O Existencialismo é um Humanismo – J. P. Sartre (Parte II)
O EXISTENCIALISMO É UM HUMANISMO
JEAN-PAUL SARTRE
Examinemos, por exemplo, os dois casos seguintes: vocês poderão constatar em que medida se assemelham e, ao mesmo tempo, diferem. Consideremos O Moinho à Beira do Rio. Nele encontramos certa mocinha, Maggie Tulliver, que encarna o valor da paixão e está consciente disso: ela está apaixonada por um jovem rapaz, Stephen, noivo de uma garota insignificante. Essa Maggie Tulliver, em vez de preferir, levianamente, a sua própria felicidade, escolhe sacrificar-se, renunciar ao homem que ama, em nome da solidariedade humana. Na Cartuxa de Parma, a Sanseverina exemplifica o caso oposto: considerando que a paixão constitui o verdadeiro valor do homem, ela teria declarado que um grande amor merece sacrifícios; que é preciso preferir o amor-paixão à banalidade do amor conjugal que uniria Stephen e a jovem boba com quem deveria casar-se; ela escolheria sacrificar esta última e realizar a sua felicidade; e, como nos mostra Stendhal, ela se sacrificaria a si mesma por paixão se a vida assim o exigisse. Estamos, aqui, diante de duas morais rigorosamente opostas; eu considero que elas são equivalentes: nos dois casos, a meta proposta foi a liberdade. E vocês podem imaginar duas atitudes estritamente semelhantes quanto aos efeitos: Uma jovem, por resignação, prefere renunciar ao seu amor; outra, por apetite sexual, prefere desconhecer a ligação anterior do homem que ama. Essas duas ações se assemelham, exteriormente, àquelas que acabamos de descrever. Contudo, são inteiramente diferentes. A atitude da Sanseverina está muito mais próxima da de Maggie Tulliver do que de uma voracidade inconseqüente.
Vocês podem, portanto, constatar que essa segunda acusação que nos fazem é simultaneamente verdadeira e falsa. Podemos escolher qualquer coisa se nos colocarmos ao nível de um engajamento livre.
A terceira objeção é a seguinte: vocês recebem com uma mão o que dão com a outra; isso significa que, no fundo, os valores não têm seriedade; já que vocês os escolhem. Argumentarei dizendo que lamento muito que assim seja, mas, já que eliminamos Deus Nosso Senhor, alguém terá de inventar os valores. Temos que encarar as coisas como elas são. E, aliás, dizer que nós inventamos os valores não significa outra coisa senão que a vida não tem sentido a priori. Antes de alguém viver, a vida, em si mesma, não é nada; é quem a vive que deve dar-lhe um sentido; e o valor nada mais é do que esse sentido escolhido. Pode constatar-se, assim, que é possível criar uma comunidade humana. Criticaram-me por perguntar se o existencialismo é um humanismo. Responderam-me: afinal, você escreveu, na Náusea, que os humanistas estavam errados, você troçou de um certo tipo de humanismo, por que razão voltar atrás agora? Na realidade, a palavra humanismo tem dois significados muito diferentes. Podemos considerar como humanismo uma teoria que toma o homem como meta e como valor superior. Há humanismo, nesse sentido, em Cocteau, por exemplo, quando, em sua narrativa A Volta ao Mundo em 80 Horas, um personagem declara, ao sobrevoar as montanhas, de avião: o homem é admirável. Isso significa que eu, pessoalmente, que não construí aviões, irei beneficiar-me dessas invenções particulares e poderei, pessoalmente, enquanto homem, considerar-me como responsável e honrado pelos atos particulares de alguns homens. O que supõe que podemos atribuir um valor ao homem em função dos atos mais elevados de certos homens. Tal humanismo é absurdo, pois só o cachorro ou o cavalo poderiam emitir um juízo de conjunto sobre o homem e declarar que o homem é admirável – o que eles não têm a mínima intenção de fazer, que eu saiba, pelo menos. Mas não podemos admitir que um homem possa julgar o homem. O existencialismo dispensa-o de todo e qualquer juízo desse tipo: o existencialismo não colocará nunca o homem como meta, pois ele está sempre por fazer. E não devemos acreditar que existe uma humanidade à qual possamos nos devotar, tal como fez Auguste Comte. O culto da humanidade conduz a um humanismo fechado sobre si mesmo, como o de Comte, e, temos de admiti-lo, ao fascismo. Este é um humanismo que recusamos. Existe, porém, outro sentido para o humanismo, que é, no fundo, o seguinte: o homem está constantemente fora de si mesmo; é projetando-se e perdendo-se fora de si que ele faz com que o homem exista; por outro lado, é perseguindo objetivos transcendentes que ele pode existir; sendo o homem essa superação e não se apoderando dos objetos senão em relação a ela, ele se situa no âmago, no centro dessa superação. Não existe outro universo além do universo humano, o universo da subjetividade humana. É a esse vínculo entre a transcendência, como elemento constitutivo do homem (não no sentido em que Deus é transcendente, mas no sentido de superação), e a subjetividade (na medida em que o homem não está fechado em si mesmo, mas sempre presente num universo humano) que chamamos humanismo existencialista. Humanismo, porque recordamos ao homem que não existe outro legislador a não ser ele próprio e que é no desamparo que ele decidirá sobre si mesmo; e porque mostramos que não é voltando-se para si mesmo mas procurando sempre uma meta fora de si – determinada libertação, determinada realização particular – que o homem se realizará precisamente como ser humano.
