“Higesipo Brito” por Higesipo Brito (Cap. V)
Estação de Rio Acima – Década de 1920
A HISTÓRIA DE UM MENINO, DE UM RAPAZ, DE UM HOMEM
HIGESIPO BRITO
Em Rio Acima, logo que chegou à S/A Melúrgica Santo Antônio, Higesipo foi levado pelo gerente à seção de esmaltação, onde passaria a trabalhar sob as ordens do encarregado Senhor Manoel. Contrárias que foram as promessas de que os serviços a serem executados seriam serviços próprios para moças, a função a ele designada foi a de enfornar e desenfornar os objetados a serem esmaltados a uma temperatura de 1.200°. Considerando a elevada altura do cabo de abertura da pesada porta do forno face à sua altura, o jovem tinha que, todas as vezes que abria a porta, dar um salto, pois somente assim conseguia a exigida pressão da mão com a ajuda do peso do próprio corpo. Passados alguns dias de trabalho, surge, na referida seção, um diretor da empresa que, ao ver a maneira como era aberta a porta do formo, gritou com o encarregado: “Por que deixa abrir deste jeito a porta do forno?”.
Instalações da S/A Metalúrgica Santo Antônio – SAMSA
Ao fundo, à direita se vê o prédio do Cinema
e do Clube Samsa – Final dos Anos 1930.
Sentindo-se culpado pela repreensão sofrida pelo encarregado, e moralmente abatido, tão logo saiu da seção o tal diretor, Higesipo pediu licença ao encarregado, e saiu à procura do gerente da empresa, para dizer-lhe que não queria mais trabalhar naquela seção, tendo sido transferido, de imediato, para a seção de mecânica, onde passou a trabalhar na máquina de fazer parafuso. Decorridos alguns dias nesse novo trabalho, foi-lhe entregue para limpeza e lubrificação de duas braçadeiras de tubulação da Usina Hidrelétrica do Mingú. O material, muito enferrujado, exigia antes de qualquer movimento com as polcas, um banho de querosene. Mas, sem instruções nesse sentido, Higesipo passou a soltar as polcas na base da força, momento em que chega o diretor e grita: “Ô porco! Onde já se viu tirar polca enferrujada sem usar querosene?” Fora de casa, necessitando trabalhar, abaixei a cabeça, aguentei o insulto desabonador, e fui procurar o querosene.
Vista da cidade, galpões da SAMSA ao fundo à esquerda.
Final dos Anos 1930.
Passados alguns dias, a graxeira da rosqueadeira faltou graxa, fundiu e quebrou. Antes, porém, em conversa com Amantino, ele me orientou para que atuasse no sentido de ser transferido para o setor de fundição. Assim, ante o fato da caixa de lubrificação dos rolamentos da barra de transmissão da rosqueadeira ter fundido e quebrado, e o Italiano encarregado da seção não ter tomado a necessária providência de reparar os danos da transmissão nem ter arrumado um outro trabalho para o operador da máquina danificada, negando-se a ficar inoperante na seção, Higesipo procurou o gerente, solicitando sua colaboração no sentido de transferi-lo para o setor de fundição. Antes, porém, por não aceitar o tratamento que o Italiano encarregado da seção de mecânica vinha lhe dispensando, manteve com o gerente um desabafo à altura de sua insatisfação. Motivo pelo qual, embora tenha sido informado sobre a falha do Italiano de não passar instruções ao seu auxiliar sobre a manutenção das graxadeiras da máquina, chamando duramente a atenção do encarregado, assegurou-lhe que Higesipo continuaria na seção. Somente ante a insistência deste, o gerente atendeu seu pedido e o transferiu para a seção de fundição. Atendido, mais uma vez, iniciou em sua nova atividade de ajudante dos dois fundidores de peças especiais.
Ainda no calor da mudança de seção, um dos fundidores solicitou ajuda a Higesipo para fechar uma caixa. Só que ele o chamou com um pouco de antecedência, pedindo-lhe, ou melhor, determinando que ele esperasse um pouco. Momento em que o mesmo diretor chega e grita: “Se mais uma vez, eu te apanhar fora do teu lugar, eu te mando embora!”. Considerando, mais uma vez, a necessidade de sobreviver, este relator abaixou a cabeça, tendo antes, porém, procurado justificar a situação em que se encontrava, informando-lhe que ali estava, porque havia sido chamado para ajudar no fechamento da caixa.
Amantino Arcanjo de Brito é o trombonista da
Banda de Jazz – Final dos Anos 1930.
