Pensando o feminino
Gerada nos primórdios, a ideologia do patriarcalismo, que delegou ao homem o comando do mundo estereotipando a masculinidade como sinônimo de poder, transformou a Mulher em figura secundária no processo de formação e desenvolvimento da Humanidade. E isto, enfatize-se, em âmbito mundial, o que gerou a negação da participação ativa da Mulher no processo da evolução humana, dificultando seu pleno desenvolvimento humano e social.
Esta é uma verdade irrefutável retratada na obra que Rose Marie Muraro cognominou “A Bíblia da Mulher Moderna”, intitulada Eunucos pelo Reino de Deus (Editora Record – selo Rosa dos Tempos, 1996) da teóloga alemã Uta Hanke~Heinemann. Trata-se de uma tese (com base em pesquisa documental) defendida pela autora em seu pós-doutorado, e que lhe custou a perda de sua cátedra numa das universidades católicas da Alemanha, por ordem do Papa João Paulo II que, simplesmente, como convém ao autoritarismo histórico da Igreja Católica Apostólica Romana, usou de sua autoridade político-religiosa máxima para punir sua autora por desobediência religiosa ao publicar tal obra, que ele condenou, por ser reveladora das atrocidades que vêm sendo cometidas, no decorrer do tempo (da história da Humanidade), pela Santa Madre Igreja contra as Mulheres (ao persegui-las em todos os sentidos) e, por extensão, contra os homens, ao ditar uma moral sexual que coibe e proibe (por repressão terrorista) o prazer do corpo, ao condenar a prática sexual como um meio natural de prazer físico e emocional. Nesta surpreendente obra, certamente, encontram-se muito bem definidas as bases históricas do patriarcalismo, e isto, porque ele nasceu com os preceitos preconceituosos que sustentam os dogmas religiosos, em especial, os dogmas da Igreja Católica Apostólica Romana. Esta leitura é obrigatória em se tratando de conteúdo informativo de caráter incontestável em termos de veracidade. Imperdível, pois, a sua realização pelas mulheres inteligentes, como tão bem propõe Rose Marie Muraro.
Esta e outras leituras de obras importantes sobre o tema confirmam que é preciso ter um conhecimento consistente para focar a questão do “feminino”, empreendida por muitos autores de forma indevida, por simplificarem sua complexidade com abordagens superficiais e, muitas vezes, incoerentes e distorcidas, que só contribuem para avalizar uma intencional desvalorização sócio-cultural da “imagem feminina”. Esta é a intenção da mídia capitalista: divulgar um estereótipo de mulher que esteja totalmente em discordância com a evolução de suas conquistas como cidadã (alcançadas pelos movimentos feministas [discurso intelectual, filosófico e político que tem como meta os direitos iguais e a proteção legal às Mulheres], em especial, o ocorrido nas décadas de 1960-1970), exatamente, para preservar o estereótipo gerado pelo patriarcalismo – a masculinidade como poder supremo, que precisa, por razões óbvias (a desvalorização da força de trabalho feminina), ser mantido a qualquer custo. Portanto, interessa ao capitalismo manter a relação de poder entre os sexos, estimular o machismo.
Sobre esta questão, Elisabeth Badinter esclarece, em sua obra Sobre a Identidade Masculina, editada no Brasil em 1993, que não é a mulher que é machista, nem mesmo o homem, e sim a Humanidade, por não saber lidar com a diferença entre o homem e a mulher sem desvinculá-la da idéia de poder instituída pelas religiões através do mito de deus, naturalmente, favorecendo o masculino. Esta seria, na opinião da autora, a raiz do problema e, ao mesmo tempo, a chave do conflito entre os sexos, que ultrapassa a esfera do relacionamento a dois para o âmbito das relações sociais e de trabalho.
Sobre as diferenças sexuais, Sylviane Agacinsky, em seu livro Política dos Sexos, editado no Brasil em 1999, ratifica esse ponto de vista, ao explicar que, infelizmente, elas têm sido consideradas num contexto de relação de poder – de ordem política, e não, numa relação de completude – de ordem biológica e filosófica. É muito importante esclarecer que os movimentos feministas nunca reivindicaram uma igualdade dos sexos no plano físico, e sim, no plano político, ou seja, no plano dos direitos. Faz-se muita confusão quanto a isto. O que se quis e se quer é uma igualdade de direitos civis, e não, corporal, muito embora tais direitos devam ser estendidos também ao próprio corpo (o que justifica o direito da mulher ao aborto e à criminalização de todo tipo de violência física e moral, do hediondo estupro ao constrangedor assédio). A diferença física entre o homem e a mulher é inegável, mas sem desmerecimento de um ou de outro, uma vez que existe em função da necessidade natural de se somar o Homem e a Mulher para se encontrar o Todo da raça humana.