Após essas reflexões, vemos que nada é mais injusto do que as acusações de que fomos alvo. O existencialismo nada mais é do que um esforço para tirar todas as conseqüências de uma postura atéia coerente. Esta não pretende, de modo algum, mergulhar o homem no desespero. Mas se, tal como fazem os cristãos, se decide chamar desespero a qualquer atitude de descrença, nossa postura parte do desespero original. O existencialismo não é tanto um ateísmo no sentido em que se esforçaria por demonstrar que Deus não existe. Ele declara, mais exatamente: mesmo que Deus existisse, nada mudaria; eis nosso ponto de vista. Não que acreditemos que deus exista, mas pensamos que o problema não é o de sua existência; é preciso que o homem se reencontre e se convença de que nada pode salvá-lo dele próprio, nem mesmo uma prova válida da existência de Deus. Nesse sentido, o existencialismo é um otimismo, uma doutrina de ação, e só por má fé é que os cristãos, confundindo o seu próprio desespero com o nosso, podem chamar-nos de desesperados.
Discussão
Não sei se o desejo que você tem de ser compreendido o tornará mais claro ou mais obscuro, mas acho que o artigo de divulgação publicado no Ação induz o leitor a um mau entendimento. As palavras “desespero”, “desamparo”, têm uma ressonância muito mais forte num texto existencialista. Parece-me que, para você, o desespero ou a angústia são mais fundamentais do que, simplesmente, a decisão do homem que se sente só e é obrigado a decidir. É uma tomada de consciência da condição humana que não acontece a todo momento. Que nós escolhemos a toda hora, é ponto pacífico, mas a angústia e o desespero não se produzem constantemente.
Não quero evidentemente dizer que, ao escolher entre um mil-folhas e uma bomba de chocolate, escolho com angústia. A angústia só é constante no sentido em que minha escolha original é uma escolha constante. De fato, na minha opinião, a angústia é a ausência total de justificativas e simultaneamente, a responsabilidade perante todos.
Eu estava me referindo ao artigo publicado pelo Ação e parece-me que o seu ponto de vista estava um tanto enfraquecido.
Sinceramente, acho que é possível que, no Ação, minhas teses tenham ficado um pouco enfraquecidas; acontece, freqüentemente, que pessoas não qualificadas venham fazer-me perguntas. Encontro-me, então, diante de duas soluções possíveis: recusar-me a responder ou aceitar a discussão ao nível da vulgarização. Escolhi a segunda porque, no fundo, quando expomos teorias no colégio, numa aula de filosofia, aceitamos enfraquecer uma idéia para torná-la inteligível, e não é tão ruim assim. Se a teoria é uma teoria do engajamento, temos de engajar-nos até o fim. Se, realmente, a filosofia existencialista é uma filosofia que diz: “a existência precede a essência”, ela deve ser vivida para ser verdadeiramente sincera. Viver como existencialista é aceitar pagar por essa doutrina e não impô-la através de livros. Quem deseja que essa filosofia seja um engajamento de verdade, deve justificá-la perante aqueles que a discutem no plano político ou moral.
