O poetar de Cecília Meireles
CECÍLIA MEIRELES
LEILA BRITO
Cecília Benevides de Carvalho Meireles (1901-1964) é a primeira grande escritora da literatura brasileira e a principal voz feminina da nossa poesia moderna. Sua obra privilegia a riqueza do léxico, numa linguagem que explora símbolos e imagens sugestivas, sobretudo os de forte apelo sensorial, enveredando, inclusive, pela musicalidade (AMÓRA e CALDAS, [2006?]).
A rigor, a poeta nunca esteve filiada a nenhum movimento literário. Sua poesia, de modo geral, filia-se às tradições luso-brasileiras. Apesar disso, suas publicações iniciais – Espectros (1919), Nunca Mais… e Poemas dos Poemas (1923) e Baladas para El-Rei (1925) – evidenciam certa inclinação para o Simbolismo. Essa tendência é confirmada pela participação da autora na revista carioca Festa, órgão literário de orientação espiritualista que defendia o universalismo e a preservação de certos valores tradicionais da poesia (AMÓRA e CALDAS, [2006?]).
Mário de Andrade enfatiza a qualidade artística de Cecília Meireles, mostrando-nos sua grande importância em nossa literatura:
Ela é desses artistas que tiram seu ouro onde o encontram, escolhendo por si, com rara independência. E seria este o maior traço de sua personalidade, o ecletismo, se ainda não fosse maior o misterioso acerto, dom raro com que ela se conserva sempre dentro da mais íntima e verdadeira poesia (ANDRADE, 1955, p. 71).
Quando Cecília surgiu no cenário literário nacional, a poesia brasileira, atravessando a segunda fase do Modernismo, vivia seus melhores momentos. Tratava-se de uma geração de artistas despreocupada com as questões imediatistas da geração de 1922. Do ponto de vista literário, chega-se a uma certa maturidade, pois não há mais a necessidade de escandalizar os meios acadêmico-culturais – tônica da geração de 1922 –, mas de levar adiante o projeto de liberdade de expressão. Nota-se a presença de versos livres e de sonetos voltados para as questões universais do homem e para os problemas de uma sociedade capitalista. Verificam-se, ainda, reflexões sobre o fazer poético, além da presença do misticismo e da religiosidade (AMÓRA e CALDAS, [2006?]).
Trata-se de uma fase marcada por poetas de grande expressão como Carlos Drummond de Andrade – com sua poesia social e de combate e reflexões sobre o papel do homem no mundo; Jorge de Lima – com poesias metafóricas e metafísicas; Murilo Mendes – com poesias surrealistas; Vinícius de Moraes – cuja poesia caminha cada vez mais para a percepção material da vida, do amor e da mulher; e Cecília Meireles – que envereda pela direção da reflexão filosófica e existencial, como no poema
MOTIVO
Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.
Irmão das coisas fugidias,
não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.
Se desmorono ou se edifico,
se permaneço ou me desfaço,
‒ não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.
Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
‒ mais nada.
A POESIA DE CECÍLIA MEIRELES
Do ponto de vista formal, a escritora e poeta foi das mais habilidosas, apresentando cuidadosa seleção vocabular. Cultivou uma poesia reflexiva, de fundo filosófico, que abordou, dentre outros, temas como a transitoriedade da vida, a efemeridade do tempo, o amor, o infinito, a natureza, a criação artística. Além disso, a frequência com que os elementos como o vento, a água, o mar, o ar, o tempo, o espaço, a solidão e a música aparecem em sua poesia lhe dão um caráter fluido e etéreo, que confirma uma inclinação ao neo-simbolismo.
Sua atitude de questionamento e a tentativa de compreender o mundo revelam uma postura intuitiva decorrente de suas próprias experiências, como se constata neste seu comentário:
Nasci aqui mesmo no Rio de Janeiro, três meses depois da morte de meu pai, e perdi minha mãe antes dos três anos. Essas e outras mortes ocorridas na família acarretaram muitos contratempos materiais, mas, ao mesmo tempo, me deram, desde pequenina, uma tal intimidade com a Morte que docemente aprendi essas relações entre o Efêmero e o Eterno (GOLDSTEIN; BARBOSA, 1982, p. 3).