Importante, também, atentar para o fato de que esta diferença de ordem biológica não é tão radical assim como se mostra exteriormente. É preciso, antes de tudo, entender que o patriarcalismo anulou a aceitação da existência do feminino no Homem e do masculino na Mulher, como esclarecem Rose Marie Muraro e Leonardo Boff em Feminino e Masculino: Uma Nova Consciência para o Encontro das Diferenças, editado em 2002. Entendido que o Homem tem em si uma porção feminina, e que a Mulher tem em si uma porção masculina, o que é biologicamente comprovado pela presença dos dois tipos de hormônios em seus corpos, estará entendido que Homem e Mulher, ao mesmo tempo que diferentes entre si, são iguais entre si; que, ao mesmo tempo que incompletos fisicamente (pois exteriormente cada um tem a ausência do sexo do outro), são interiormente completos na essência sexual. E sendo assim, nenhum pode ser considerado inferior nem superior ao outro. É neste sentido que se pode defender o conceito de uma igualdade sexual plena entre Homem e Mulher que, em si própria, justifica uma igualdade de direitos.
Fala-se muito sobre as consequências dos movimentos feministas (ocorridos em três ondas, ou seja, em três épocas diferentes) sem se abordar suas causas e as interferências de natureza sócio-cultural que atuaram e atuam sobre eles próprios. Esta é a origem de sua incompreensão pelas próprias Mulheres – seu desconhecimento histórico-científico. Há, pois, que se divulgar mais textos informativos sobre os estereótipos masculino e feminino criados e alimentados pela sociedade patriarcalista (ainda predominante) e textos analítico-críticos fundamentados em informações consistentes, de forma a transmitir um competente conhecimento científico de base que permita à Mulher pós-moderna assimilar o conflito sexual existente dentro do contexto sócio-cultural no qual está inserida, desenvolvendo seu senso crítico, ampliando sua visão, de forma a torná-la capaz de avaliar suas próprias atitudes no âmbito de sua vida afetivo-sexual, familiar, profissional e social, e o mais importante: suas atitudes em relação a si mesma como MULHER-GERATRIZ-CIDADÃ DO MUNDO.
LEILA BRITO
Belo Horizonte, 2003.
Ilustração:
La Gioconda – Leonardo Da Vinci (1503-1506)
Museu do Louvre
Foto de autor desconhecido desta escritora.
Referência:
BRITO, Leila. Pensando o feminino. 2003. Chá.com Letras. Belo Horizonte, 10 jan. 2010. Disponível em: <chacomletras.com.br>. Acesso em: dia, mês, ano. (ex.: 10 jan. 2010)
Referência das obras citadas:
1 – HANKE~HEINEMNN, Uta. Eunucos pelo reino de deus. 2. ed. Rio de Janeiro: Record: Rosa dos Tempos, 1966.
2 – BADINTER, Elisabeth. XY: sobre a identidade masculina. Tradução Maria Ignez Duque Estrada. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993.
3 – AGACINSKI, Sylviane. 1999. A Política dos sexos. Título original: Politique des Sexes (1998). Édi- tions du Seuil. Tradução: Miguel Serras Pereira. Oeiras: Celta. 121 p.
4 – MURARO, Rose Marie; BOFF, Leonardo. Feminino e masculino: uma nova consciência para o encontro das diferenças. 2. ed. Rio de Janeiro: Sextante, 2001.
Muito obrigada por seguir ampliando o significado da palavra “feminino”, no que se refere à participação da Igreja Católica, do movimento feminista, da mídia capitalista, tocando até mesmo na parte física e sócio-cultural. Muitíssimo obrigada por compartilhar com a gente o seu precioso tempo de leitura, estudo, análise e edição deste tema tão intrigante! Beijos!
Oi amiga!