Você me acusa de utilizar a palavra humanismo. É que o problema se coloca da seguinte forma: Ou situamos a doutrina num plano estritamente filosófico, e devemos contar com o acaso para que ela desempenhe uma ação, ou, já que as pessoas esperam dela outra coisa e já que ela quer ser um engajamento, é preciso aceitar vulgarizá-la, com a condição de que a vulgarização não a deforme.
Aqueles que querem entendê-lo, entenderão e os que não querem, não entenderão.
Você parece conceber o papel da filosofia na comunidade de um modo já ultrapassado pelos acontecimentos. Antigamente, os filósofos só eram atacados por outros filósofos. O leigo não entendia nada e também não se importava com isso. Agora, a filosofia é obrigada a descer em praça pública. O próprio Marx procurou constantemente divulgar o seu pensamento; o Manifesto é a vulgarização de um pensamento.
A escolha original de Marx é uma escolha revolucionária.
Aquele que for capaz de dizer que ele se escolheu primeiro revolucionário e em seguida filósofo ou primeiro filósofo e depois revolucionário, pode considerar-se um espertalhão. Ele é filósofo e revolucionário: é um todo. O que significa dizer que sua escolha original foi ser revolucionário?
O Manifesto Comunista não me parece uma vulgarização mas uma arma de combate. Não posso crer que não seja um ato de engajamento. Uma vez que o Marx filósofo chegou à conclusão de que a revolução era necessária, seu primeiro ato foi o Manifesto Comunista, que é um ato político. O Manifesto Comunista constitui a ligação entre a filosofia de Marx e o comunismo. Qualquer que seja a moral que você tenha, a relação lógica entre essa moral e a sua filosofia não é tão sensível quanto a que existe entre Manifesto Comunista e a filosofia de Marx.
Trata-se de uma moral da liberdade. Se não existir contradição alguma entre essa moral e a nossa filosofia, nada mais se pode exigir. Os tipos de engajamento diferem em função das épocas. Numa época em que engajar-se era fazer a revolução, era preciso escrever o Manifesto. Numa época como a nossa, em que existem vários partidos que se dizem revolucionários, o engajamento não consiste em aderir a algum deles, mas em procurar esclarecer os conceitos, para definir com mais rigor a posição de cada um desses diversos partidos revolucionários e, simultaneamente, tentar agir sobre eles.
A questão que pode colocar-se, a partir dos pontos de vista que você acaba de destacar, é a de saber se a sua doutrina não irá apresentar-se, num futuro próximo, como a ressurreição do radical-socialismo. Isso pode parecer estranho, mas é assim que devemos colocar a questão atualmente. Você assume, aliás, os mais diversos pontos de vista. Porém, se procurarmos um ponto de convergência de todos esses pontos de vista, desses vários aspectos das idéias existencialistas, tenho a impressão de que o encontraremos numa espécie de ressurreição do liberalismo; sua filosofia tenta ressuscitar – em condições muito particulares, que são as condições históricas atuais – o que constitui o essencial do radical-socialismo, do liberalismo humanista. O que confere características próprias à sua doutrina é que a crise social mundial já não permite o antigo liberalismo; ela exige um liberalismo torturado, angustiado. Creio que é possível encontrar certo número de razões bastante profundas para essa apreciação, mesmo se nos ativermos aos termos que você mesmo utilizou. O que ressalta da exposição de hoje é que o existencialismo se apresenta sob forma de um humanismo e de uma filosofia da liberdade que, no fundo, é um pré-engajamento, um projeto que não se define. Você coloca em primeiro plano, como muitos outros, a dignidade humana, a eminente dignidade do indivíduo; estes são temas que, bem vistas as coisas, não estão muito afastados de todos os antigos temas liberais. Para justificá-los, você estabelece distinções entre os dois sentidos de humanismo, entre os dois sentidos de “condição humana”, atribuindo duplos sentidos a uma série de termos já sensivelmente desgastados, que, aliás, possuem toda uma história bastante significativa e cuja ambigüidade não é fruto do acaso. Para salvá-los, você inventa-lhes um novo significado. Deixo de lado todas as questões específicas relativas à técnica filosófica, muito embora elas me pareçam interessantes e importantes, e, a fim de me ater aos termos que escutei, destaco um ponto fundamental que demonstra que, apesar da distinção que você estabeleceu entre os dois sentidos de humanismo, você se apóia, no fundo, no antigo.
