Os políticos na visão de Carlos Nejar
Carta aos Loucos
CARLOS NEJAR
QUARTO
De como o povo puxa a água, puxa o sonho. Gabirus
VI
“É melhor viver sob a pata de um leão que ser exposto, continuamente, aos dentes de milhões de ratos”. Assim pensa Voltaire. E penso eu. Sem ter do enciclopedista francês a gloriosa controvérsia, ou a clareza de estilo. Mas os membros da comunidade lindeira com Assombro, em vez de se exporem aos dentes dos ratos, expõe os ratos aos seus, afiadíssimos.
Isolados desconhecem a palavra e a palavra os desconhece.
E esses roazes vizinhos são chamados gabirus. Com o medo incessante da ratoeira. Seria homens? Raça de anões, consentem em viver, não vivem. E nem se abrem ao certo quem são os ratos, quem são os anões. Isentos de consciência, pastos de políticos, não levam sequer esperanças terrenas ou eternas.
E de noite são um perigo para nós. Alguns foram vistos ocultando-se na relva da colina, Outros entram roedores, em recantos espessos do povoados. Outros subtraem roupas, sapatos e algum pão; visitam, furtivos, as despensas. E comem ratos, até que os ratos se revoltem contra eles.
E ao penetrarem, clandestinamente, em Assombro, mostram o quanto são incrédulos e mordazes parceiros do tempo. No entanto, os dentes não são sábios; a fome dissolve as alianças. E não faz prisioneiros.
Um bando de homens gabirus invadiram, famintos, numa noite de pequena lua, Assombro. E se adonaram de três lotes baldios. O Prefeito Euzébio tentou arredá-los, no exercício de seu poder de polícia, sem conseguir.
O povoado não se queixava dessa usurpação, senão entre murmúrios. Um cavalo, na proximidade dos lotes ocupados, soltou-se de sua brida e, espantado, poroso, correu entre os anões, com fortes relinchos. Mas não parou. Como se um rebento de fogo sobre a cauda, ou abelhas o seguissem. Era um presságio?
Comiam ratos. E, como a natureza do que come absorve a do que foi digerido, os gabirus tomavam lindos pelos, lentamente. Os queixos se alongavam em focinhos ponteagudos. E, em vez da fala, puseram-se a guinchar. Com ótima audição, engatilhavam dentes, cada vez mais cortantes.
Tais viventes já têm antecedentes históricos. Os discípulos de Paracelso acometeram a criação de um homúnculo, por obra de alquimia. Não era obra mais monstruosa que a dos gabirus. Sem a alquimia dos sonhos, a obra da realidade é bem mais extravagante e funesta.
E eu, que relato esses fatos, recordo-me do Cícero. Se tivesse ele dado maior importância aos ratos, temeria a segurança da Pátria, uma vez que em sua casa roeram os tomos de A República. E como ao livro de Epicuro – Da alegria de viver – também roeram, temiam um encarecimento da existência. E Calpúrnio, que teve por eles devorados seus sapatos, surpreendia-se não serem os sapatos a roer os ratos. E não sou ingênuo a ponto de contrariar essas opiniões da história.
Os gabirus que eram um bando e assim agiam, no transitar dos dias, foram-se multiplicando.
Apareciam nos lugares mais inesperados. Numa bota, em gavetas, ou nos quintais, onde cachorros furiosos os dilaceram.
Não existia grade, cerca ou muro que bastasse. Subtraíram merendas escolares ou tênis de crianças. Nem o couro e o pano amordaçam seus dentes. O sorveteiro abria lânguido, a tampa da carroça e, em vez de picolé, ocultava-se um moleque gabiruano.
As galinhas não dormitavam na paz dos galinheiros, com seus ovos furtados. E cada vez mais vislumbrávamos os acesos olhos gabirus nos quadros de Klee, Bosch, Miró. Consciência mergulhada em outra, no universo. Imensa.
E, caros leitores, como as rãs numa praga do Egito, gabirus se instalavam nas casas, subiam nos dormitórios, sobre as camas, pelos fornos e assadeiras, Entravam nos templos da Santa Madre Igreja, de estilo mais burocrata, e homens-rato gabirus frequentavam, com fervorosos pêlos, a sacristia ou ascendiam às torre, entre sinos, ou se assentavam nos cabidos, ou sob o púlpito. Outras vezes se apossavam dos porões do vigário-geral da arquidiocese. Ou alguns roíam bulas de vida perene ou papéis de jaculatórias e alguns círios. Não podia considerá-los, leitores, nem apostólicos romanos. Porque tudo é um ato de vontade, e ao não se distinguir entre homem e rato, como convencer-se de sua túrgida piedade, ou se é cristã a alma, pronta aos sacramentos, ou ao cilício penitencial dos símbolos?