Que bom tê-la aqui, participando deste trabalho que tenho realizado com tanto amor e prazer.
Seu comentário refletiu a síntese deste meu texto, de forma competente e apaixonada, lançando-me de volta no tempo em que aprendi tanto com você, quando trabalhávamaos juntas na Fundação Educar, lendo Complexo de Cinderela sob sua orientação, lembra?
Bons tempos aqueles da década de 1980, quando o Movimento Feminista, em sua terceira onda, ainda jorrava sua deliciosa energia sobre nós – mulheres articuladas com seu significado e suas consequências sobre nossas próprias vidas.
Tem pessoas que marcam a nossa vida para sempre, e você, Cleo, é uma das pessoas que souberam acrescentar conteúdo de conhecimento e amor à minha vida.
Obrigada, amiga!
beijo com carinho,
Leila
Leila Brito,
A tradição ocidental judaico-cristã instaurou o mito da dependência feminina em relação ao ser masculino com a narrativa da criação da mulher, a partir de uma costela de Adão, fato que erigiu os contornos de uma sociedade estatuida em bases patriarcais.
Comportamento diferente daquele arbitrado como compatível com o “sexo frágil”, “segundo sexo”, “sexo submisso” e outros que-tais.
A óptica pela qual cada cultura vê as suas mulheres varia em função dos fatores e das condições civilizatórias que suscitam e modelam condutas e atitudes dos seus planificadores e construtores.
Os homens são uns diabos,
Não há mulher que o negue,
mas todas estão à espera
de um diabo que as carregue.
Abraços,
Marilda Oliveira
Leila, todo religioso é um degenerado, representam seus deuses sem procuração. Portanto, não merecem o respeito que gosam, mas as mulheres são as que dão a maior importância para estes legitimos malandros que criaram a moral e os criminosos dogmas para substituir os prazeres da vida natural, em coisa suja pecaminosa, e então castigar quem seguisse as maravilhosas regras da natureza. Como todas regras de degenerados é uma doença social agora temos o resultado delas. As regras de controle de natalidade, levará o planeta ao colapso, e quem vai cobrar dos responsaveis? SE a materia prima de religião é miséria, ignorância, e angustia. Vão lotar as igrejas atraz de milagres, e as injustiçadas mulheres serão a maioria. Já estou 8 anos sozinho, como sou honesto, sai da concorrência por não prometer milagres como os picaretas e suas igrejas, lotadas de “devotas”. E amor de religiosa eu não acredito.
Concordo plenamente com você, Walter.
A ignorância é a principal causa da perpetuação do machismo aprovado e mantido pelas mulheres em todo o mundo. Enquanto a sociedade, em especial as mulheres, não entenderem o papel político da religião nesse processo de poder absoluto, nada mudará.
Todas precisam ler, também e urgentemente, o Genealogia da Moral, do grande Nietzsche, onde ele expõe os malefícios da filosofia religiosa do ascetismo. E também Adélia Prado, que mostra esse domínio machista-religioso de forma espetacular no seu livro “Solte os Cachorros” (Editora Guanabara), onde expõe a submissão da mulher ao machismo.
Abraços…
É muito bom ter contato com pessoas plenas. Gosto muito de piscologia analítica. Jung consegue penetrar e trazer a tona a alma humana. Não me recordo onde li, mas ele descreve o mito do nascimento da mulher da costela de Adão. O feminino nasce da dor que o masculino sente da separação de uma parte sua (tornar se indivíduo) como uma necessidade psicológica de o ser humano experimentar a dor para alcançar a experiência mais profunda da alma (vida). Porque, a priori, somos piscologicamente masculinos, desenvolvendo só depois a percepção do outro, o que representa o lado feminino. Como muitos não alcançam forças para sofrer a dor da consciência, mecanismos de defesa camuflam a realidade, impedindo, assim, o desenvolvimento normal. Quebrar essas couraças criadas para manter esse sistema não é tarefa fácil. Mas a necessidade e a realidade caminham a nosso favor. Um grande abraço, Milena
Cara Milena…
Providencial esta sua abordagem de Jung. Muito interessante também explorarmos a sua teoria nos debates sobre o feminismo. Assim, essa lacuna textual foi preenchida por você, e de forma competente.
É um prazer recebê-la no Chá.com Letras.
Volte sempre.
Abraço,
Leila