Crônica de Viagem (IV)
De Barcelona a Paris – no avião com um surpreendente francês
LEILA BRITO
Mais que um projeto de viagem, Paris sempre foi um sonho fugidio que eu temi sonhar pela própria altitude do voo. Assim, estando a menos de duas horas de sua realização, sinto a sensação de uma entorpecida expectativa, como se a ansiedade tivesse sido expulsa da espera. Talvez um efeito emocional decorrente do tempo mínimo de três horas e meia de sono, pois meu voo decola às seis horas. A quietude da madrugada confere um tom nostálgico aos meus sentidos aguçados por confortável sensação de liberdade, enquanto trafego por vias silenciosas em direção ao desconhecido.
Não sei se a serenidade acrescenta-me magnetismo ou se o simpático e elegante cavalheiro que tenta engatar um flerte comigo viu outra coisa em mim. Atenta ao movimento no setor de embarque, finjo não perceber sua intenção nem mesmo quando, propositadamente, ele se põe ao meu lado na fila desalinhada de passageiros que caminha apressada no pátio do aeroporto El Prat até o ônibus que nos levará ao voo 5074 da Vueling, onde senta-se ao meu lado, sem dar-me chance de fuga, e inaugura a conversa com um delicado “permiso?”. Noto seu carregado sotaque, enquanto ele se apresenta como um francês que vive há mais de dez anos em Barcelona. Concluído o curso de español para extranjeros, sinto-me confiante para hablar con las personas, o que me deixa descontraída na comunicação. Porém, mal nos apresentamos pelo nome e nacionalidade, somos interrompidos pelo quase imediato desembarque e separados pelo conturbado movimento do embarque pela escada do avião.
Envolvida com a busca do assento 24A, dou o episódio por encerrado, mas assim que me acomodo na poltrona, novamente sou surpreendida por ele que, sorrindo, senta-se ao meu lado. Coincidência ou trocara de lugar com outro passageiro? Enfim posso deter-me naquele perturbador olhar camuflado por ameno tom voz, a despeito do sotaque que encrespa de erres guturais os erres linguais do idioma español. Mostrando-se íntimo, ele fala do seu trabalho empresarial e me conta que está indo para Cannes, lamentando não poder ficar em Paris para acompanhar-me em passeios noturnos pela cidade.
Inclusive, explica, nem mesmo poderá encontrar os filhos, que vivem com a mãe na cidade desde o divórcio. À menção da ex-mulher, passa a falar do demorado e conturbado processo judicial marcado por conflitos acirrados na divisão dos bens e prejuízos fatais com advogados, o que o levou a buscar outro país para reconstruir sua vida. É então que menciono uma possível namorada espanhola e ele, mostrando-se ofendido com meu espontâneo comentário, reage indignado: “No! Jamás! Jamáz una española!”. Intrigada com o tom veemente da negativa, pergunto ressabiada, encolhendo-me receosa na poltrona: “Porque no?”. E ele responde baixinho: “Porque no les gusta bañarse. Son sucias”. Ante meu constrangido silêncio, ele prossegue: “Por eso mi novia es colombiana. Me gusta las mujeres de latinoamerica”. Foi então que, galhofamente, pensei: “Ufa!… Ele me acha limpa.”, contendo um traiçoeiro riso que chegou a repuxar meus lábios.
Entregue a momentânea abstração, sou arrastada por um flashback ao modus vivendi da minha anfitroa marcado por um obsessivo controle do consumo de água, que levou-a a retirar e esconder sorrateiramente o tampão da banheira, para eu não tomar banho de imersão; e também à rigorosa limpeza que me vi forçada a fazer às escondidas na habitación, no sábado seguinte à minha chegada, depois de andar descalça por alguns minutos e sentir os pés grudando na sujeira preta acumulada no piso de cerâmica, pelo visto, em anos de descuido; e ainda, à cozinha sempre implorando uma limpeza radical, especialmente o bule inoxidado ornado por aquela crosta secular de sujeira na tampa e no bico, o que levou-me a trocar o café da manhã por suco de caixa. Impossibilitada de advogar em defesa das rés espanholas, sou forçada a avalizar a sentença do inflexível juiz francês com um cúmplice e discreto menear de cabeça.
Ele não percebe meu desconforto, e eu decido arejar a conversa falando do pouco tempo que ficarei em Paris e da consequente necessidade de restringir minha visita aos principais pontos turísticos. Ao saber que não tenho amigos na cidade, informa seu nome – Joel Murian – e o número do teléfono móvil para eu contatá-lo em caso de dificuldade, acompanhando, gentil e atencioso, o rápido registro no meu celular. Tempo exato para ouvirmos a voz do comandante anunciando a chegada ao aeroporto Charles de Gaule, e silenciarmos até o momento da afetuosa despedida traduzida num cordial abraço, tão logo somos autorizados a deixar o avião, o que ele faz rapidamente, pois tem pouco tempo para pegar o voo de Cannes.
