Immanuel Kant [II]
Kant: o ser humano entre natureza e liberdade
VALERIO ROHDEN
O ser humano entre natureza e liberdade
Os textos de Kant, reproduzidos no presente livro, pertencem aos §§ 83 e 84 da terceira Crítica de Kant, a Crítica da faculdade do juízo, de 1790 [os números que aparecem à margem do texto correspondem às páginas da segunda edição original, de 1793].
Nessa Crítica da faculdade do juízo são desenvolvidas duas espécies de juízos reflexivos: os juízos de gosto (estéticos) e os juízos teleológicos voltados principalmente para organismos biológicos. Os juízos reflexivos contrapõem-se aos juízos determinantes, que partem de um conceito universal e procuram subsumir e determinar o particular. Já os juízos reflexivos partem, opostamente, do dado particular e movem-se em direção a um universal não determinável cognitivamente.
Este universal é uma idéia da razão, constitutiva dos juízos de gosto, mas apenas regulativa (de aproximação e guia de investigação) nos juízos teleológicos ou finalísticos. Esses são juízos animados por uma apenas vislumbrada idéia. [A sensibilidade produz intuições sensoriais, o entendimento produz conceitos, e a razão produz idéias]. Idéias são representações de totalidade, presidem um sistema, uma ciência, uma obra de arte, que se comunicam simbolicamente mediante a sua forma plástica ou sonora sensorial. Elas também, e principalmente, presidem a idéia de organismo, como um todo articulado mediante a idéia de vida. Mas não só o organismo natural, também o juízo de gosto é animado pelo sentimento de vida: nele, em vez de a representação ser referida cognitivamente ao objeto, ela é “referida inteiramente ao sujeito e na verdade ao sentimento de vida, sob o nome de sentimento de prazer ou desprazer”(trad. bras. p. 48, B 4). O juízo de gosto articula a representação dada com o todo da faculdade de representações, “da qual o ânimo torna-se consciente no sentimento de seu estado” (trad, bras. p. 49, B 5).
A faculdade geral de representações chama-se “ânimo” (Gemüt). O prefixo alemão “Ge” denota um conjunto, no caso um conjunto articulado de faculdades, do mesmo modo que “Gestirn” [Stern = estrela] denota um conjunto de estrelas chamado de “constelação”. O ânimo (como Gemüt) reúne o conjunto das faculdades de conhecer (faculdade teórica) e de apetecer (ou desejar, faculdade prática). É como faculdade reflexiva estética que o juízo articula entre si as duas faculdades, teórica e prática, dentro do todo do ânimo. Por isso o ânimo pode ser pensado não só como um organismo, ligado ao corpo, mas é pensado como princípio de vida por excelência: “O ânimo é por si só inteiramente vida (o próprio princípio da vida)” [p. 124, B 130; a expressão “(o próprio princípio da vida)” foi por um lapso omitida na tradução].
Assim toda essa terceira Crítica de Kant está centrada no princípio de vida como idéia articuladora de um organismo, por exemplo, também no caso do ser humano pensado como animal-racional. Convém ressaltar que a experiência estética tanto articula mediante o juízo – que é um talento que se desenvolve na prática e não na escola – a teoria e a prática, quanto integra o homem ao mundo. Mediante tal espécie de juízo o homem sente-se em casa na terra. Pelo desenvolvimento do sentido de gosto, ele aprende a amar a natureza e a vida e, portanto, a cuidar dela.
Vejamos então outros aspectos em jogo no texto relativo aos §§ 83-84. Mediante a idéia de último fim, o texto pensa primeiramente o ser humano enquanto ser da natureza e enquanto seu fim. Mediante a idéia de fim representada pela razão, todos os demais fins atribuídos pelo homem à natureza passam a constituir um sistema de fins. Os fins não são entidades naturais, e sim representações de como o homem visa e realiza a natureza em conjunto, como idéia (o todo do mundo e da natureza é sempre só uma idéia). A representação de fins é própria da faculdade prática de apetição (desejar, querer), não podendo os fins ser jamais impostos desde fora. Eles são representações livres do que o homem quer. Assim fins da natureza constituem uma espécie de projeção da vontade humana sobre ela.
