A Marginalização da Mulher pela Sexualidade
EUNUCOS PELO REINO DE DEUS
Capítulo VIII
O Medo das Mulheres entre os Celibatários
UTA RANKE-HEINEMANN
Jesus foi um amigo das mulheres, o primeiro e praticamente o último amigo que as mulheres tiveram na Igreja. Causava sensação porque ele se relacionava com mulheres, porque era rodeado por “muitas mulheres” (Lc 8,3), o que para um rabino e professor de leis judaicas era absolutamente inaceitável e sem precedentes para seu tempo. Sabemos que ele teve 12 discípulos homens, embora também muitas discípulas, inclusive senhoras de sociedade como Joana, mulher de um procurador de Herodes Antipas. Hoje essas mulheres seriam consideradas “liberadas”, por não aceitarem os papéis femininos tradicionais e, pelo contrário, financiarem Jesus e seu grupo “com suas posses” (Lc 8,3).
No tempo de Jesus, era costume geral que, se uma mulher chegasse a falar com um homem na rua, poderia ser repudiada pelo marido sem restituição de sua parte no casamento – sem pensão alimentícia, diríamos hoje. E, por outro lado, era considerado ultrajante que o discípulo de um rabino, para não mencionar o próprio rabino, falasse com uma mulher na rua. Essas mulheres que se reuniam em torno de Jesus, suas discípulas, não compunham uma audiência passiva. As mulheres foram as primeiras a anunciarem a ressurreição de Jesus. Lucas (24,10) diz: ‘Eram elas Maria Madalena, Joana, Maria – mãe de Tiago; e as outras suas amigas relataram aos apóstolos a mesma coisa.” Não se tratava apenas de informação particular, e sim de um anúncio público, já que a palavra grega para “relataram” (apaggellein) tem caráter oficial.
Os seguidores de Jesus, entretanto, não o seguiram nesse ponto. Sua abertura às mulheres, o respeito que demonstrava por elas foram substituídos depois de sua morte, por parte dos oficiais masculinos da Igreja, por uma mistura particular de medo reprimido, desconfiança e arrogância. Um testemunho poético da pia distância a se manter das mulheres encontramos na segunda epístola pseudoclementina, “Às Virgens”, presumivelmente composta no terceiro século. Mas até muito depois, já no período moderno, era atribuída ao Papa Clemente I (m. 97), e portanto foi de extrema importância na educação do clero. “Com a ajuda de Deus eis o que fazemos: não vivemos com virgens e nada temos a ver com elas. Não comemos e não bebemos com virgens, e onde dormem lá não dormimos. As mulheres não nos lavam os pés, nem nos ungem. E positivamente não dormimos onde esteja uma virgem consagrada, na realidade nem sequer passamos uma noite lá” (cap. I). Onde o Pseudo-Clemente passa uma noite, “não pode haver qualquer mulher, nem moça solteira, tampouco mulher casada, nem mulher idosa, nem consagrada a Deus, nem criada cristã, nem pagã, porque só homens podem estar com homens (cap. 2). Esse trecho pseudopapal é particularmente curioso porque seu autor evidentemente queria superar Jesus na castidade. Faz uma alusão por demais clara à cena com uma mulher pecadora que lavou-lhe os pés com as lágrimas, e então beijou-os e ungiu-os. Em sua pureza celibatária, o escritor nunca teria permitido qualquer coisa semelhante consigo próprio. Com esse modelo peculiar de castidade, o escritor afronta Jesus, que comia e bebia com mulheres e não se ofendia em dormir numa casa onde também elas dormissem.
