O “poder” segundo Foucault
LEILA BRITO
Como se pode constatar numa observação atenta da obra de Michel Foucault, segundo Fontana e Bertani (1999), a despeito de ter criado uma teoria do poder, o filósofo jamais dedicou um livro específico ao tema. Ao contrário, tal teoria foi sendo consolidada nas suas inúmeras análises históricas sobre os hospícios, a loucura, a medicina, as prisões, a sexualidade, o policiamento, por meio das quais explicou o funcionamento, a ação e os efeitos do poder, esboçando seus delineamentos essenciais, explicando-se incansavelmente, ou seja, expondo de forma clara e convincente o que ele é e como funciona. Assim, o que se tem é que, em Foucault, “a questão do poder se espraia, pois ao longo de todas essas análises, [o filósofo] forma um só todo com elas”, sendo-lhes, pois, imanente e, por isso mesmo, indissociável(FONTANA e BERTANI, 1999, p. 331).
Em sua aula de 14 de janeiro de 1976, no curso do Collège de France, Foucault (1976, p. 179) explica que o que tentou investigar, a partir de 1970, foi a forma como o poder é exercido, ou seja, o como do poder. Com o objetivo de direcionar este artigo para um foco específico, será destacado entre os vários planos analisados pelo filósofo, o seu entendimento de que o indivíduo é um dos primeiros efeitos do poder, e não, o outro do poder. Em síntese: “o indivíduo é o efeito do poder e, simultaneamente, ou pelo próprio fato de ser um efeito, é seu centro de transmissão. O poder passa através do indivíduo que ele constituiu” (FOUCAULT, 1989, p. 183-184).
Assim, segundo Foucault, é fundamental “não tomar o poder como um fenômeno de dominação maciço e homogêneo de um indivíduo sobre os outros, de um grupo sobre os outros, de uma classe sobre as outras, mas ter bem presente que o poder – desde que não seja considerado de muito longe – não é algo que se possa dividir entre aqueles que o possuem e o detêm exclusivamente e aqueles que não o possuem e lhe são submetidos. O poder deve ser analisado como algo que circula, ou melhor, como algo que só funciona em cadeia. Nunca está localizado aqui e ali, nunca está em mãos de alguns, nunca é apropriado como uma riqueza ou um bem. O poder funciona e se exerce em rede. Nas suas malhas, os indivíduos não só circulam, mas estão sempre em posição de exercer este poder, e de sofrer sua ação; nunca são alvo inerte ou consentido do poder, são sempre centros de transmissão. Em outros termos, o poder não se aplica aos indivíduos, passa por eles” (FOUCAULT, 1989, p. 183).
Para formular suas análises, o filósofo extrai, histórica e empiricamente, das relações de poder os operadores de dominação, partindo da própria relação de dominação no que ela tem de factual, de efetivo, para demonstrar: (a) que são as relações de sujeição efetivas que fabricam sujeitos; (b) como os diferentes operadores de dominação se apóiam uns nos outros, remetem uns aos outros; (c) como, em certo número de casos, se fortalecem e convergem; e (d) também como, noutros casos, se negam ou tendem a se anular (FOUCAULT, 2000).
Para Foucault, são essas correlações de força, em sua desigualdade, que, continuamente, induzem estados de poder sempre localizados e instáveis. A onipotência do poder se impõe, “porque se produz a cada instante, em todos os pontos, ou melhor, em toda relação entre um ponto e outro”. Assim, “o poder está em toda parte; não porque englobe tudo, e sim, porque provém de todos os lugares”. O poder não é, pois, uma instituição nem uma estrutura e, também, não é uma certa potência de que alguns sejam dotados, mas “o nome dado a uma situação estratégica complexa numa sociedade determinada” (FOUCAULT, 1988, p. 103).