Enquanto caminho pelo finger, tento colocar em standby as sensações deixadas pela inusitada vivência cultural, para concentrar-me no grande desafio que me espera – chegar ao setor da rassemble bagage e depois localizar a sortie e o ponto do transport en commun que me levará ao centro histórico da cidade. Apresso o passo, pois é melhor seguir os últimos passageiros do meu voo para não errar o caminho. Afinal, Paris ici je suis et je ne parle pas français, solo lengua española. Ichi!…
Referência:
BRITO, Leila. De Barcelona Paris– no avião com um surpreendente francês. Chá.com Letras, 6 fev. 2012. Disponível em: www.chacomletras.com.br . Acesso em: dia [7] mês [fev.] ano [2012].
Ilustração:
Avião da Vueling – Disponível em: <http://www.viaggi.libero-news.it/tag/vueling/>. Acesso em: 6 fev. 2012.
Leila, conte logo sobre Paris….rssss Estou curiosa!
kkkkkk Muito bom saber da sua viagem!
beijo!
Leila!
O ilustre empresário francês usou seu charme e preferências, quando diante de mais “una mujer de latinoamérica”.
Falou sutilmente mal da ex-mulher; claramente mal das espanholas; e malandramente bem de você, desconhecendo que, na escola em que se diplomou, brasileiro(a) é professor(a).
Bon voyage!
Oi Leila.
Sempre tenho um pé atrás ou vários, quando viajo pelos quatro cantos do mundo. Sei que existem ratos de hotel, de aeroportos, de avião, de táxi, de museus, sempre prontos a dar o bote, principalmente em mulheres que estão desacompanhadas.
Eles entram com papinhos descompromissados, falando de ex-mulheres, de separações judiciais, disto ou daquilo e… de repente você está sem passaporte, jóias ou dinheiro.
Nem olho para o lado e sequer abro espaço para perguntas, ou qualquer manifestação.
Posso até estar perdendo oportunidades, mas o seguro morreu de velho.
Abraços,
Vânia
Queridos amigos…
Desculpe a demora da resposta aos seus efervecentes comentários, cada um mais interessante que o outro. Vamos por ordem:
Ana Tereza, como eu não liguei para o gentil cavalheiro, Paris ficou somente em Paris… rs
Valter…
Só mesmo um homem latino-americano para sacar com a devida malícia as verdadeiras intenções do Mrs. Francês. rs
Abraço…
Querida Vânia…
Realmente, precisamos ter cuidado em viagens, e eu tive, esteja certa – sou desconfiada que só uma típica mineira. Mas nesse caso aí não vi perigo algum, pois estávamos dentro do avião, com toda segurança. Ele não me pareceu nada suspeito, apenas um paquerador experiente, como bem observou o Valter em seu comentário… rs
Só não liguei para ele, porque estava namorando um espanhol e percebi suas “secretas” intenções comigo, que não era bem me roubar grana ou jóias, e sim otras cositas más… rsrs
Abração…
Leila, só os bons escritores são capazes de fazer viajar junto, seus leitores.
Sensações, emoções, confusões, alegrias, cansaço tudo transmitido com tamanha realidade que, senti-me presente à cena.
Oi Leila!
Uma graça esse amante e guia turístico francês…
Indo para Cannes… Talvez até um humilde cineasta…
O que esses estrangeiros tem na cabeça sobre as mulheres brasileiras deve ser efeito do Carnaval e de Copacabana…
Mas não ficou claro se as espanholas não gostam mesmo de limpeza ou se são obrigadas a economizar água devido a escassez. Não deve justificar um bule sujo, mas a necessidade as vezes faz o hábito. Minha mãe era filha de pai espanhol, ela até jogava água quente em tudo que usava na cozinha… Mundos estranhos…
Leila, além de gostar de viajar, adoro crônicas de viagem, pois não só aprendemos com nossa própria experiência, como também agregamos informações de outros viajantes. Sua crônica está deliciosamente ótima! O francês já não é muito amigo da água, por isso, seria “o roto falando do esfarrapado”. Se for verdade o que ele disse sobre as espanholas, mais um conhecimento adquiri lendo sua crônica.
Estive em Paris no mês de Outubro e me decepcionei um pouco com aquela cidade que tanto admiro. Aguardo novas crônicas.
Abraços,
Marise