Crônica de Viagem (III)
De Lisboa a Barcelona – “no meio do caminho tinhauma pedra”
LEILA BRITO
Após o vexame da esdrúxula escolta, o tempo de quase duas horas de espera pelo voo das 9h45 para Barcelona e a animadora expectativa de chegar ao ansiado destino, onde sei que me esperam pessoas acolhedoras e uma inédita e valiosa vivência pessoal, recolocam minha autoestima no eixo de um salutar controle emocional.
No ar, o espaço se apresenta azuladamente limpo e eu posso vislumbrar sua vastidão se sobrepondo à própria infinitude cortada pela asa do avião, que limitando meu foco de visão o converge para baixo, onde uma espécie de quebra cabeças se forma a cada sobrevoo de um povoado ou cidade. Tento decifrá-los envolvida por repousante sensação de leveza quando, repentinamente, a águia de aço parece se agitar no espaço, batendo fortemente suas asas, de forma tal que faz voar pelos ares as peças de um povoado com extensas e simétricas plantações, que eu tentava montar.
O incidente é o bastante para revolver a emoção e substituir a confiança pelo medo que, ora corajoso, se esconde sob a grandiosa cidade que, finalmente, se revela ao meu olhar atônito, desenhando-se interminavelmente sobre o solo em vertiginoso mapa; e ora traiçoeiro, impede que eu me delicie com o estupendo azul marinho do Mar Mediterrâneo se avolumando afoito sob meus pés, quando o avião se inclina vertiginosamente numa ousada curva, quase tocando as águas com a ponta de sua asa direita, onde um alvo barco deixa um sinuoso rastro de espuma branca. Sinto um calafrio escorrendo pela coluna até o coccis, e prendo a respiração em paralizante pânico, até ser arrebatada pela beleza magnífica da paisagem e momento únicos. Mais uns poucos minutos de tensionado encantamento e eu deslizo convulsa sobre a pista do aeroporto El Prat.
Se bem que as referências sobre o modus recēptō dos espanhóis não sejam nada promissoras, depois desembarcar, por volta das 11h40, sinto a sensação de tocar o chão de um porto seguro, quando um passageiro do meu voo, cuja nacionalidade não consigo identificar pelo sorriso, auxilia-me, gentilmente, pegando minha bagagem mais pesada na esteira e colocando-a no carrinho.
O calor de 38º que o ar condicionado não consegue derreter obriga-me a tirar o casaco de meia estação que usara na viagem. Com as pernas ainda sob o efeito da maratona inglória no aeroporto de Lisboa e sentindo um cansaço mental incomum, sigo em direção à saída e ao ponto de taxi sem direito à escolha, pois o primeiro da fila é quem se apresenta para levar-me ao número 671 da famosa Gran Via de les Cort’s Catalanes, onde me aguarda uma gentil anfitroa.
Monumento da Plaça d’Espanya
Ao informar la dirección no meu inseguro español, o taxista deduz que sou brasileira e, com um tom rude na voz, faz um breve e vazio comentário sobre o Brasil, perguntando-me o porquê da minha viagem. Sucinta e objetiva, falo do curso “Español para Extranjeros” na Universitat de Barcelona e da minha intenção de conhecer algumas cidades da Espanha e esticar viagem até a França e Itália. Dito isto, um profundo silêncio é imposto por mim, enquanto meu curioso olhar adentra uma paisagem urbana cada vez mais rica em obras de arte espalhadas pelas praças e avenidas, incapaz de conseguir inserir todas elas no mosaico veloz que vai construindo ao longo do caminho que nos leva ao meu destino. O trânsito se torna lento ao cruzarmos a Plaça d’Espanya, ornada por seu belíssimo monumento central, e de onde avisto ao longe o suntuoso Palau Nacional de Montjuïc, e só então me dou conta que passa do meio dia e meia, muito embora o meu relógio, acertado no aeroporto de Lisboa, marque uma hora a menos.
Monumento da Plaça Tetuan
Percebo o trânsito complicar-se, quando o motorista informa que já estamos na Gran Via, e então, após passar pela Plaça d’Universitat, colocando os óculos de grau, ansiosa, passo a checar a numeração dos prédios. Mais adiante, já avistando ao longe o monumento da Plaça Tetuan com seus Jardins del Doctor Robert, informo ao motorista que estamos próximos do meu destino, mas que o número 671 fica na pista oposta da avenida. Segundos depois, após fazer uma brusca conversão na esquina com a Carrer de Girona, aproveitando-se do sinal fechado, o taxista para o carro assim que entra no quarteirão, e fazendo ouvidos moucos ao meu aflito alerta de ainda não termos chegado ao prédio, ele salta para a rua, e abrindo o porta malas, retira rapidamente a minha pesada bagagem e a coloca no passeio público, para em seguida voltar ao carro e, de forma rude, cobrar-me a corrida, mostrando-se impaciente ante meu justificado protesto e pedido para que me deixe no lugar certo. Percebendo a inutilidade da ação, e preocupada com meus pertences largados no chão, pago logo os trinta euros, desço do carro, e só então constato, indignada, que ele me deixara a uns vinte metros da portaria do prédio.
Gran Via de les Cort’s Catalanes, 671
Impossibilitada de levar a bagagem até lá, peço ajuda a um rapaz que se aproxima de mim caminhando em sentido oposto. Fazendo um muxoxo, mas sensível à situação em que me encontro, ele resolve ajudar-me e, dando meia-volta, puxa as duas malas pelas alças enquanto eu transporto bolsa, frasqueira, computador e travesseiro. Apressado, mal ouve meu sincero e sofrido muchas gracias ao retomar seu caminho. Recompondo-me emocionalmente, respiro fundo e pressiono o botão do interfone. Enfim, a salvo.
Referência:
BRITO, Leila. De Lisboa a Barcelona – “no meio do caminho tinha uma pedra”. Chá.com Letras, 31 jan. 2012. Disponível em: www.chacomletras.com.br . Acesso em: dia [1] mês [fev.] ano [2012].
Ilustração:
Fotos de Leila Brito – arquivo pessoal – jul. 2008.
Foto 1 – Vista de Barcelona do alto do Montjuïc.
Foto 2 – Monumento da Plaça d’Espanya tendo ao fundo o Palau Montjuïc.
Foto 3 – Monumento da Plaça Tetuan.
Foto 4 – Gran Via de les Cort’s Catalanes, 671.
Leila, que expêriencia interessante!
Obrigada por compartilhar.
Cada detalhe de sua viagem me faz imaginar esses lugares através de seu olhar.