E com base nessa linha de raciocínio, introduz as proposições: “[…] que o poder não é algo que se adquire, arrebate ou compartilhe, algo que se guarde ou deixe escapar; o poder se exerce a partir de inúmeros pontos e em meio a relações desiguais e móveis; que as relações de poder não se encontram em posição de exterioridade com respeito a outros tipos de relações […] mas lhe são imanentes […]; que o poder vem de baixo; isto é, não há, no princípio das relações de poder, e como matriz geral, uma oposição binária e global entre os dominadores e os dominados, dualidade que repercute de alto a baixo e sobre grupos cada vez mais restritos até as profundezas do corpo social […]; que as relações de poder são, ao mesmo tempo, intencionais e não subjetivas. Se, de fato, são intelegíveis, não é porque sejam efeito, em termos de causalidade, mas porque atravessadas de fora a fora por um cálculo: não há poder que se exerça sem uma série de miras e objetivos. Mas isso não quer dizer que resulte da escolha ou da decisão de um sujeito, individualmente […]; que lá onde há poder há resistência e, no entanto (ou melhor, por isso mesmo) esta nunca se encontra em posição de exterioridade em relação ao poder” (FOUCAULT, 1988, p. 104-105).
Partindo da análise dos antagonismos, das oposições, Foucault (1999, p. 234) argumenta que: “para compreender o que são relações de poder talvez devêssemos investigar as formas de resistência e as tentativas de dissociar essas relações”. Ou seja, o poder é uma relação de forças que se encontra presente, e em constante movimento, em todos os espaços sociais, sejam eles públicos ou privados, gerando tensões que se expressam em toda relação. A resistência comparece, então, como parte constitutiva dessa relação, pois ela está sempre presente, e se configura como o grito do descontentamento anunciando o exercício da liberdade.
Podemos dizer, pois, que assim é feita a história de um sujeito, de um povo, de uma nação; ou seja, no bojo de uma constante relação de incitação entre poder e resistência. Como infere Foucault: “para descobrir o que significa, na nossa sociedade, a sanidade, talvez devêssemos investigar o que ocorre no campo da insanidade. Em decorrência, “talvez, o objetivo hoje em dia não seja descobrir o que somos, mas recusar o que somos. Temos que imaginar e construir o que poderíamos ser para nos livrarmos deste ‘duplo constrangimento’ político, que é a simultânea individualização e totalização própria às estruturas do poder moderno”(FOUCAULT, 1995, p. 239).
LEILA BRITO
Belo Horizonte, 23 MAR 2010
Referências:
FONTANI, Alessandro; BERTANi, Mauro. Situação do curso. In: FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975/1976). Tradução de Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 1999. Coleção Tópicos
FOUCAULT, M. História da Sexualidade: A Vontade de Saber. Rio de Janeiro: Graal, 1988.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Tradução de Roberto Machado. 8ª ed. Rio de Janeiro: Graal, 1989, pp. 179/191.
FOUCAULT, Michel. O sujeito e o poder. In: DREYFUS, H.; RABINOW, P. Michel Foucault – uma trajetória filosófica: para além do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995. p. 231-249.
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975/1976). Tradução de Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
Ilustração:
Autor desconhecido desta escritora.
O que eu mais gosto na filosofia é que ela nos leva não só a questionar mas a descobrir no cotidiano respostas para muitas indagações. Pensamos muito na questão de “poder” relacionado a política, principalmente quando sabemos da total ruptura com a dignidade e a honra que garanta a manutenção no “poder”. Vimos isso acontecer no Brasil com frequência, políticos que se corrompem para manter-se no poder.
A sociedade é determinante para a estratégia de poder, porque como Foucault coloca ele circula entre as pessoas. Eu tento visualizar isso, pensando, por exemplo que, a forma de poder exercido aqui no Brasil pela classe política jamais seria aceita, no Japão, por exemplo. Então vou pensar o poder assim:
“o nome dado a uma situação estratégica complexa numa sociedade determinada” (FOUCAULT, 1988, p. 103).
Letícia,
Ao dizer que o poder funciona em rede, Foucault aponta para as relações de poder em todas as suas esferas sociais: começando pelo relacionamento pai/mãe-filho, depois estendendo-se para marido-mulher, professor-aluno, médico-paciente, patrão-empregado, Estado-prisioneiro, Estado-cidadão e por aí adiante, estando pois, o PODER, sujeito a ser abusado por qualquer cidadão comum (de ambos os sexos), no exercício de suas Relações Humanas.