O homem apresenta-se como uma escolha a ser feita. Muito bem. Ele é, antes de mais nada, a sua existência no momento presente e está fora do determinismo natural; ele não se define anteriormente a si mesmo, mas em função do seu presente individual. Não existe natureza humana superior ao homem, mas uma existência específica lhe é dada em determinado momento. Pergunto a mim mesmo se a existência, concebida desse modo, não é uma outra versão do conceito de natureza humana que, por razões históricas, se reveste de uma nova expressão; se ela não é muito semelhante – muito mais do que parece à primeira vista – à natureza humana tal como era definida no século XVIII e cujo conceito você afirma rejeitar, já que ela se encontra, em larga medida, por trás da expressão “condição humana” tal como o existencialismo a utiliza. Sua concepção da condição humana é um substituto para a natureza humana, assim como você substitui a experiência vulgar ou a experiência científica pela experiência vivida.
Se considerarmos as condições humanas como condições que se definem por um X, que é o X do sujeito, mas não pelo contexto natural dessas mesmas condições nem por sua determinação positiva, estamos perante outra forma de natureza humana: trata-se de uma natureza-condição, se você quiser, ou seja: a natureza humana não se define simplesmente como tipo abstrato de natureza mas revela-se por meio de algo que é muito mais difícil de formular – por razões que, na minha opinião, são históricas. Hoje em dia, a natureza humana define-se dentro dos limites dos quadros sociais que são os de uma desagregação geral dos regimes sociais, os das classes, dos conflitos que as atravessam, da miscigenação das raças e das nações, que fazem com que a idéia de uma natureza humana uniforme, esquemática, não possa mais apresentar-se com o mesmo caráter de generalidade, assumir o mesmo tipo de universalidade que tinha no século XVIII, época em que ela parecia expressar-se em função de um progresso contínuo. Atualmente, lidamos com uma expressão de natureza humana que as pessoas que pensam ou falam ingenuamente sobre o assunto chamam de condição humana; elas a expressam de modo caótico, vago e, na maioria das vezes, de um modo dramático, se se quiser, imposto pelas circunstâncias; e, na medida em que não desejam passar da expressão geral dessa condição ao exame determinista do que são efetivamente as condições, essas pessoas conservam o tipo, o esquema de uma expressão abstrata, análoga à natureza humana.
Assim, o existencialismo agarra-se à idéia de uma natureza humana. Mas agora já não é uma natureza orgulhosa de si mesma, mas uma condição temerosa, incerta e desamparada. E, efetivamente, quando o existencialismo fala de condição humana, está falando de uma condição que ainda se encontra verdadeiramente engajada naquilo que o existencialismo chama de projeto e que, conseqüentemente, é uma pré-condição. Trata-se de um pré-engajamento e não de um engajamento nem de uma verdadeira condição. De modo que também não é por acaso que tal condição se define, antes de mais nada, por seu caráter de humanismo geral. Aliás, quando, no passado, alguém falava de natureza humana, estava se referindo a algo mais delimitado do que uma condição em geral; pois a natureza já é outra coisa, é mais do que uma condição, em certo sentido.
A natureza humana não é uma modalidade no sentido em que a condição humana é uma modalidade. E é por isso que, na minha opinião, é melhor falar de naturalismo do que de humanismo. No naturalismo, há uma implicação de realidades mais gerais do que no humanismo, pelo menos no sentido que a palavra humanismo assume em sua exposição; estamos diante de uma realidade. Aliás, seria necessário ampliar esta discussão relativa à natureza humana, pois é preciso introduzir também o ponto de vista histórico. A realidade primeira é a realidade natural, da qual a realidade humana é apenas uma função. Mas, para isso, temos de admitir a verdade da história, e o existencialismo, de modo geral, não admite a verdade da história nem da história natural em geral, nem mesmo da história humana; e, no entanto, é a história que faz os indivíduos; é a sua própria história, a partir do momento em que são concebidos, que faz com que os indivíduos não nasçam e não apareçam num mundo que lhes confere uma condição abstrata, mas surjam num mundo do qual sempre fizeram parte, para o qual estão condicionados, e que eles próprios contribuem para condicionar – do mesmo modo que a mãe condiciona seu filho e que esse filho a condiciona desde a gestação. É somente desse ponto de vista que temos direito de falar da condição humana como de uma realidade primeira. Seria mais correto dizer que a realidade primeira é uma condição natural e não uma condição humana. Estou apenas repetindo, aqui, opiniões correntes e banais mas que não me pareceram de modo algum refutadas pela exposição do existencialismo. Em suma, se é verdade que não existe uma natureza humana abstrata, uma essência do homem independente ou anterior à sua existência, é certo também que não existe uma condição humana em geral, mesmo que, por condição, você entender certo número de circunstâncias ou situações concretas – visto que, em sua opinião, elas não estão articuladas. De qualquer modo, o marxismo tem, a esse respeito, idéias diferentes: a da natureza no homem e do homem na natureza, o qual não está forçosamente definido de um ponto de vista individual.