Os celibatários da Igreja nunca conseguiram lidar livre e abertamente com as mulheres. Seus status e estilo de vida foram por demais baseados na diferenciação e oposição ao casamento e à feminilidade para que não vissem as mulheres como a negação de sua existência celibatária e uma ameaça a eles. As mulheres muitas vezes os atingiram com a personificação das armadilhas do demônio. O maior perigo do mundo, conforme o vêem, move-se furtivamente nesse sentido. Crisóstomo deixa isso claro em seu escrito Sobre o Sacerdócio: “Há no mundo um grande número de situações que debilitam a consciência da alma. A primeira e mais importante destas é o trato com as mulheres. Em sua preocupação com o sexo masculino, o superior não pode se esquecer das mulheres, que precisam de maiores cuidados, exatamente por causa de sua pronta inclinação para o pecado. Nessa situação o inimigo maligno pode encontrar muitas maneiras de entrar sorrateiramente, em sigilo. Pois o olhar das mulheres toca e perturba nossa alma, e não só o olhar da mulher desenfreada mas também o olhar da mulher decente” (VI, cap. 8). Obviamente, o celibato não consegue mudar homens em seres assexuados, e por isso “o olhar da mulher” era um perigo constante.
Agostinho desempenhou um papel decisivo nas relações dos celibatários com as mulheres. Esse ilustre santo moldou o ideal da piedade cristã mais do qualquer um ou após ele, e sua atitude negativa perante as mulheres revelou-se particularmente fatal. Dificilmente imaginaríamos maior contraste do que o encontrado entre a conduta de Jesus e a de Agostinho. Possídio, durante muitos anos seu amigo e colega de alojamento, conta que: “Nenhuma mulher jamais botou o pé em sua casa, nunca falou com uma mulher exceto na presença de uma terceira pessoa ou fora da sala de visitas. Não fez exceções, nem mesmo para sua irmã mais velha e suas sobrinhas, as três freiras” (Vita 26). Esse comportamento sugere que o homem era psiquicamente perturbado.
As mulheres eram um perigo moral tanto maior, quanto mais a liderança da Igreja insistia em compelir os padres ao celibato. A fobia da mulher, conforme encontramos, digamos, em Agostinho, poderia se vista só como uma aberração particular grotesca, enquanto esse modo patológico de comportamento não tivesse conseqüências legais na Igreja. Mas teve consequências, que significaram um trauma imenso para as mulheres. O Sínodo de Elvira proibia aos padres que permitissem a presença das filhas em casa, a menos que fossem virgens e tivessem feito os votos de castidade. Sínodos incontáveis proibiram as mulheres que não eram parentes de permanecer na casa dos clérigos. Por exemplo, o quinto Sínodo de Orléans, em 549, declarava que não deveria haver mulher estranha em casa, “e mesmo as parentas não devem ficar ali em horas inconvenientes” (Carl Joseph Hefele, Konziliengeschichte, III, 3). O Sínodo de Tours, em 567, decretou que o clérigo poderia ter em casa “apenas a mãe, irmã, filha… nenhuma freira, nenhuma viúva, nenhuma criada”. Mâcon, em 851, determinou que “só uma avó, mãe, irmã, ou sobrinha poderiam, se necessário, viver na casa”. Toledo, em 633, ordenou que: Nenhuma mulher pode viver na casa dos sacerdotes, exceto as mães, as irmãs, as filhas e as tias.” Roma, em 743, não permitia mulheres, “exceto a própria mãe ou parentas mais próximas”. O terceiro Sínodo de Toleto, em 589, estabeleceu que todos os padres que tivessem mulheres estranhas em casa que despertassem suspeita deveriam ser punidos, enquanto as mulheres seriam vendidas como escravas pelo bispo. De modo semelhante, um Sínodo Provincial de Sevilla (ca. 590) ordenava que os juízes seculares vendessem as mulheres encontradas nas casas dos padres. O quarto Sínodo de Toledo (633) repetiu a ordem emitida no terceiro: se os padres tiverem contato com mulheres estranhas, essas serão vendidas, e os padres castigados. O Sínodo de Augsburgo de 952 determinava que as mulheres “suspeitas”, nas casas de membros do clero, tinham de ser expulsas com açoite. Os Sínodos de Sens (1269), de Bourges (1286) e o Concilio Nacional Alemão em Würzburg (1287) proibiram ao clero de ter cozinheiras.