E mais: que é da célula infinitezimal (lá de baixo) que o poder emerge, pois como ocorre a reação em cadeia, ele vem de baixo para cima atuando de forma positiva ou negativa até alcançar o todo. É aí que chegamos ao topo da cadeia que representa o poder do Estado sobre o cidadão, em seus mais diversos setores: educação (escola), saúde (hospitais), trabalho (fábricas), direito (penitenciárias), um universo de instituições de poder regidas por leis que, por sua vez, são elaboradas e aplicadas pelo Estado, universo, este, minuciosamente explorado por Michel Foucault em seus estudos.
No meu entendimento da teoria de Foucault, o que se deve considerar, prioritariamente, em relação ao PODER, é que independente do seu nível em sua própria escala hierárquica (se o mais baixo ou o mais alto, socialmente falando), ou seja, independente de ele atuar no todo de seu universo, que é o caso do Estado atuando sobre o cidadão de seu país, e até sobre o cidadão de outro país (e aqui me refiro ao poder político), ele é exercido por seres humanos, ou seja, por atores que o exercem, também, a partir de sua esfera infinitezimal, ou seja, a partir de seu poder de pai ou mãe, e também, a partir de sua submissão de filho ou filha. É essa a visão de poder que, a meu ver, Foucault quer nos mostrar. Que tudo se resumo no Homem – o Sujeito do Poder. Este sujeito que, somado a todos os outros, constitui a sociedade.
Grata pela sua participação,
Leila
Prezada amiga Leila,
Transpondo, inadvertidamente, para a nossa realidade, faria apenas uma pequena modificação na assertiva do prestigiado filósofo estruturalista:
Certamente, “o objetivo hoje em dia não seja descobrir o que somos, mas recusar o que não-somos”.
Explico-me: a razão disso também esteve presente na obra de outro renomado filósofo (J. P. Sartre) ao afirmar, categoricamente, que “Somos tão somente um ser-no-mundo, com desejo de ser um ser-para-o-mundo.
A escola existencialista, frise-se, não reduz nem anula a estruturalista, apenas serve-se desta última para denunciar o individualismo insano não apenas do outro, mas de todos “nós” .
Adorei a leitura do artigo.
Abraços
Uma frase famosa do J. P. Sartre é: “Detesto as vitimas que respeitam os seus carrascos”. Ela fala mais que muitos textos. O covarde, o canalha, reverencia o seu carrasco e não tem vergonha. Eu é que tenho vergonha deste “semelhante”. Se existe o direito de mandar, o mais sagrado dos direitos é desobedecer. Leila, gostei muito do seu comentario sobre o meu blog, a frase que acompanhou este trabalho foi esta do J. P. Sartre.
Oi, será que vocês teriam um exemplo de um caso relacionado a escola estratégica de poder?
Olá, estudando poder em Foucault e poder político em Darcy Azambuja, gostaria de lhe perguntar: qual a relação entre poder em Foucault e poder político em Darcy Azambuja?
Caro Guilherme…
Infelizmente não posso ajudá-lo, pelo fato de jamais ter estudado Darcy Azambuja, autor de uma teoria do Estado. Talvez ele esteja mais para Hobbes do que para Foucault.
No meu curso de Filosofia na FAFICH-UFMG, dentre os filósofos políticos, estudei mais a fundo apenas Maquiavel, Michel Foucault, Hannah Arendt, Jacques Derrida e Jürgen Habermas, mas aprendi um pouco sobre Hobbes, Kant, Hegel, Voltaire, Locke, Espinoza e alguns outros. Também fiz um curso de Marx, que não é considerado um filósofo político. E estudos aprofundados sobre Nietzsche, Platão e Sócrates.
Para ser sincera, não conheço obras do filósofo gaúcho Darcy Azambuja.
Desculpe por não poder ajudá-lo.
Obrigada pela visita.
Volte sempre!
Abraço,
Leila
Cara Leila, estou fazendo um trabalho sobre a HISTÓRIA DA SEXUALIDADE E A VONTADE DO SABER, e estou confusa com seu segundo capítulo, A HIPÓTESE REPRESSIVA, será que você pode me ajudar?