Isso significa que existem leis de funcionamento para o homem assim como para qualquer outro objeto de ciência, que constituem, na verdadeira acepção da palavra, sua natureza, uma natureza diversificada, é certo, e que pouco se parece com uma fenomenologia, quer dizer, com uma percepção experimentada, empírica, vivida, tal como ela é apresentada pelo senso comum, ou melhor, pelo pretenso senso comum dos filósofos. Nesse sentido, a concepção da natureza humana que tinha os homens do século XVIII estava, indubitavelmente, muito mais próxima da de Marx do que a de seu substituto existencialista: a condição humana como pura fenomenologia da situação.
Humanismo é infelizmente hoje em dia um termo que serve para designar diversas correntes filosóficas, desdobrando-se não somente em dois sentidos, mas em três, quatro, cinco, seis. Todo mundo é humanista, em nossos dias, mesmo certos marxistas, que descobriram ser racionalistas clássicos, são humanistas no sentido insípido do termo, derivado das idéias liberais do século passado: o sentido de um liberalismo refratado por toda a crise atual. E assim como os marxistas podem pretender ser humanistas, as diversas religiões – a cristã, a hindu e muitas outras – também pretendem ser, antes de mais nada, humanistas; e, por sua vez, o existencialismo, e também, de modo geral, todas as filosofias. Do mesmo modo, muitas das correntes políticas atuais afirmam sua filiação humanista. Tudo isso converge para uma espécie de tentativa de restabelecimento de uma filosofia que, no fundo e apesar de sua pretensão, recusa engajar-se, e recusa engajar-se não apenas ao nível político e social mas também num sentido filosófico profundo. Se o cristianismo pretende ser, antes de mais nada, humanista, é porque ele não quer engajar-se, porque ele não pode engajar-se, ou seja, participar da luta das forças progressistas, já que ele mantém suas posições reacionárias relativamente à revolução. Se os pseudomarxistas ou liberais declaram considerar o indivíduo antes de mais nada, é porque eles recuam diante das exigências da atual situação do mundo. Da mesma forma, o existencialista, enquanto liberal, considera o homem em geral porque não consegue formular uma posição exigida pelos acontecimentos, e a única posição progressista que nós conhecemos é a do marxismo. É o marxismo que coloca os verdadeiros problemas da nossa época.