Mas as mulheres estranhas (ou seja, que não eram parentes), na casa de membros do clero, não eram as únicas sob suspeitas. A desconfiança recaía inclusive sobre os membros mais íntimos da família. O Papa Gregório I, o Magno, escreveu aos bispos (Epístola 60) advertindo-os para não conviverem mesmo com as mães ou as irmãs. O Sínodo de Nantes (658) fala das relações perversas entre padres e as respectivas mães e outros parentes, declarando: “os membros do clero não devem permitir que nem mesmo a mãe, a irmã, ou a tia viva em casa com ele, porque atos horríveis de incesto já ocorreram.” O Sínodo reformista de Metz, em 888, não admitiria na casa de um clérigo nem a mãe, nem a irmã; e o Sínodo de Mogúncia, no mesmo ano, diz no artigo 10: “Os clérigos não podem ter em casa mulheres de qualquer grau de parentesco, porque alguns inclusive se desencaminharam com as próprias irmãs.” Esses pronunciamentos sugerem a grande miséria que muitas pessoas sofreram em decorrência da prática infeliz da coerção de padres ao celibato.
Os seguintes regulamentos ilustram como a Igreja definia o papel da mulher como sedutora: o Sínodo de Paris, em 846, proibia a qualquer mulher entrar no lugar onde estivesse um padre. Em 906, o abade Reginon de Prünn, em Eifel, instado pelo arcebispo de Trier, Ratbod, emitiu uma ordem para que se vigiassem os padres: verificar e ver se “o padre (possui) algum cubículo junto à igreja ou se há portinhas suspeitas nas proximidades” (cf. Karlheinz Deschner, Das Kreuz mit der Kirche: Eine Sexualgeschichte des Christentums, p. 160). O Sínodo de Coyaca em 1050, organizado pelo Rei Fernando I, não permitia que mulheres vivessem nas vizinhanças da igreja. O mesmo sínodo exigia que as mulheres das casas dos clérigos se vestissem de preto.
O exemplo salutar de Agostinho encontrou imitadores nos tempos modernos. La Varende, biógrafo de Dom Bosco, que morreu em 1888 e foi canonizado em 1934, escreveu em 1951 que este padre famoso “era tão casto, que só permitia ser auxiliado pela mãe”. (Se este tipo de auxilio é critério de santidade, muitos filhos têm as qualidades essenciais de um santo). E em 1895, o Papa João XXIII, então menino de 14 anos, captou o espírito de Agostinho, quando escreveu seu diário espiritual: “Todo o tempo (…) devo evitar o trato, devo evitar jogar ou brincar com mulheres a despeito de sua condição, idade ou grau de parentesco.” Em 1897 escreveu: “As mulheres de qualquer condição, mesmo parentas e santas, hei de tratar com respeitosa reserva e evitar toda a familiaridade, todas as reuniões e conversas com elas, especialmente se forem jovens. Não levantarei meu olhar para seu rosto, lembrando o que ensina o espirito santo: “Não detenhas o olhar sobre uma virgem, para que a sua beleza não venha a causar tua ruína” (tradução em Geistliches Tagebuch, Herder, 1969, pp. 26, 36. Essa tradução é tendenciosa. Em vez de “evitar”, o italiano original diz “fugir, como do demônio”. Uma nota misógina semelhante cinquenta anos depois, escrita em 1947 pelo homem que era então núncio em Paris, o Cardeal Roncalli, foi simplesmente omitida da tradução alemã). O papa, naturalmente, interpretou de modo completamente errado a passagem do Eclisiástico 9,5 que menciona. O texto diz que não se deve seduzir qualquer menina, para que não se seja obrigado a pagar ao pai uma multa e casar com ela.