Cara Daniela…
Eu assessoro na área científica (ver http://www.letraporletra.com.br) , profissionalmente, há mais de 20 anos, e esta ajuda que você está me pedindo constitue um complexo trabalho de pesquisa e redação, que exige tempo e dedicação exclusiva.
Infelizmente, não posso atuar gratuitamente, pois sobrevivo do meu trabalho. Caso queira contratar-me, coloco-me à disposição para um contato direto, pelos telefones: 31 3225-4209 / 31 8849-4848 e/ou pelo e-mail: leilabrito.brito@gmail.com
Grata pela visita ao Chá.com Letras.
Leila
Gostava de saber como é que funciona a transmissão do poder dos representantes na teoria moderna.
Caro Fernando…
Os filósofos que estudei na minha pós-graduação em Filosofia, pois a graduação foi em Letras, que abarcaram essencialmente o Poder, foram Maquiavel – filosofia antiga (considerado o Pai da Filosofia Política), e Foucault – filosofia pós-moderna – teoria mais conhecida.
Sobre a visão do poder na filosofia moderna, uma das referências é a teoria de Tocqueville (1805-1859). Sugiro que leia este artigo, onde o autor explica que “o ‘dilema tocquevilleano’ e que aqui formulo como interpretação ou releitura da tensão entre igualdade e liberdade tradicionalmente encontrada em sua obra, […] se expressa na concepção de que a liberdade política na sociedade igualitária de massas (a “democracia” como Tocqueville a denomina) depende de uma práxis e de um conjunto de valores cujos pressupostos tendem a ser destruídos pelo desenvolvimento continuado das disposições internas à própria democracia. O diagnóstico de Tocqueville acerca das sociedades modernas afirma que o individualismo inerente ao estado social democrático e o conseqüente confinamento dos homens nas esferas da privacidade são produtores de uma crescente indiferença cívica que constitui o caldo de cultura da emergência de um novo tipo de despotismo: uma forma de dominação política inédita ao mundo ocidental, que aparece como branda e tutelar, e que degrada os homens sem atormentá-los, mantendo os seus súditos, à maneira de um pátrio-poder sem fim, na eterna menoridade política.”
Por outro lado, para você entender a evolução da teoria do poder – de Maquiavel, passando por Tocqueville até Foucault – seria importante que lesse algo sobre a teoria de Macquiavel, cuja síntese me atrevi a elaborar na minha pesquisa de final do curso sobre o filósofo, ministrado dentro da pós-graduação. Como obtive nota máxima no referido estudo, concluí ser o seu conteúdo de real valor, e por isso o publiquei aqui no Chá.com Letras.
Link do artigo sobre a teoria de Maquiavel: http://www.chacomletras.com.br/2009/12/o-polemico-e-injusticado-machiavelli/
Lin do artigo sobre a teoria de Tocqueville: http://www.iea.usp.br/publicacoes/textos/jasmintocqueville.pdf
Grata pela participação,
Leila Brito
Cara professora, hoje a linguagem da elite alfabetizada se reduziu a um sistema formal de pressões e contrapressões, onde as palavras valem pela sua carga emocional acumulada, com pouca ou nenhuma referência aos dados correspondentes na experiência real de falantes e ouvintes. É o que eu vejo nas escolas: está substituída a exigência de qualidade pela da “correção política”, o clamor dos grupos de pressão torna-se a única fonte da autoridade pedagógica, impondo novos padrões de conduta em vez das regras da gramática, da lógica e da aritmética. Hoje estes grupos é que tem o poder? Mais até que o governo central?
Estou trabalhando meu projeto de tese e tenho como base teórica Foucault. As demais teoria sempre apresentam seus pressupostos, porém, em Foucault isso não fica compreensivo pelo menos nas leituras feitas. A pergunta é: há um pressuposto definido ou não?
Ricarte outubro 18, 2018 às 10:17 pm, resposta (será?):
Em Foucault nada é cartesianamente definido, mas desconstruído de forma fantástica. Ler suas obras faz com que se consiga humildemente “ampliá-las” (talvez), mas jamais concluí-las .