Ou talvez entrem de vez na religião, com os credos onerosos da paciência. E assim soube do susto que o vigário de uma igreja despegou dos atônitos olhos, ao ver um gabiru pular de seu missal.
E nem as ratoeiras ou estratagemas lograram capturá-lo.
Foi-me dito – e não tenho por que duvidar de minha fonte – que homens-ratos rasgaram trajes clericais e emblemas hierárticos.
Em face dos acontecimentos, talvez nos sirva, leitores, pois a mim tem servido, esta teoria, que tratadistas esqueceram, mas que nos faz refletir ou deplorar. E por esta condição humana que habitamos resolvi chamar, na falta de outro nome mais adequado – teoria ou dogmas funcionais da fome:
1. Não tem pátria;
2. É isenta sempre;
3. Espera a vez na moita;
4. Jamais é fiel ou grata;
5. Não dança, quando esmaga;
6. Aos desafetos cava;
7. Nada quer emprestado;
8. É desigual na fama;
9. Morde, morde até a sombra;
10. É o ouvido da boca.
Não discuto. Vejo, acompanho os acontecimentos, declaro o coletivo pavor.
“A resistência, ao rechaçar uma opinião, não é argumento a favor de sua verdade” – diz Brekeley. E quanto mais rechaço, mais pode vir a ser a mim tangível. Como o soldado alvejado na seteira. Não importa. A fome é irrevogável e não disfarço, nem ao meu cão Tabor, leões.
“Os gabirus são uma forma de terror” pensei.
Assombro dorme enquanto escrevo, e se vira na cama. Dorme e eu sonho de olhos fundos e acabados. O texto é o espelho. Não tenho mais futuro, nem presente, nem passado. Estou nele.
No foro do povoado, Loss, o proprietário dos lotes esbulhados, propôs uma ação possessória contra os invasores. O que também não é sem antecedentes. No século XVI, foi instaurado um processo contra os ratos, onde funcionou o célebre jurista Bartolomeu Chassenée, advogado da Corte de Rei Francisco I.
Mas como condená-los? A fome é algoz de si mesma.
O Conselho Municipal foi convocado para arrostar essa calamidade. Ainda mais que o saque se estendia pela incauta vizinhança. E não se acreditava no processo de Loss, nem na justiça surda, cega e louca. Ou na polícia, com sua Delegacia, às vezes devassada pelos ratos, roendo indagações e provas.
“Não podemos tolerar que a sombra possa dar origem à luz?” – anotou Roberto Juarroz. Nem eu tolero o que gerou os gabirus. Nem sustento a teologia da fome. Nem a da invasão, embora a posse seja locatária da fome.
Veio a lume um artigo no jornal A Ordem, de um pacifista, Orlando. Observava que não cabia distinguir se os gabirus eram ratos, ou se eram homens. Isso aumentava a pungência, sem resolvê-la. E não tinha outro pacto, o que era resolúvel no amor. Devíamos combater juntos a fome e o que a engendrava. E relembrou a ode do poeta escocês Robert Burns, que se apiedou de um ninho de ratos que destruíra com o arado. Alegando que a poesia tinha o poder de reduzir a impiedade dos homens.
As opiniões da comunidade estavam cindidas no fio de uma espada, a paixão. Os religiosos pretendiam catequizar os gabirus. Houve um clérigo, Pe. Ronildo, que inventou algumas regras, norteando essa ciência salvadora, onde pairava um estranho diálogo entre mudos.
Os pedagogos chefiados por Parmênides e seu ex-aluno, agora mestre-escola, Dimedes, sustentavam a necessidade humanista de reeducá-los.
Vereadores sectários, dois deles separatistas, defendiam o morticínio dos gabirus, com a exposição da carne nos açougues, como porcos e ovelhas. Alegavam que assim como certos países comerciam a carne dos cavalos, esses gabirus não passavam de pequenos javalis (diziam, talvez, à sua “boa” consciência). Para eles, os que feriam o corpo social teriam o seu próprio corpo lesionado. A violência e o terror deviam ser confrontados com a violência e o terror. Como imagens saídas de um espelho, de imediato e mortal reflexo.
Entre todos, um e outro, raros, propugnavam a favor da invasão gabiruana, aludindo à opressão do sistema e à falta de oportunidade aos mais pobres, frutos de uma insensível burguesia. E ainda – cumpre ressaltar – um irrelevante grupo de monárquicos afirmavam ser esse fenômeno social apenas uma consequência do regime desequilibrado entre os poderes, sem a consciência unitária capaz de plasmar os interesses estatais, dinásticos e populares.