Não é verdade que o homem tenha liberdade de escolha no sentido em que, através da escolha, ele confere à sua atividade um significado que ela não teria de outro modo. Não basta dizer que homens podem lutar pela liberdade sem saber que estão lutando pela liberdade; ou então, se atribuirmos um sentido pleno a tal reconhecimento, isso significa que homens podem engajar-se e lutar por uma causa que os domina, ou seja, podem agir num quadro que os ultrapassa e não apenas em função de si mesmos. Pois, afinal de contas, se um homem luta pela liberdade sem o saber, sem formular para si mesmo, lucidamente, os meios que utiliza e os objetivos que pretende atingir, isso significa que os seus atos vão determinar uma série de conseqüências que se insinuam numa trama casual cujo princípio e fim ele não capta, mas que, apesar de tudo, encerra sua ação e lhe confere um sentido, em função da atividade dos outros; e não apenas dos outros homens mas do meio natural em que esses homens agem. Porém, no seu ponto de vista, a escolha é uma pré-escolha; volto novamente a esse prefixo, pois considero que há sempre a intervenção de uma reticência nessa espécie de pré-escolha onde atua uma liberdade de pré-indiferença. Mas sua concepção da condição e da liberdade está vinculada a certa definição dos objetos sobre a qual devo dizer duas palavras. Aliás, é dessa sua idéia acerca do mundo dos objetos, da utensilidade, que deriva todo o resto. Você traça o quadro de um mundo descontínuo de objetos – feito à imagem das existências descontínuas dos seres – de onde está ausente todo causalismo, exceto essa estranha modalidade da relação de causalidade que é a da utensilidade passiva, incompreensível e desprezível. O homem existencialista tropeça num universo de utensílios, de obstáculos sujos, encadeados, apoiados uns nos outros por uma bizarra preocupação de se servirem uns aos outros, porém marcados pelo estigma, assustador para os idealistas, da assim chamada exterioridade pura. Esta modalidade de determinismo de utensilidade é, no entanto, a-causal. Mas onde começa e onde termina esse mundo cuja definição, aliás, é inteiramente arbitrária e que não se ajusta de forma alguma aos dados científicos modernos? Em nossa opinião, não começa nem termina em parte alguma, pois a segregação a que o existencialismo pretende submetê-lo relativamente à natureza, ou melhor, à condição humana, é irreal. Existe apenas um mundo, um único mundo diante de nós, e a totalidade desse mundo – homens e coisas, se você faz questão dessa distinção – pode ser afetada, em certas condições variáveis, pelo signo da objetividade. A utensilidade das estrelas, da raiva, da flor? Não vou especular sobre isso. Sustento, todavia, que sua liberdade, seu idealismo, nasceram do desprezo arbitrário pelas coisas. Todavia as coisas são bastante diferentes da descrição que você faz delas. Você admite que elas têm uma existência própria: isso já é um sucesso. Mas é uma existência puramente privativa, uma hostilidade permanente. O universo físico e biológico nunca constitui, para você, uma condição, uma fonte de condicionamentos – sendo que essa palavra, no seu sentido mais forte e prático, não tem mais realidade para você do que a palavra causa. É por isso mesmo que, para o homem existencialista, o universo objetivo não passa de uma fonte de aborrecimentos, sem influência, no fundo indiferente, um provável perpétuo, ou seja, exatamente o contrário do que ele é para o materialismo marxista.
É por todas essas razões e outras mais que você não concebe o engajamento da filosofia senão como uma decisão arbitrária que você qualifica de livre. Ao dizer que Marx definiu uma filosofia você está desvirtuando a própria história de Marx, já que ele a engajou. Não, muito pelo contrário, o engajamento, ou, melhor, as atividades social e política foram determinantes para seu pensamento mais geral. Suas doutrinas se definiram através de uma multiplicidade de experiências. Parece-me evidente que o desenvolvimento do pensamento filosófico de Marx se processou em contato consciente com o desenvolvimento político ou social. Aliás, o mesmo aconteceu, aproximadamente, com os filósofos anteriores. Se Kant é um filósofo sistemático, conhecido por se ter mantido afastado de toda e qualquer atividade política, isso não significa que sua filosofia não tenha desempenhado certo papel político; Kant, o Robespierre alemão, sendo Heine; e, se na época de Descartes, por exemplo, se podia admitir que o desenvolvimento da filosofia não desempenhasse nenhum papel político imediato – que, aliás, não é verdade –, desde o século passado isso tornou-se impossível. Hoje em dia, retomar, de qualquer forma que seja, uma posição anterior ao marxismo, é o que eu chamo voltar ao radical-socialismo.
