O poetar de Manoel de Barros (II)
Manoel de Barros: sem margens com as palavras
CÉLIA SEBASTIANA SILVA
Cont. …
O GOZO DE RE-CRIAR O UNIVERSO
Um aspecto da poesia barreana que demonstra uma evidente evolução das outras obras para Retrato do artista quando coisa é um aguçamento da consciência criadora e do poder inventivo que a palavra dá ao poeta. Não por acaso é o título da obra, por exemplo. Manoel de Barros afirma todo o tempo, na referida obra, o “instinto lingüístico” e nega os “fazimentos cerebrais” (“Não é por fazimentos cerebrais que se chega ao milagre estético senão que por instinto lingüístico” (BARROS, 2002, p. 81), nega o conhecimento de livros (“Sabedoria pode ser que seja ser mais estudado em gente que em livros” (BARROS, 2002, p. 81), mas, é por meio do fazimento cerebral e do conhecimento de livros que busca no título de uma obra de James Joyce – Retrato do artista quando jovem – a inspiração, subvertida é claro, para o título da sua. Em outra passagem, o poeta afirma que
Na língua dos pássaros uma expressão tinge a seguinte.
Se é vermelha tinge a outra de vermelho.
Se é alva tinge a outra dos lírios da manhã.
É língua muito transitiva a dos pássaros
Não carece de conjunções nem de abotoaduras
E por não ser contaminada de contradições
A linguagem dos pássaros só produz gorgeios.
(BARROS, 2002, p. 67).
Há, nessa passagem, uma evidente consciência, contraditoriamente sutil e mordaz, de que a língua convencional, (na qual, inclusive, o poeta escreve), ao contrário da língua dos pássaros, não é transitiva; carece de conjunções e de “abotoaduras”; é contaminada de contradições e não se comunica por encantamentos.
Ainda nessa perspectiva da consciência crítica, Manoel de Barros, lúcido do poder ilimitado que a construção poética lhe dá e, aproveitando-se das coisas que o universo pantaneiro lhe oferece como matéria de poesia – preferencialmente as mais rasteiras –, experimenta o poder divino da criação. É ele mesmo que afirma:
Uso um deformante para a voz
Sou capaz de inventar uma tarde a partir de uma garça.
Sou capaz de inventar um lagarto a partir de uma pedra.
[…]
Experimento o gozo de criar.
Experimento o gozo de Deus.
Faço vaginação com palavras até meu retrato aparecer.
(BARROS, 2002, p. 21)
Ao equiparar-se ao papel do Criador original, o poeta parece demolir, por meio da linguagem, esse mundo moderno, fragmentado e artificial, e re-criar um outro em que todos os seres – humanos, vegetais, animais irmanam-se, integram-se e convivem, harmonicamente, poeticamente. Nesse ponto, a poesia de Barros (2002, p. 48) nega aparentemente a idéia de Gianni Vattimo de que é fácil mostrar que “a história da poesia destas últimas décadas não têm sentido se não são postas em relação com o mundo das imagens da mídia ou com a linguagem desse mesmo mundo”. O poeta, na verdade, dá sentido à sua poesia, ao colocá-la em relação diametralmente oposta com o mundo da mídia e, vai mais além, cria um mundo outro, totalmente diverso do convencional. Para tal, torna-se o próprio objeto da poesia. É por isso que se faz presente nela sempre como figura central, pois, afinal, ele é o ‘legislador’ desse novo universo. A ele é dado, como na idéia platônica, o poder de nomear as coisas:
Retrato do artista quando coisa: borboletas
Já trocam árvores por mim.
[…] Sou livre para o desfrute das aves
Dou meiguice aos urubus
Sapos desejam ser-me.
Quero cristianizar as águas
Já enxergo o cheiro de sol.
(BARROS, 2002, p. 11).
Vale notar que, ao delinear o retrato do artista quando, ou como, coisa e legislar também sobre si nesse mundo reinventado, Manoel de Barros não o faz tomando o sentido clássico de reificação do homem, mas no sentido de que o artista amplia-se de ser humano para coisa (“A rã me corrompeu para pedra. Retirou meus limites de ser humano e me ampliou para coisa” (BARROS, 2002, p. 13); equipara-se aos outros seres e passa a ser parte integrante da poesia, qual os pássaros, as pedras, os lírios, o cisco, as rãs, as latas, as lesmas, os caracóis.