Nas palavras de Walmir Ayala, em apresentação da coletânea Cecília Meireles: poesia completa: “[…] sente-se que o aprendizado da morte começou muito cedo para ela […], uma visão muito dura e precoce em direção ao grande enigma […]” (MEIRELES, 1994, p. 13). E a genialidade da poeta está em abordar reflexivamente temas existenciais, revestindo-os de uma leveza tal que, ao contrário de aterrorizar o leitor, desperta-o para a realidade suavemente, no ritmo ameno de sua musicalidade poética.
Nas palavras da própria poeta, a intenção poética é: “Acordar a criatura humana dessa espécie de sonambulismo em que tantos se deixam arrastar, mostrar-lhes a vida em profundidade, sem pretensão filosófica ou de salvação – mas por uma contemplação poética afetuosa e participante” (MEIRELES, 1994, p. 6).
Neste sentido, o estudo da poesia de Cecília Meireles ressalta a presença marcante da subjetividade. Num momento decisivo para o Modernismo, a obra ceciliana parece sustentar as marcas do etéreo e do atemporal, do particular (o espiritualismo da autora, por exemplo) e do universal (a própria poesia). Tal subjetividade é universal, visto que os poemas parecem refletir, no papel, as dores e as angústias de toda a humanidade. É neste mergulho profundo no próprio ser, que a poeta faz emergir a reflexão sobre a efemeridade da existência através de imagens sensoriais que possibilitam a visualização do invisível. Em sua mensagem poética, mostra que a natureza metaforiza a nossa condição de humanos, portanto efêmeros, mas eternos, visto a associação indireta que faz do homem com deus (ROCHA, 2010).
Tanto quanto a construção sintática, o vocabulário utilizado é simples, apesar da notória vasta cultura da poeta. Mas trata-se de um simples repleto de um simbolismo que prende o leitor nos detalhes que compõem o grande fio sensorial que liga as palavras aos vários sentidos da composição metafórica. O ritmo dos poemas é lento e suave, atestando sua delicadeza ao “criar” a representação do som de suas “letras”. Mesmo em passagens de ritmo acelerado, a suavidade não desaparece (ROCHA, 2010).
A poeta afirmou, certa vez, que, “poesia é grito (com toda sua força) mas transfigurado”, evidenciando, assim, uma postura de controle e ordenação dos impulsos líricos – livre do atordoamento do tempo –, e uma constante atitude de reflexão sensível sobre o fazer poético (MEIRELES apud TITO, 2001/2002, p. 73).
LEILA BRITO
Belo Horizonte, 29 set. 2010
Referências:
ANDRADE, Mário de. O empalhador de passarinho. 2. ed. São Paulo: Martins, 1955.
AMÓRA, André Luiz Alves Caldas; CALDAS, Tatiana Alves Soares. Viagem: a metaposia em Cecília Meireles. [2006?]. Disponível em: <http://www.filologia.org.br/viiicnlf/anais/caderno11-19.html>. Acesso em: 29 set. 2010.
GOLDSTEIN, Norma S.; BARBOSA, R. C. Cecília Meireles: seleção de textos, notas, estudo biográfico, hitórico, crítico e exercícios. São Paulo: Abril, 1982. v. 1, 106 p.
MEIRELES, CECÍLIA. Poesia Completa. Introdução de Walmir Ayala; e Notícia biográfica e bibliografia de Darcy Damasceno. Rio de Janeiro Nova Aguilar, 1994.
ROCHA, Alessandra Almeida. Análise estilística de alguns poemas de Cecília Meireles. Disponível em: <http://www.filologia.org.br/revista/artigo/6(16)14-25.html>. Acesso em: 29 set. 2010.
TITO, Maria Rejane Araújo. Entre o eterno e o efêmero, a oferta do dom. Revista de Letras, São Paulo, 41-42, p. 73-88, 2001/2002.
Ilustração:
Fotos de autor desconhecido desta poeta.
Cecília, cadê suas poesias?