Nota Crítica ao “Existencialismo é um Humanismo” de J. P. Sartre
Jean-Paul Sartre com “Nothing”
NOTA CRÍTICA A “O EXISTENCIALISMO É UM HUMANISMO” DE J . P. SARTRE
ERIK HAAGENSEN GONTIJO*
Essa nota não pretende ter a amplitude de uma crítica ao pensamento de Sartre como um todo.
Trata-se apenas de uma glosa sobre o discurso de Sartre publicado com o nome de “O Existencialismo é um Humanismo”, um texto pequeno, por demais superficial, escrito para ser proferido em uma palestra e, por fim, pregresso na obra do autor, que posteriormente chegou a rejeitá-lo.
Por vezes instigante, por vezes confuso, nele encontramos idéias filosóficas interessantes, como a concepção de uma existência pessoal a princípio gratuita, mas que, ao longo de sua própria história, afirma seu sentido na convivência com os outros, na qual também estabelece e fundamenta os parâmetros da interação social. É uma filosofia que se volta contra todo e qualquer determinismo, no que diz respeito à justificação das ações individuais.
No entanto, é aí mesmo que os problemas começam, problemas bem típicos do subjetivismo – que Sartre postulava como princípio filosófico do existencialismo (a propósito, ele declara o Cogito cartesiano como o único ponto de partida seguro para a filosofia, e retira dele uma “demonstração” – que, entretanto, não aparece no texto, quer dizer, ele saca da cartola – da intersubjetividade como desdobramento necessário do Cogito. Isso em meio a outras misturebas e colagens de idéias filosóficas alheias, sem citar nomes). Ora, o idealismo, ao postular a subjetividade como preponderante ou acima da objetividade, abre toda uma tendência de queda no moralismo burguês, aquele que abstrai o indivíduo das circunstâncias de suas escolhas (por exemplo, aquilo que se apresenta a estas como cardápio de possibilidades, que jamais são infinitas e, portanto, desprezíveis) para tomá-lo como único e absoluto determinante da ação; um risco que se mostra tão evidente no texto sartreano que me pergunto se já não está consumado e eu é que estou sendo complacente com o autor.
De fato, é necessário rejeitar o naturalismo, o determinismo, a heteronomia, e assumir o fato de que a existência humana é anterior e é produtora de sua própria essência, do que resulta a liberdade e a autonomia dos sujeitos. Mas não se deve jogar a criança junto da água suja; rejeitar o determinismo não pode ser o mesmo que rechaçar a existência de determinações. Tanto é verdade que a existência precede a essência, quanto o contrário. Não surgimos no mundo como uma tábula rasa (perante o próprio mundo), e não estamos “condenados à liberdade” de iniciar, a cada nova geração, todo o campo da moral a partir do zero. Mesmo que a índole de um sujeito pudesse se formar a despeito da cultura, das relações que ele tece com os demais etc. (o que seria algo muito estranho: se não provém da sociabilidade, o caráter é inato? Infelizmente, neste texto Sartre não discute isso), seria o caso de se avaliar as possibilidades que fornece o ambiente humano, no qual o indivíduo vive, para este expressar seu temperamento.
Deveríamos ignorar isso ao julgar suas escolhas? Em que medida elas não são uma imagem da sociabilidade que estabelecemos entre todos nós? E que, por sua vez, não resulta da mera vontade de cada indivíduo, pois há uma “essência”, uma determinada forma de se reproduzir a vida e sua respectiva expressão cultural, que é herdada pelo indivíduo, no interior da qual ele deve se situar antes de decidir o que fazer dela e de si mesmo, no que for possível. A partir disso, fica claro que as questões morais devem ser vistas no interior de uma perspectiva crítica da sociabilidade; do contrário, afundamos na indigência do conservadorismo mais tacanho.
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PS. Na verdade, Sartre diz que “a escolha é sempre uma escolha numa situação determinada”. Porém, e sintomaticamente, “o homem permanece o mesmo perante situações diversas”; tudo que resta é julgar em que medida ele age de acordo com o conhecimento de sua liberdade e responsabilidade, ou se ele procura se esconder cinicamente sob algum determinismo qualquer. Isso é decorrência de mais um dos tantos momentos nos quais o subjetivismo de Sartre derrapa do “humanismo” pro individualismo, quando a moral – a objetividade social dos valores – simplesmente vai pro espaço, restando apenas “a liberdade” como medida e valor abstratos que estariam por sob os interesses concretos.
Nota: *Erik Haagensen Gontijo, mestre, licenciado e bacharel em Filosofia pela Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas – UFMG, defendeu dissertação intitulada “Natureza, Sociedade e Atividade Sensível na Formação do Pensamento Marxiano” sob orientação da Profa. Dra. Ester Vaisman. Professor de Filosofia no ensino superior e médio do IFMG.
Referência: HAAGENSEN, E. G. Nota crítica a “O Existencialismo é um Humanismo” de J. P. Sartre. Chá.com Letras, 19 abr. 2015. Disponível em: <http://www.chacomletras.com.br/2015/04/4500/>.
Ilustração:
Jean-Paul Sartre com “Nothing”. Communists with cats. Disponível em: http://communistswithcats.tumblr.com/post/66292022223/jean-paul-sartre-with-nothing
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