Um aspecto curioso é que esse mundo re-criado por meio do discurso poético aproxima-se do mundo edênico, mítico em que o homem adâmico é resgatado por meio de sua integração com a natureza, de seu primitivismo e de sua insignificância.
Havia no lugar um escorrer azul de água sobre as pedras do córrego.
(Um escorrimento lírico.)
Andava por lá um homem que fora desde criança comprometido para lata.
Andava entre rãs e borboletas.
Me impressionou a preferência das andorinhas por ele.
Era um sujeito esmolambado à feição de ser apenas uma coisa.
Era um sujeito esmolambado à feição de ser apenas um trapo.
(BARROS, 2002, p. 37).
Em Manoel de Barros, a poesia é o canal para se chegar à época primitiva da criação. E o mais interessante é que somente os seres mais desprovidos de uma ótica filistina são capazes desse retorno. É o caso da criança (já foi mencionado aqui o aspecto da poesia barreana que se volta para o “criançamento” das palavras), do andarilho, de personagens como Bernardo (figura recorrente nas obras de Barros), Pote Cru, Passo-Triste, o sujeito esmolambado à feição de trapo – estes três últimos, figuras que aparecem em Retrato do artista quando coisa. A idéia de retorno pela linguagem é expressa ainda no fato de o poeta querer o “antesmente verbal: a despalavra mesmo”, isto é, um lugar que seja início, começo, ainda que esse lugar seja o espaço da poesia: “Agora só espero a despalavra: a palavra nascida para o canto – desde os pássaros./ A palavra sem pronúncia, ágrafa” (BARROS, 2002, p. 53). E é a partir da despalavra, das “ignorãças”, do insignificante, do rasteiro, das “coisas pertencidas de abandono”, dos seres ínfimos que o poeta experimenta o gozo de Deus, o gozo de criar e, mais que isso, de recriar, de “transfazer o mundo”.
Há que se considerar, fundamentalmente, que o estilo singular e inconfundível do poeta do Pantanal revela uma poesia que se pauta por uma quase auto-suficiência. Ela traz em si um caráter auto-explicativo. Afinal, ler Manoel de Barros por Manoel de Barros talvez seja a forma mais sensata de não corromper o silêncio gritante dessa poesia sem margens com as palavras.
REFERÊNCIAS
BARBOSA, J. A. As ilusões da modernidade. São Paulo: Perspectiva, 1986. BARBOSA, J. A. A metáfora crítica. São Paulo: Perspectiva, 1974.
BARROS, M. de. Concerto a céu aberto para solos de ave. Rio de Janeiro: Civilização Bra- sileira, 1991.
BARROS, M. de. Gramática expositiva do chão. Poesia quase toda. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1990.
BARROS, M. de. O livro das ignorãças. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1994. BARROS, M. de. Livro sobre nada. Rio de Janeiro: Record, 1997.
BARROS, M. de. Entrevista. CULT – Revista Brasileira de Literatura, out. 1998.
BARROS, M. de. Retrato do artista quando coisa. Rio de Janeiro: Record, 2002. FRIEDRICH, H. Estrutura da lírica moderna: da metade do século XIX a meados do século
XX. Tradução de Marise Curioni. São Paulo: Duas Cidades, 1978.
JAKOBSON, R. O que é a poesia? In: TOLEDO, D. (Org.). Círculo Linguístico de Praga: estruturalismo e semiologia. Porto Alegre: Globo, 1978.
CÉLIA SEBASTIANA SILVA é Doutora em Literatura Brasileira pela Universidade de Brasília. Professora da área de Letras no CEPAE da Universidade Federal de Goiás.
Referência:
SILVA, Célia Sebastiana. Manoel de Barros: sem margens com as palavras. Fragmentos de Cultura, Goiânia, v. 19, n. 7/8, p. 541-550, jul./ago. 2009. Disponível em: http://seer.ucg.br/index.php/fragmentos/article/viewFile/1078/754 . Acesso em: 17 jun. 2012.
Ilustração:
“Rio Amazonas” – Foto de autor desconhecido. Disponível em: http://colunadleitor.blogspot.com.br/2008/06/o-dia-mundial-do-meio-ambiente.html
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