Crônicas de Viagem (I)
De Roma a Firenze – no trem com um alucinado
LEILA BRITO
Após desesperados momentos no Roma Termini, por ter perdido o luxuoso “Treno 9454” das vinte e trinta para Firenze, onde planejo passar apenas um dia da minha breve incursão pela Itália, uma sensação de alívio atenua meu estresse, ao adentrar, na Stazione Tiburtina, aquele precário mas miraculoso trem das vinte e três horas.
A privacidade das cabines de seis desconfortáveis assentos dispostos em dois bancos frontais, garantida por vulnerável cortina de espesso tecido azul-pavão, agrava o prejuízo desse verdadeiro desastre turístico, penso, enquanto caminho pelo estreito corredor lateral arrastando minha mala e abrindo cortinas à procura de um lugar para sentar-me. Enfim, uma cabine com apenas três pessoas, que se identificam como um napolitano e um casal de nigerianos após meu simpático buenas noches. Apesar de estressada e sonolenta, em poucos segundos, o desejo de dormir é substituído pela preocupação com a falta de segurança no reduzido espaço divido com três estranhos.
Três? Percebo meu engano, quando a cabine é inesperadamente invadida por um quarto falante passageiro, cuja voz eu ouvira no trajeto pelo corredor. Jamais o imaginaria colega de cabine, no curto tempo da minha rápida acomodação do lado da cortina, no banco onde o napolitano está sentado rente à janela. Ponho-me, assim, de frente para a nigeriana de formas avantajadas que, deitada ao lado do elegante patrício vestido de terno e gravata, dialoga com ele em incompreensível dialeto africano antes de voltar aos braços de Morfeu.
Em poucos segundos, asseguro-me da total impossibilidade de dormir, tão logo o falante colega de cabine senta-se ao meu lado e passa a provocar a senhora nigeriana, apoiando um de seus pés na beirada do banco frontal, tocando propositadamente o seu corpo. Constato, assustada, que aquele alto, magro, belo, mas perturbado jovem, também napolitano e aparentando em torno de vinte e dois anos, está drogado. Observo suas pupilas dilatadas e pálpebras inchadas, quando ele se dirige a mim em fluente italiano. Sem entender o que diz, respondo prontamente: “Non parlo italiano. Solo spagnolo e portoghese”, calando-me de imediato, na tentativa de desanimar o interlocutor, que me surpreende ao responder docemente, com um olhar afetuoso: “Me gusta mucho hablar español. Cómo estás? Española o portuguesa?”.
Desarmada por inexplicável arroubo maternal, respondo acolhedora: “brasileña”. Imaginando-o um filho em situação de penúria existencial clamando por uma mãe amorosa, carinhosamente sugiro: “Qué tal dormir un poquito?”. E apontando para o seu pé apoiado no banco da nigeriana, dou um tom repreensivo ao meu olhar e faço um sinal negativo com a cabeça. Obediente, ele retira o pé e o coloca no chão, dizendo: “Si! Ya dormindo!”. Em seguida, recostando a cabeça no banco, finge dormir breves segundos para, repentina e afoitamente, erguer o corpo para frente e falar ao nigeriano, mas desta vez num inglês perfeito, algo parecido com: “Are you in Italy for business?” Percebo que o nigeriano também se deixa levar por sua tocante simpatia, pois responde com um sorriso afetuoso: “Yes. I am lawyer”. E a partir daí vê-se envolvido pelo desatinado passageiro em caloroso mas curtíssimo diálogo, pois, de forma igualmente imprevisível, ele sai da cabine e volta a transitar pelo corredor, pois passo a ouvir sua voz soando cada vez mais distante, até fazer-me imaginá-lo num dos extremos do vagão.
Passado um tempo razoável, presumindo que ele se ajeitou de vez em outra cabine, apesar do nigeriano manter-se desperto após conversar em tropeçado italiano com o napolitano ajuizado ora entregue a sono profundo, decido cochilar, quando, novamente, o desnorteado passageiro adentra afoito a cabine. Mantendo os olhos cerrados, finjo dormir, enquanto o vejo retirar do bagageiro um saco de lixo azul claro cheio de roupas, sentar-se colocando-o no colo, abri-lo com cuidado e enfiar a cabeça dentro dele, mantendo-a lá por algum segundos. Imagino-o aspirando alguma droga e me encho de temor. Depois de devolver o saco ao bagageiro, ele me cutuca de tal forma atrevida, que “acordo” flechando-o com um olhar inquiridor, que ele retribui com um estratégico sorriso inocente, pois imediatamente seguido de uma forte cutucada com o pé na coxa da dorminhoca nigeriana, que desperta nervosa, e põe-se a falar impropérios, imagino, em seu incompreensível dialeto, enquanto seu companheiro desiste de segurar o riso.
