Nejar e “a alegria de ser da linguagem”
Mar enfurecido:
uma entrevista com Carlos Nejar
FABRÍCIO CARPINEJAR
O poeta e ficcionista gaúcho Carlos Nejar aparenta uma juventude antiga, própria das oliveiras. A cada pergunta, respira fundo, um fôlego que conheço bem, a mesma pausa que escuto quando ele lê um poema. Aquele intervalo de crença e persuasão, necessário para os ouvidos acompanharem sua voz cheia de vento. Com 62 anos, membro da Academia Brasileira de Letras, nada tem de formal. O riso espontâneo desarma qualquer austeridade. Talvez seja essa alegria que tenha feito Carlos Heitor Cony caracterizá-lo como um ‘levantino’. A alegria de ser linguagem. A figura do ateliê traduz seu ambiente criativo, o Paiol da Aurora, em Guarapari, Espírito Santo, onde mora com a esposa Elza. A tela é o mar enfurecido de uma manhã de junho.
FC – Nejar significa carpinteiro em árabe. Não por menos que a poesia tem sido tua madeira da lei nos últimos 40 anos. Poesia é vocação ou sina?
CN – Poesia é uma vocação, que é sina e uma sina, que é vocação irresistível para a vida.
FC – Defendes uma teoria que diferencias o ato negativo de retocar um poema do positivo de cortar? Como ela funciona? Tiveste um professor ou um inspirador? Ou foi a vivência que te ensinou a respeitar o silêncio entre os versos?
CN – Viver se aprende vivendo. Lendo os textos dos grandes poetas da humanidade e o silêncio dos versos, mais forte que muitas de suas palavras. Sem deixar que a autocrítica mate a criação, a arte da poesia é a de saber podar. Cortamos no texto o que conseguimos cortar em nós. “O silêncio dos espaços infinitos me atordoa” (Pascal). Não seria a poesia a grande respiração do silêncio encanado por dentro da palavra?
FC – Uma metáfora é capaz de salvar um poema. Porém, o excesso de metáforas não é a forma mais rápida de destrui-lo?
CN – Há poemas que são feitos de uma só metáfora. E há metáforas tão preciosas que salvam um poema. Todavia, o excesso de metáforas, sem harmonia interior, em fogo estranho, suscita o “engarrafamento de trânsito”, fazendo com que o leitor nunca chegue ao seu verdadeiro destino. O papel autoral é descobrir e imaginar junto do leitor. Nem antes nem depois. Ao mesmo tempo.
FC – Poucos conhecem tua infância, apesar dela estar presente como força-motriz em praticamente todos os livros. Os espaços fechados, como porão e sótão, recorrentes em tua visão de mundo, foram os esconderijos de uma infância solitária.
CN – Sim, minha infância está cercada de personagens que inventei (recordo, entre eles, Mavar) e muitos esconderijos. Com o porão e o sótão podia engendrar espaços. Fui um menino solitário que aprendeu o mundo com as palavras. Depois vivi a tua infância e a dos teus irmãos, como se continuassem a minha. E começo a descobrir agora a infância mais poderosa de todas: a do futuro. Depois, virá a da eternidade. Ou, quem sabe, a eternidade não corresponda à infância da linguagem.
FC – Como geras o romance? É semelhante ao teu processo poético?
CN – Em ambos os casos, vou anotando em livros, cadernos, à semelhança de composições musicais. Exijo ainda o contato direto com a página para escrever. Observar a tinta escorrendo da mão. O computador serve para passar a limpo. Só que o romance nasce diferente da poesia. Desce como a neblina. Os seres tomam minhas palavras. Faz lembrar o Amacord de Fellini e sua inaugural névoa. Enquanto estamos nela, a imaginação nos vê.
FC – O livro Os Viventes traz uma centena de personagens versificados. Estaria aí o germe de tua ficção?
CN – Talvez tenhas razão: pode estar no Viventes o germe de minha criação ficcional. É um trabalho de mais de 20 anos, com seres inventados que me inventaram, seres benditos e danados, seres da história, da pintura, da escultura, da Bíblia, dos ofícios terrestres, poetas, nômades e profetas. Uma comédia humana em miniatura, com mais de duzentos personagens. Meus poemas sempre tiveram um personagem como guia ou foram poemas-personagens.
FC – Segundo teu prisma, a poesia não importa como gênero, mas como movimento entre gêneros. De que maneira a crítica está preparada para enxergar a poesia mesmo quando não há o poema?
CN – Não sei de que maneira a crítica está preparada para a ruptura dos gêneros, habitando verdadeiramente a casa da linguagem. Eduardo Portella, um dos nossos maiores críticos, observou: “Há o poeta da poesia e o poeta do verso.” O poeta do verso se extingue com o verso, o poeta da poesia permanece. Para mim, o poema, o romance, o ensaio e o teatro são linguagem. E, portanto, busco ser apenas um poeta da poesia. Homero, o primeiro romancista, soube criar o seu texto como poema. E sua linguagem continua viva. Em função da secura e da falta de pensamento de muitos romances contemporâneos, está ocorrendo um retorno à fonte de água pura. “O que tem mil anos é contemporâneo” – dizia Saint-John Perse. Estamos ficando novamente mais próximos dos aedos, da criação oral.