O existencialismo, na medida em que pode fazer nascer vontades revolucionárias, deve engajar-se, de início, numa operação de autocrítica. Não creio que o faça de bom grado, mas deveria fazê-lo. Deveria sofrer uma crise na pessoa daqueles que o defendem, uma crise dialética, que dizer, que preservasse, em certo sentido, algumas posições de alguns de seus partidários, que não são desprovidas de valor. Isso me parece tanto mais necessário que pude observar as conclusões sociais, verdadeiramente inquietantes e nitidamente retrógradas que alguns deles extraíram do existencialismo. Um deles escrevia, como conclusão de uma análise, que a fenomenologia pode servir, hoje, de modo muito preciso, no plano social e revolucionário, para dotar a pequena burguesia de uma filosofia capaz de permitir-lhe tornar-se a vanguarda do movimento revolucionário internacional. Por intermédio das intencionalidades de consciência, poder-se-ia dar à pequena burguesia uma filosofia que correspondesse à sua existência própria, que lhe permitisse tornar-se a vanguarda do movimento revolucionário mundial. Cito esse exemplo, mas poderia mencionar outros do mesmo gênero que mostram que certo número de pessoas, que até estão muito engajadas e que estão ligadas à temática do existencialismo, chegam a desenvolver teorias políticas que, no fundo – e retomo o que estava dizendo no início –, são teorias coloridas de neoliberalismo, de neo-radical-socilaismo. É realmente perigoso. O que mais nos interessa não é procurar coerência dialética entre todas as áreas abordadas pelo existencialismo, mas examinar a orientação desses temas que conduzem pouco a pouco – e até possivelmente à sua revelia e em função de uma pesquisa, de uma teoria, de uma atitude que você imagina ser muito definida – que conduzem, dizia, a alguma coisa que não é o quietismo, é claro (falar de quietismo, na época atual, é brincadeira, já que ele é impossível), mas a algo que se assemelha à passividade da espera. Isso talvez não seja contraditório com certos engajamentos individuais, mas é contraditório com a procura de um engajamento que tenha um valor coletivo e, sobretudo, um valor prescritivo. Por que razão o existencialismo não deveria impor diretrizes? Em nome da liberdade? Mas, afinal, se se trata de uma filosofia orientada no sentido indicado por Sartre, ela tem de impor diretrizes; em 1945, ela tem de dizer que é preciso aderir à UDSR, ao partido socialista, ao partido comunista ou a outro qualquer; ela deve dizer se é a favor do partido dos trabalhadores ou do partido pequeno-burguês.
É muito difícil responder a tudo o que você disse, porque você disse muita coisa. Vou tentar responder a alguns pontos que anotei. Em primeiro lugar, acho que você assumiu uma posição dogmática. Você declarou que nós estávamos retomando uma posição anterior ao marxismo, que nós estávamos retrocedendo. Creio que seria necessário provar que nós não pretendemos assumir uma posição posterior a dele. Não quero discutir sobre esse assunto, mas gostaria de perguntar-lhe como você conseguiu ter tal concepção da verdade. Você pensa que existem coisas absolutamente verdadeiras visto que faz críticas em nome de uma certeza. Porém, se todos os homens são objetos, como você diz, de onde provém semelhante certeza? Você declarou que é em nome da dignidade humana que o homem se recusa a tratar o homem como objeto. Está errado. É por uma razão de ordem filosófica e lógica: se você postular um universo de objetos, a verdade desaparece. O mundo do objeto é o mundo do provável. Você tem de admitir que toda teoria, quer seja científica ou filosófica, é provável. A prova disso está em que as teses científicas, históricas variam e que elas se formulam sob forma de hipótese. Se admitirmos que o mundo do objeto, o mundo do provável, é único, não teremos mais do que um mundo de probabilidades, e assim, como é necessário que a probabilidade dependa de certo número de verdades adquiridas, de onde provém a certeza? O nosso subjetivismo permite certezas a partir das quais poderemos juntar-nos a você no plano do provável e justificar o dogmatismo que você manifestou no decorrer da sua exposição e que é incompreensível na posição que você assumiu. Se você não define a verdade, como podemos conceber a teoria de Marx de outra forma que não seja a de uma doutrina que surge, desaparece, se modifica e que tem apenas o valor de uma teoria? Como fazer uma dialética da história se não se começar por estabelecer certo número de regras? Encontramo-las no cogito cartesiano; não podemos encontra-la senão situando-nos no terreno da subjetividade. Nós jamais discutimos o fato de que, constantemente, o homem é um objeto para o homem, mas reciprocamente é necessário, para apreender o objeto enquanto tal, que haja um sujeito que se apreenda como sujeito.
Em segundo lugar, você fala de uma condição humana que por vezes você chama de pré-condição e você menciona a existência de uma pré-determinação. O que lhe escapou, neste ponto, é que nós aderimos a muitas das descrições do marxismo. Você não pode criticar-me como criticaria alguém do século XVIII que ignorasse tudo sobre esse assunto. O que você nos disse sobre a determinação é algo que sabemos há muito tempo. O verdadeiro problema, para nós, é o de definir em que condições existe universalidade. Já que não existe natureza humana, como conservar, através da história, que se modifica constantemente, um número suficiente de princípios universais que nos permitam interpretar, por exemplo, o fenômeno Spartacus, o que pressupõe um mínimo de compreensão da época? Estamos de acordo nesse ponto: não existe natureza humana, ou seja, cada época se desenvolve segundo leis dialéticas, e os homens dependem da época e não de uma natureza humana.