Esforço-me para engolir uma gargalhada, pois o tom hilário da cena é fortemente acentuado pela sonoridade raivosa que a mulher imprime ao estranho idioma. Mas certa de ser a pessoa indicada para conter o destrambelhado jovem, dada a misteriosa empatia que nos une, contenho-me e, novamente, represento o papel de mãe vigilante, lançando-lhe aquele olhar reprovador e ordenando em tom de voz incisivo: “Qué tal dormir um poquito?”. Assumindo o papel de menino obediente, ele se recosta na poltrona, e puxando o boné invertido até altura do nariz, deixa os olhos semicerrados à mostra naquela abertura traseira em forma de arco. No estado alucinógeno em que se encontra, é impossível adormecer, penso, mal segurando a tal contida gargalhada, quando ele abre um dos olhos e o pisca para mim pelo buraco do boné. O jeito é virar-me de costas e ignorá-lo, pois percebo que sua intenção é improvisar uma comédia.
A viagem segue tumultuada, especialmente nas paradas do trem, quando ele sai desnorteado vagão afora, perturbando os passageiros de cabine em cabine, para dali a pouco voltar e sentar-se cuidadosamente ao meu lado, evitando acordar-me do fingido sono. Como dormir com aquela sutil ameaça no ar? E é numa das paradas que, depois de regressar à cabine, ele deixa a cortina aberta, e eu vejo um rapaz moreno parar no corredor, puxar um assento engenhosamente instalado na parede lateral do vagão, e sentar-se de frente para nós em respeitoso silêncio. E curtíssimo, pois imediatamente quebrado por uma afoita pergunta em italiano, calmamente respondida em exótico idioma que não consigo identificar de imediato. E que surpresa, quando descubro que o nosso alucinado amigo passa a conversar em árabe com o recém chegado. “É um poliglota!” Penso, enquanto minha piedade é substituída por sincera admiração.
Volto ao meu sono simulado, quando depois de nova incursão pelo vagão, silencioso, ele se acomoda ao meu lado. Noto o cuidado e me comovo com sua deplorável situação, perguntando-me como teria sido, se ao invés de uma mulher percebida como mãe protetora e um homem percebido como pai amigo, ele tivesse dividido a cabine com pessoas insensíveis. Mais comovida fico, quando, às duas da madrugada, ao chegarmos na Stazione Campo di Marte em Firenze, atencioso e protetor, ele leva a minha mala e desce com ela na estação, estende suas mãos para ajudar-me a sair do trem, e se despede de mim com seu doce sorriso e afetuoso olhar. Um filho do acaso?
Referência:
BRITO, Leila. De Roma a Firenze – no trem com um alucinado. Chá.com Letras, 25 jun. 2011. Disponível em: www.chacomletras.com.br . Acesso em: dia (27) mês (jun.) ano (2011).
Ilustração:
Foto do Google Earth. Disponível em: <http://www.panoramio.com/photo/5996022>. Acesso em: 27 jun. 2011.
Tia, adorei! Me senti no trem, enquanto lia.
Que bom Larissa! Depois da tempestade, vem a bonança… rs
É isso aí… Ainda virão outras aventuras vividas nesta minha maravilhosa viagem à Europa.
beijo…
Tia Leila
Ahhhhhhhhhh, que delícia!
Não me pergunte como, mas a crônica me lembrou de um filme super querido da infância: Os Deuses devem estar loucos – http://www.youtube.com/watch?v=XMlTZHg9Z6o
Os diálogos e o choque cultural.
Mas, cá pra nós, o que fica mesmo é que a linguagem maternal é universal.
Quero mais histórias!
Cadê?
Beijo grande,
Luana
Querida Luana…
É bater o olho em tudo que você escreve (pelo menos o que já li), e o que se vê (na minha visão apurada de professora de Técnica de Literatura) é um manancial de talento suplicando para ser explorado.
Quem está esperando mais histórias soy Yo! rs
besito…
Leila
Luana…
“Os deuses devem estar loucos” é um filme simplesmente MA-RA-VI-LHO-SO!…
Penso que essa sua relação analógica com a minha crônica tem a ver com o casal de nigerianos numa vivência desafiadora com a cultura ocidental. Realmente, é um choque cultural impactante.
Diante de sua lembrança, sinto uma vontade urgente de revê-lo.
Grata pela contribuição cultural. Fica a indicação para quem ainda não conhece essa Obra de Arte cinematográfica.
beijo…
Leila
Puxa, eu já tenho um certo trauma de infância com
viagem de trem por causa dos lugares chatos que
passei e do longo percurso.
Acho que isso aumentou o suspense…
Boa crônica!
Apalermado, é meu estado.
Minha vontade é de seguir no trem!
Vôlnei…
Que bom reencontrá-lo aqui!
Estava saudosa desse meu querido leitor.
Volta sempre.
Abraço…
Que interessante. Talvez não se lembre de mim, mas te liguei hoje cedo para saber sobre a revisão da minha dissertação. Muito legal sua forma de escrever, pois prende a atenção das pessoas até o final. Abraços.
João Couto
Caro João…
Interessante, digo eu, é o seu gesto de aceitar meu convite e tomar esse chá comigo, e ainda, deixar-me esse comentário de presente.
Mais que interessante, é surpreendente!
Obrigada pelo carinho.
Leila