Porém a revelação solucionadora estava com a palavra do pacifista Orlando: os gabirus são seres humanos. Devemos ajudá-los a superar os ratos que estão nele. Se os acostumarmos a existir como gente, ou ensinarmos a eles o método de melhor alimentar-se, com a límpida palavra que designa as coisas, ultrapassarão a condição gabiruana. E expulsando os ratos dos homem, expulsaremos a peste. E a má consciência, outra espécie de julgamento sem juiz. Ninguém pode conhecer a morte, sem morrer. Correta é a defesa de Orlando, que num transe de erudição citou o Marquês de Vauvernages: ”É impossível ser justo sem ser humano”. Pois o que a humanidade percebe da Justiça?
“As controvérsias na comunidade são um problema dos olhos”. E Bernard Shaw se gabava de seus olhos, por serem totalmente normais, porquanto é reduzido o número de pessoas que detenham a vista perfeita. E se não tivermos os olhos normais de Shaw, que possamos ter a inteligência de reconhecê-lo. Ou admitir que os olhos são preconceituosos, parciais. Ou por demais peremptórios, com a visão oblíqua do real. “A cultura, sendo diálogo, não tem donos ou proprietários”.
Essas anotações integram o novo artigo de Orlando, no periódico A Ordem, após debates a respeito do destino dos homens gabirus.
Orlando teve sólida formação literária e não aceitava, onde estivesse, a maleva raiz do preconceito ou incompreensão humana. Seus olhos vivos contrastavam com a face pálida, às vezes macilenta, de quem se alimenta pouco, sem horário, sem sombra o indício da violência que a carne dos animais abrigava. Vegetariano inveterado, portanto. Mas a vida, infelizmente, não tomava conhecimento disto. E era violenta, furtiva, áspera.
Depois da reunião do Conselho Municipal de Assombro, composto de dez cidadãos eleitos para questões de gravidade, com o Prefeito Euzébio como presidente nato, por sugestão minha, resolveram formar uma comissão de seis integrantes, dirigida por Novalis. Foram conversar com os gabirus. Ou descobrir em que medida os homens eram ratos e estes, homens. Porque, se for descoberta alguma centelha do homem neles, há ninhos de esperança.
E a palavra pode educar homens e símbolos, mesmo os sonhos. Tudo dependia da alma. Ela desprende o homem.
Que roda girava, girava pela alma, igual a um branco moinho?
Novalis e os outros integrantes traçaram o círculo, e foi quando a palavra ricocheteou e atingiu os gabirus, que vinham rastejando, aos magotes, alguns guinchando, outros em gritos, uivos, agachados.
Novalis então foi amoitando a palavra e alumiou. E os ratos nos homens gabirus fugiam, iam espavoridos. O humano neles já tramavam um rosto. Como se possessos fossem, ou embriagados, brutos.
– A arte de viver – falou Novalis – não substitui a fome.
E Larvo, generoso, que se alteava na estatura, entre todos, entendeu:
– Vou buscar comida.
E outros o acompanharam: Lóis e Deonísio, um curvo e amorenado e outro de barba preta, com focos grisalhos.
– É preciso algumas sacolas de pão, cereais, leite, milho, arroz. Nós buscaremos no mercado. – E foram.
Enquanto isto, Novalis falava, falava e era o sonho que tivera, dias antes. E os gabirus o cercavam como bichos, depois sussurravam: enfermos de onde, assustada, escapava a morte.
Vieram os alimentos e eles comiam a fome para dentro, a fome, a fome. Ela não era humana.
A Comissão, com o pastor de versos Novalis e eu, sabia que necessária era a arte de povoar a fome. E tínhamos que riscar fósforos na mente de cada um deles, com a palavra. Magicamente reiterada. E mostrar o amor oculto no clarão.
– O amor acende os pirilampos – ele falou. Ouvi, ouvirei sempre. Ia acender o fio da paz.
Foi ao recordar-lhes, com as mãos, figuras, símbolos, que os gabirus selaram sua confiança em nós.
Alfabetizar a fome era treinar falcões – do ombro ao cume do monte mais remoto.
Novalis via:
– A inteligência é brasa e repercute. – Seus olhos efusiavam.
– Acende o fósforo a razão, e ser humano é labareda – nos repetia.
– Nós também, ao ensinarmos, juntos aprendemos – murmurei, cioso. – Ensinar é ir entrevivendo.