Quando você procura interpretar, você diz: é porque estamos nos referindo a determinada situação. Porém nós nos referimos às analogias ou às diferenças existentes entre a vida social daquela época e a nossa. Se, ao contrário, tentássemos analisar essa analogia em função de um tipo abstrato, não chegaríamos nunca a nada. Assim, suponha que, daqui a dois mil anos, o homem não disponha, para analisar a situação atual, senão de teses sobre a condição humana em geral; como faria ele para analisar retrospectivamente? Não conseguiria.
Nunca pensamos que não se deviam analisar condições humanas nem intenções individuais. O que chamamos de situação é justamente o conjunto de condições materiais e psicanalíticas que, em determinada época, definem com precisão um conjunto.
Não me parece que a sua definição esteja de acordo com os seus textos. De qualquer modo, fica claro que sua concepção da situação não é de modo algum identificável, sequer aproximadamente, com uma concepção marxista, visto que nega o causalismo. A sua definição não é precisa: ela desliza com freqüência, habilmente, de uma posição a outra, sem que você defina seu ponto de vista de modo suficientemente rigoroso. Para nós, uma situação é um conjunto construído e que se revela por toda uma série de determinações, e de determinações de tipo casual, incluindo a causalidade de tipo estatístico.
Você está falando de causalidade de ordem estatística. Isso não significa rigorosamente nada. Você poderia explicar-me, com clareza, o que você entende por causalidade? No dia em que o marxista conseguir explicar-me isso, acreditarei na causalidade marxista. Sempre que se fala em liberdade, vocês dizem: perdão, a causalidade existe. Essa causalidade secreta que só tem sentido em Hegel, vocês não podem explicá-la. Você tem um sonho de causalidade marxista.
Você admite que existe uma verdade científica? Podem existir áreas que não comportam nenhuma espécie de verdade. Mas o mundo dos objetos – espero que pelo menos isso você reconheça – é o mundo de que se ocupam as ciências. Ora, para você, trata-se de um mundo que não tem senão uma probabilidade e que não alcança a verdade. Portanto, o mundo dos objetos, que é o da ciência, não admite nenhuma verdade absoluta. Mas atinge uma verdade relativa. No entanto, essas ciências utilizam a noção de causalidade: você concorda?
Claro que não. As ciências são abstratas, elas estudam as variações de fatores igualmente abstratos e não a causalidade real. Trata-se de fatores universais num plano onde as ligações podem sempre ser estudadas. Ao passo que, no marxismo, trata-se do estudo de um conjunto único no qual se procura uma causalidade. Isso nada tem a ver com a causalidade científica.
Você deu um exemplo, longamente desenvolvido, o do jovem que o procurou.
Não estava ele no plano da liberdade?
Você devia ter-lhe dado uma resposta. Se eu tivesse no seu lugar, teria tentado informar-me do que ele era capaz, qual a sua idade, quais as suas possibilidades financeiras, teria tentado examinar as relações que ela tinha com a mãe. É possível que eu tivesse emitido uma opinião provável, mas teria certamente tentado definir um ponto de vista preciso, que talvez até se revelasse falso ao nível da ação, mas eu o teria com certeza levado a se engajar, de alguma forma.
Se ele veio pedir-lhe um conselho, é porque já escolheu a resposta. Em termos práticos, é claro que eu poderia ter-lhe dado um conselho; mas, já que ele procurava a liberdade, quis deixá-lo decidir sozinho. Aliás, eu já sabia o que ele ia fazer, e foi o que ele fez.
FIM
Referência:
SARTRE, Jean-Paul. L’Existentialisme est un Humanisme. Tradução de Rita Correia Guedes. Paris: Les Éditions Nagel, 1970.
Ilustração:
Jean-Paul Sartre. History. Disponível em: http://www.seuhistory.com/hoy-en-la-historia/fallecio-jean-paul-sartre
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