídolos, verdades, crenças e certezas, valorizando o que nunca foi valorizado: o corpo, o poder, o egoísmo, a crueldade. Para Nietzsche, a crueldade humana tem caráter instintivo e, cada vez mais, é internalizada como forma de sublimação. Assim, não é porque o homem é civilizado, que deixa de ser cruel.
Com um sentido universal de subversão dos valores dominantes através da suspeita que lança sobre esses valores, segundo Chagas (1985, p. IV), Nietzsche “inaugura uma nova filosofia, com novos valores, tendo como solo firme para plantar seu pensamento a vontade de poder, a morte de deus e o eterno retorno”.
Em sua Genealogia da Moral, Nietzsche questiona a verdade do existente, a verdade das ciências e a verdade da metafísica, tomando como base o entendimento de que o terreno dos valores é um terreno de luta, de disputa; não apenas para destruir, mas para construir sobre a destruição. Assim, ele destrói um valor para reconstruir uma idéia, jogando por terra o relativismo, visto por ele como o princípio da banalização da existência, uma vez que, pela flexibilidade, atua como um entorpecente contra o desespero.
Nietzsche se refere à sua Genealogia da Moral como uma obra crítica cultural bem fundamentada, onde se propõe a fazer uma interpretação, e não um aperfeiçoamento das teorias morais. Nesta interpretação, luta contra a própria maneira como a moral se apresenta, para então desmascará-la:
Necessitamos uma crítica dos valores morais, e antes de tudo deve discutir-se o ‘valor desses valores’, e por isso é de toda a necessidade conhecer as condições e os meios ambientes em que nasceram, em que se desenvolveram e deformaram (a moral como conseqüência, máscara, hipocrisia, enfermidade ou equívoco, e também a moral como causa, remédio, estimulante, freio e veneno) conhecimento tal que nunca teve outro semelhante nem é possível que o tenha. Era um verdadeiro postulado o valor desses valores: atribuía-se ao bem um valor superior ao valor do mal, ao valor do progresso, da utilidade, do desenvolvimento humano. E por quê? Não poderia ser verdade o contrário? (NIETZSCHE, 1985, p. XIV).
Como sua intenção não é refutar, nem substituir um erro por uma verdade, ou um erro por outro, ou ainda, uma verdade por outra verdade, Nietzsche usa de ironia:
Mas quando pudermos gritar: “Avante! A nossa velha moral entra também no ‘domínio da comédia’, teremos descoberto para o drama trágico dos destinos da alma uma nova intriga, uma nova possibilidade e até poderíamos assegurar que já disto se aproveitou o grande, o antigo e eterno poeta das comédias da nossa existência (NIETZSCHE, 1985, p. XV-XVI).
Sua intenção é fazer uma interpretação que destrua a interpretação dominante; fazer uma abordagem hermenêutica. O que Nietzsche pretende, na verdade, é uma interpretação que seja uma ação, uma potência que tenha uma predisposição de luta. Isto porque, segundo seu entendimento, interpretar é um ato de força, de potência – é uma atitude visceral comprometida.
Desta forma, Nietzsche vê o mundo como perspectivismo de forças, ou seja, as perspectivas últimas no mundo são as das forças. A força tem a designação de vontade e potência, e a condição da idéia elementar de interpretação é que as forças apareçam. E essa idéia é importantíssima, porque leva o filósofo a desconstruir para construir.
Força, para Nietzsche, é uma efetivação de potência – ela está em plena ação. Para ele não existe força na forma pura. O mundo se traduz em combinações de forças agindo uma sobre a outra. Estando em ação, a força nunca é; por isso, é sempre vir-a-ser. Se se descontrói a idéia do vir-a-ser, fica impossível conceber a idéia do ser.
Há várias maneiras da cultura ocidental tratar o aparecer, as coisas, as manifestações do mundo. O perspectivismo nietzschiano implica a ênfase na diferença, nas intensidades. Se as forças aparecem, isto quer dizer que os acontecimentos têm vida, mas não têm pureza, essência, lógica, o quer dizer, que não têm nada a ver com o que é cultivado na cultura ocidental. Assim, para o filósofo, as moralidades e as ciências dominantes não vão a fundo na questão das forças; não abrigam uma filosofia das forças.
Por um lado, Nietzsche é um intérprete; por outro, é alguém que busca a pré-história afetiva das valorações. Por isso, seu trabalho é de desmascaramento. Basta olhar para a moral, que ela não é o que diz ser. O genealogista é também um psicólogo, na medida em que quer prescrutar, revelar idéias ainda não provocadas por nenhum saber.
LEILA BRITO
Belo Horizonte, JUL 2007.
Referências:
BRITO, Leila. Nietzsche como crítico da cultura: a crítica ao cristianisno e ao socratismo. Belo Horizonte: Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG, 2007. 8 f. Mimeografado.
BRITO, Leila. Nietzsche: o mundo como perspectivismo de forças. Belo Horizonte: Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG, 2007. 62 f. Notas de aula.
CHAGAS, Sílvio Donizete. Prefácio da editora. In: NIETZSCHE, Friederic Wilhelm. A genealogia da moral. Tradução de Joaquim José de Faria. São Paulo: Editora Moraes, 1985. p. I-VII.
NIETZSCHE, Friederic Wilhelm. A genealogia da moral. Tradução de Joaquim José de Faria. São Paulo: Editora Moraes, 1985.
Ilustração:
Nietzsche fotografado por Hans Olde, em jun./ago. 1899.
Então é mesmo isso:
O Homem é cruel em sua natureza e bom por convenção.
A realidade dói, porque cauteriza as nossas feridas que as mentiras provocam.
Nietzsche é um dos autores que digo que um dia ainda vou ler… Nesses dois excelentes textos pude ter uma idéia do seu pensamento questionador.
Gostei muito da abordagem sobre as “forças” e o poder, sempre existentes e que realmente são um paradoxo ante a pureza desejada.
Muito interessante também a abordagem ante a moral propalada e suas faces reveladas.
Em outro ponto, sobre a morte de deus, penso que
o homem, como elemento de força e poder, tem o instinto de destruir um ídolo para construir outro, que pode vir a ser ele próprio dependendo da influência que tiver na sociedade, vide a nossa história através dos milênios. O nosso Deus atual também tem servido ao poder dos homens.
Leila, incansável escritora, abraço grande.
Desmascaramento. Basta olhar para a moral, que ela não é o que diz ser.
Realmente Professora, ele a aborda de forma fantástica. Em sua Filosofia mostra estar comprometido com a vida.
“O Amor, é a escada sublime,
vasta, imensa, luminosa,
que prende o filho do crime
ao doce olhar de Jesus.
É a lingua de fogo eterno,
que ascende vertiginosa
dos sorvedoiros do inferno,
aos sorvedoiros da luz…
Se o fogo de mil crateras
tombasse sobre o universo,
e mar, e homens, e feras,
ficásse tudo submerso,
embora passado um dia,
nalgum ângulo da rocha,
onde a urze desabrocha
o amor desabrocharia!”
Guerra Junqueiro