Até hoje os celibatários da Igreja acreditam que o perigo tem feições femininas, e essa crença foi levada em consideração na formação dos padres. Isto é atestado por muitos padres e estudantes de teologia citados em Klerus zwischen Wissenschaft und Seelsorge, editado por Leo Waltermann (1966). Os depoimentos aí infelizmente são anônimos; mas a Igreja Católica não apóia a liberdade de expressão. O modo como os clérigos são treinados para demonstrar uma obediência ansiosa e sem aprumo a seus senhores constituiria um outro capítulo na história da educação sacerdotal. Alguns dos informantes de Waltermann foram no entanto suficientemente corajosos para dizer que os seminaristas eram advertidos para “não falar com as freiras e as noviças em casa” (p. 83). Um capelão informa sobre a “proibição de dizer alô para as meninas que varrem os corredores” (p. 146). Um pastor escreve: “Na realidade somos deixados quase que inteiramente sem orientação sobre o celibato; pois somos aconselhados continuamente a fugir das mulheres como sendo essa a melhor conduta” (p. 158). Outro capelão nos conta: “Vida sacerdotal: o assunto do celibato era tabu. Ao perguntarmos ao diretor se ele não queria usar do horário regular de instrução para nos dizer alguma coisa sobre o celibato, em vez de tratar dos assuntos usuais (rubricas, ordem-do-dia, comportamento, a tradução dos hinos latinos do breviário), obtivemos a resposta: ‘O que dizer a respeito? Vocês não têm permissão para casar, e é só isso.’ Depois acabou de fato dizendo alguma coisa: devemos ter cuidado com as mulheres e (…) mesmo com velas bentas vocês podem queimar os dedos” (167).
Ao manterem a devida distância das mulheres, os celibatários da Igreja são auxiliados pela consciência de sua própria superioridade espiritual. Quando inesperadamente se mostram condescendentes e cumprimentam as mulheres, suas palavras revelam um sabor cômico que pode ser inclusive mais desalentador do que o desprezo usual diário. Conforme certa vez me escreveu um bispo de Essen (em 1964): “Fico contente que você, esposa e mãe, consiga ser tão ativa espiritualmente.”
LEILA BRITO
Belo Horizonte, 7 MAR 2015.
Nota – Uta Ranke-Heinemann, considerada a maior teóloga do mundo, perdeu sua cátedra na Universidade de Heidelberg, quando publicou este livro. Pela primeira vez em dois mil anos de Igreja Católica, uma mulher ousa dar nome ao “problema que não tem nome”: a sexualidade. Este livro é uma contribuição à história da sexualidade humana. Em suas quase quatrocentas páginas, a autora faz uma pesquisa monumental sobre as regras e virtudes da Igreja sobre a sexualidade feminina, que vai das suas raizes pré-cristãs até os dias de hoje. Este livro abalou a Igreja e, pela grande originalidade e erudição da autora, tornou-se um dos mais importantes do nosso tempo em sua área.
Referência: HANKE-HEINEMANN, Uta. Eunucos pelo Reino de Deus –Mulheres, Sexualidade e a Igreja Católica. 2. ed. Rio de Janeiro : Record : Rosa dos Tempo, 1996. p. 132-138.
Ilustração – Michelangelo Buonarroti (37) – “O Pecado Original e a Expulsão do Paraíso Terrestre”, ca. 1510, Capela Sistina. Disponível em: http://deedellaterra.blogspot.com.br/2011/04/historia-da-arte-michelangelo_21.html
Sedutora, diabólica, culpada. Entre tantos adjetivos dedicado às mulheres, a Igreja nos define como inferiores. Amargamos esse atraso histórico e preconceituoso nas entrelinhas do nosso dia a dia. Ainda bem que o despertar da consciência nos dá força para batalharmos, juntas, por dias de Eva
Cara Luana…
Que o diga a Eva de “Bendita Mulher Maldita”.
Hora de impormos uma libertação definitiva.
beijo,
Leila