Informando ao irmão sobre mais este terrível encontro com o diretor, Amantino o orientou a procurar meios de ser transferido para o setor de empreiteiros – fundição de vasilhames de cozinha, pias, lavatórios etc. – com a informação de que o dito diretor não se envolvia com aquela classe de operários, por se tratar de empreiteiros. Feliz com esta informação, logo que chegou à empresa, no dia seguinte, procurou o encarregado da fundição que, ao saber situação em que se encontrava, arranjou-lhe, imediatamente, uma placa. Era uma espécie de molde de chapa de fogão de duas trempes. Portanto, de baixo valor operacional. Higesipo abraçou o molde, sentindo-se imensamente feliz. Foi a gota d’água! Como a área destinada à fundição da peça encontrava-se abandonada, cheia de areia e detritos – sucatas oriundas da última fundição – tratou de fazer, de imediato, a limpeza do local. Peneirou a areia, separando a sucata existente, pegou o carrinho de mão e foi até um monte de peças rejeitadas que, no caso, seriam utilizadas como vasilhame de coleta da sucata apurada na referida limpeza. Mas ao iniciar a dita operação, foi abordado pelo citado diretor, que, aos gritos, perguntou-lhe o que estava fazendo ali. A tentar explicar foi, aos gritos, mandado para o acerto de contas no escritório, momento em que, num gesto de desabafo, jogou violentamente o carro com as peças no chão e, da mesma forma como o diretor gritou, também gritou: “É uma alma que o senhor tira do purgatório.” Desprovido, portanto, de qualquer alternativa, seguia para o escritório, momento em que o diretor voltou a abordar-lhe, perguntando indiscretamente: “Então, você quer viver só de flauta, não é?” E no mesmo tom em que lhe foi feita a pergunta, Higesipo respondeu: “Ninguém, nem o senhor, prova isto. Mas, fique sabendo: não bati nas portas de sua empresa para pedir serviço. Se aqui trabalhei foi em atenção aos insistentes chamados do gerente”. “E então?”, perguntou-lhe o diretor. Respondendo no mesmo tom de voz, Higesipo lhe disse: “Então, estou aqui para receber o que de direito”. E ele, com o dedo em riste, disse: “Não quero ouvir nem mais uma palavra de sua boca!!!”. Em seguida, entrou para a sala, batendo fortemente a porta. Minutos depois, chegou o chefe do escritório, pedindo-lhe que voltasse no dia seguinte.
À noite, porém, o gerente procurou Higesipo, propondo-lhe que não levasse a sério os tratamentos humilhantes dirigidos à sua pessoa pelo diretor, dizendo que ele tratava assim os diaristas, e solicitando-lhe que pensasse por alguns dias. Ante a sua resposta negativa, propôs que ele trabalhasse em outro setor da empresa. Como não podia ser de outro modo, a resposta também foi negativa. Ainda demonstrando grande interesse pela sua permanência em Rio Acima propôs, finalmente, que ele trabalhasse numa alfaietaria, para aprender o ofício, com a condição de fornecer-lhe, gratuitamente, alimentação e cigarro, enquanto não percebesse salário. A resposta também foi negativa. Mas, sentindo encontrar-se diante de uma condição que podia ser considerada de pai para filho, resolveu atender seu pedido tão logo lhe arranjasse um emprego em condições normais de trabalho. Aceita que foi esta última condição, o gerente autorizou o acerto e o pagamento dos seus direitos, deixando Higesipo a empresa no dia 12 de agosto daquele mesmo ano – 1938.
HIGESIPO BRITO
Rio Acima, SET 1995.
A narrativa do autor prossegue em próxima postagem.
Referência: BRITO, Higesipo Augusto de. As memórias de um menino, de um rapaz, de um homem [Rio Acima, set. 1995. 17 f. Mimeografado]. Chá.com Letras, ago./set./out., 2013.
Revisão, pesquisa de imagens e edição:
Leila Brito
Ilustração:
Foto 1 – Estação de Rio Acima (inaugurada em 01/06/1890) – Data presumível: década de 1920. Foto cedida por Marcelo Lordeiro ao site “Estações Ferroviárias do Brasil”.Disponível em: <http://www.estacoesferroviarias.com.br/efcb_mg_linhacentro/rioacima.htm>.
Foto 2 – Instalações da S/A Metalúrgica Santo Antônio. Foto de autor desconhecido, retirada do livro Rio Acima: fragmentos da história de Minas, de autoria de Antônio Nahas Júnior. Belo Horizonte: Comunicação de Fato, 2010.
Foto 3 – Banda de Jazz do Rioacimense Esporte Clube. Foto de autor desconhecido, retirada do livro Rio Acima: fragmentos da história de Minas, de autoria de Antônio Nahas Júnior. Belo Horizonte: Comunicação de Fato, 2010.
Foto 4 – Vista da cidade, tendo ao fundo à esquerda os galpões da SAMSA. Foto de autor desconhecido, retirada do livro Rio Acima: fragmentos da história de Minas, de autoria de Antônio Nahas Júnior. Belo Horioznte: Comunicação de Fato, 2010.
A vida do nosso pai não foi fácil. Mas imagino que o estudo da música, o saxofone, tornavam o fardo mais leve. Higesipo era um baixinho valente, enfrentava as dificuldades, encarava os problemas de frente. Em1938, sua vida estava apenas começando… Ainda tem muita história, muita poesia e muita música. Emoção a cada capítulo.
Leila,
hoje 10.set. comecei a leitura. Já passei para uma olhada, e já vim correndo para cá. Quero ler devagarinho, epara sentir cada pedacinho, pois sei que foi escrito e pensado com amor.
Beijos e muito obrigada.
Assim que terminar aviso…
Abração e obrigada.
ADORANDO É POUCO ESTOU AMANDO!
Estou apaixonada por seu pai…
Aquela foto em cima da moto deve ter um poster enorme.
Leila acabei de ler este IV capítulo. É um filme que passa, e como sou uma sonhadora, começo até a sentir o calor da “fundição”, a sentir as cobras nos meus pés…
E a ansiedade que não consigo controlar? Já percorri o olhar biônico em tudo, fui até o final. Então, é claro que vai ter a segunda leitura. É uma prática, quando gosto do que leio.
Beijos Leila, e obrigada por esse presente que me deu.
Abração