FC – Lanças cerca de dois livros por ano. Arder é mais importante que terminar a obra? O que falta ao poeta? Qual o motivo de tanta voracidade, reproduzir o mundo num livro? Escrever é não morrer, assim como Em busca do tempo perdido era o antídoto de Proust contra sua enfermidade?
CN – Mais que voracidade, tenho a vontade de salvar o máximo de vida possível da morte. Para que possa ser capaz de ressuscitar. O fogo da criação assemelha-se ao amor de Deus: um fogo que arde sem poder consumir-se. A criação é santificadora.
FC – No romance Riopampa (2000), mencionas a contenção extremada de água num povoado imaginário. Antes mesmo do movimento sem-terra, já prenunciava essa fileira de agricultores deserdados na tua poesia dos anos 60. Qual tua reação quando percebes que a realidade supera a ficção? O poeta é realmente o termômetro da mudança?
CN – É verdade. O poeta é um arauto da mudança. Não busca, está nele. Vislumbrei o movimento dos sem-terra, já em Canga (1971): “O que tenho: desespero e ferro./A terra não tem dono,/ o homem não tem terra./ Os trigos se penduram/ na haste de uma idéia”. Quando o Plano Real do Governo brasileiro resplandecia, escrevi o romance Carta aos Loucos (1998), no qual a permuta ou o escambo substituem a moeda oficial. Demonstro que a moeda foi feita para servir o povo e não o contrário. Meu romance Riopampa (2000) trata da luta pela água, antes do racionamento, que se impõe ainda à luz. O poeta está sempre adiante, mesmo não sabendo.
FC – Foste o primeiro poeta e o primeiro gaúcho a presidir a Academia Brasileira de Letras. Como foi a experiência de administrador?
CN – Sim, fui o primeiro poeta presidente em cem anos de Academia. Exerci o papel por três meses, num momento de crise, em que o então presidente ficou enfermo. Eu me descobri administrador, abrindo a Academia para a comunidade, aos acadêmicos e funcionários. Foi um tempo precioso. Penso que tive a bondade de ver mais longe, conhecendo melhor o poder e os homens. Dediquei-me como secretário-geral à construção da nova Biblioteca da Casa de Machado, que atenderá o público num andar inteiro.
FC – O escritor cubano Lezama Lima costumava dizer: “quando estou claro, escrevo prosa. Quando escuro, poesia.” Segues o mesmo dilema?
CN – Vejo diferente. Com meus poemas, escrevo os sonhos e com os romances, os pesadelos contemporâneos. Não vivo sem uns e outros. Talvez a luz seja a escureza e a escuridão, espantosa luz.
FC – Recuperas a forma do soneto, seja no Amar a mais alta constelação, seja no livro inédito Inquilino da Urca. Está havendo um resgate de estruturas tradicionais. Como reavivá-las ao fogo do presente
CN – Não há forma fixa que não possa ser a mais móvel, diante do fogo da invenção. Criar é pôr em jogo os limites. Até o delírio. Aliás, há um livro filosófico e crítico de Ricardo Moderno sobre a minha Carta aos loucos, no prelo, que defende exatamente a razão do delírio.
FC – Descendes de uma geração ligada à oralidade, trabalhando na fronteira entre epicidade e o lirismo. Como conciliar essas duas estruturas?
CN – A epicidade e o lirismo dos gazéis vêm do meu lado levantino. A oralidade procede de uma poesia eminentemente fonética, que é a pampeana. Tudo se concilia. O poema há de ser plástico e musical, sob pena de empobrecimento. É um livro de gravuras com música dentro.
FC – Qual o maior crime cometido à poesia brasileira? Será a exclusão da poesia mística – Cecília, Jorge de Lima, Murilo Mendes – como um dos seus principais pilares, fazendo o processo inverso, por exemplo, ao crescimento literário da França (Claudel, Pegúy) e da Espanha (Unamuno, Machado, Alberti)
CN – O maior crime contra a grande poesia brasileira é o seu desconhecimento. E a burrice não tem pátria.
FC – Antes sabias citar de memória teus livros, agora enfrenta um novo mecanismo de criação: o esquecimento. Poderias especificá-lo?
CN – Sim, a partir dos meus quarenta anos, eu que lembrava de cor quase todos os meus poemas, passei a esquecê-los. Talvez para que vivessem independentes de mim. E comecei a escrever romances, com a memória que chamo do esquecimento (que foi subtítulo de Memórias do Porão, 1984). E assim tirei do baú um tempo desconhecido. E é como um rosto que não acaba mais.
Referência:
CARPINEJAR, Fabrício. Mar enfurecido: uma entrevista com Carlos Nejar. Agulha – Revista da Cultura, n. 25, Fortaleza/São Paulo, jun. 2002. Disponível em: <http://www.revista.agulha.nom.br/ag25nejar.htm>
Ilustração:
Carlos Nejar. Autor desconhecido desta escritora. Disponível em: <http://www.revista.agulha.nom.br/ag25nejar.htm>
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