O último fim natural do homem subdivide-se em felicidade e cultura. A felicidade é a idéia de uma satisfação completa da natureza humana. Ela não é tirada dos instintos e de sua animalidade, mas é a idéia de um tal estado, que ele procura realizar. Kant define a felicidade como “a globalidade de todos os fins possíveis do homem mediante a natureza”.
Já a cultura é um último fim da natureza como habilidade a toda espécie de fins. Por ela o ser humano torna-se capaz de desenvolver os germes de vida até seu pleno desabrochamento, ou seja, em seu caso, até o alcance de uma maioridade que a natureza preparou cuidadosamente, natureza que o homem termina de algum modo superando, para então passar também ele a cuidar dela, por exemplo, na perspectiva ecológica. O homem torna-se senhor da natureza, na medida em que pelo entendimento se coloca fins. Ele, entretanto, só se relacionará finalisticamente com a natureza enquanto conceber-se como fim para si próprio (fim terminal), portanto, como livre. Esta é uma concepção já esboçada no § 83, mas tematizada especificamente no § 84 da Crítica da faculdade do juízo. Como fim para si mesmo e não mais como um elemento da cadeia natural, o ser humano torna-se ser moral. Como seres livres, os homens já não podem reduzir nenhum outro a simples meio, mas devem considerá-lo sempre também como fim ou como sujeito moral. Só enquanto os seres humanos se reconhecem mutuamente como igualmente livres, isto é, autônomos como co-legisladores de um reino de fins, eles tampouco abusarão da natureza, que é como o seu próprio corpo: a matéria e a forma de expressão da sua vida.
O prazer que o ser humano sente pelos outros e pela natureza é sempre um prazer na vida. Por esse prazer, principalmente pelo prazer estético, o ser humano sente-se bem no mundo; e já por isso ele passará a cuidar da natureza. Só, contudo, como consciência moral de si ele sentir-se-á ou deveria sentir-se impedido de abusar da natureza, ou deverá fazer dela um uso que corresponda à vontade de todos os demais. Do contrário a usará em benefício próprio e em detrimento da liberdade de outros.
Então o fim terminal é um fim em que o ser humano se coloca a si, e logo racionalmente também a todos os outros, como próprio fim. “Sobre o homem (assim como qualquer ser racional no mundo) enquanto ser moral não é possível continuar a perguntar: para que existe ele? A sua existência possui nele próprio o fim mais elevado, ao qual – tanto quanto lhe for possível – pode submeter toda a natureza.”
A novidade, aqui, é que a relação moral do homem com a natureza transforma não só essa relação de modo geral, mas também deveria transformar as atuais relações vigentes com ela, que tão bem conhecemos. A relação moral do homem com a natureza é uma relação em vista da humanidade atual e futura. Ela é, para os homens de boa vontade, uma garantia de que só a esse nível a natureza poderá ser universalmente assegurada e preservada como condição geral da vida.
Referência:
ROHDEN, Valerio. Kant: o ser humano entre natureza e liberdade. In: CARVALHO, Isabel Cristina de Moura; GRÜN, Mauro; TRAJBER, Rachel (Orgs.). Pensar o ambiente: bases filosóficas para a educação ambiental. Brasília: ME/UNESCO, 2006. p. 107-112. Disponível em: http://pt.scribd.com/doc/81450181/8/Valerio-Rohden
Ilustração:
Foto da capa de obra editada em 1914: Immanuel Kant. Die Persönlichkeit als Einführung in das Werk. Published by F. Bruckmann A.-G., Munich 1905. Translated into English (Immanuel Kant. A Stud and a Comparison with Goethe, Leoonardo da Vinci, Bruno, Plato and Descartes), by Lord Redesdale, published by John Lane, The Bodley Head, London 1914 / John Lane Company, New York 1914 / Bell & Cockburn, Toronto 1914. Disponível em: http://www.hschamberlain.net/bibliography/bibliography.html
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