E numa escola, às vezes, Orlando, o pacifista, ou Novalis, ou eu-escriba resmungávamos flores nas palavras, e eles, gabirus, iam florindo dentro. E nos deparávamos, aos poucos, com seres, como nós, em círculo, de olhos incendiados.
O Prefeito Euzébio e o Conselho Municipal deliberaram conceder aos gabirus terrenos para plantar e subsistir, situados numa das pernas da colina, longe do defunto rio Lázaro, coberto de grama e aluvião.
O povo de assombro e os membros da comissão, como Novalis, Orlando, Larvo, Deonísio, Lóis e eu, os ajudando a arar a terra, sulcando o espaço, e eles se refaziam nas sementes e cresciam com os pés de trigo e feijão. Como os marmelos, ao contacto com o sol.
– O sol é uma abelheira – disse-me, uma vez, Novalis.
E eu vi que o tempo, quando a linguagem o cerzia, deixava de trabalhar. E ia ficando frágil, disforme.
– Uma mulher – falou-me, taciturno, o suave pastor de versos.
Mas o povo tem a impensável capacidade de restaurar-se.
– E toda a vida – observei. ⎯ Civilizar a fome é civilizar a dor.
Não basta ser um homem. Há que vencer os mortos. Os vivos já estão mortos. Ou nascem do pesadelo.
“Os pesadelos não têm popularidade entre os sonhadores, mas somente entre os homens das letras, que pedem lhes sejam contados por aqueles que não sabem escrever; os pintores também amam os pesadelos” – registrou Giorgio Manganelli. Mas os pesadelos é que nos buscam, querem convulsionar os círculos de água que habitam os sonhos.
Os pesadelos não admitem contradição, porém não se vive sem ela. E se nos deixam, cabisbaixos, com a exasperação das noites, quando a linguagem os conforma, tornam-se humanos. Iguais aos gabirus. Seriam humanos os ratos, ou a deformação dos sonhos pode, bruscamente, transformar-se na deformação dos homens?
Relato as excrescências da fortuna e não reduzo nada a nada. Há os que crêem nos espelhos e sabem como os sonhos criam outros e outros. Até o desespero da luz.
“Tudo como serpentes deve no fundo penetrar” – eu citava Hölderlin, que estava sempre no futuro. Repousávamos nele, ao penetrar o sonho iguais às serpentes de outros sonhos, as peles de vocábulos mudando. E nós, vocábulos, penetrando a casca das idades. E eu era só um homem que ia relatando.
Os gabirus tomaram a cidadania da palavra, civilizando a alma. E tais eventos repercutiram, a ponto de os habitantes do povoado, epidermicamente, mudarem até a cor dos olhos.
Antes, rostos se confundiam, agora se definem sem a dobra da morte. E os olhos dúbios, por fixarem a palavra com sol e trigo, estavam claros, claros. E os sol azul olhava para eles. O tempo era um vulto que retrocedia, aos poucos. Vai enferrujar com o fervor e o sal dos vivos.
E sei que as civilizações se alegram ou se aborrecem entre o ranger das marés e as pás dos moinhos.
“Os poetas cantam coisas admiráveis, mas não para crer” – relembrava Tornes, um rábula, cuja prática de causas falenciais o levara à fama. Porém, Novalis e outros contavam o que ouviam e viam a palavra fazer. O miraculoso não é sua existência solitária. Mas a palavra junto a frutos, atos, objetos, apetências, árvores.
E o povo aprende logo as caras do poente e da colina. Ou a usar trator, agarrar o boi pelos cornos da palavra, conhecer suas forças, fôlegos, estrumar a produção, pôr focinheira em fomes. O povo aprende logo o trovão dos números, desenhos. E o coice das estações.
Sou condescendente com o futuro. E aos carentes de imaginação este relato é inútil. E quem o publicar há de perceber quanto a letra impressa alarga os símbolos. Os sonhos não pertencem as quem os suportou, no momento em que engendraram suas próprias imaginações.
E o povo puxa a água, puxa o sonho, ensina o mar.
Referência:
NEJAR, Carlos. Carta aos loucos. Rio de Janeiro: Record, 1998. p. 61-71.
Ilustração:
EDUFSCAR: Linguística, Letras e Artes – Literatura. Disponível em: <http://www.isthmus.com.br/edufscar/linguistica,-letras-e-artes/literatura/carta-aos-loucos/1-7160/centro_detalhes.aspx>
Estamos permanentemente expostos aos dentes de milhões de ratos, e até votamos em alguns.
Oi Letícia!!!
Que saudade, menina!
Quanto tempo…
Volte sempre.
Abraço,
Leila