As mulheres preferem os tolos(?)
LEILA BRITO
Essa é a tese defendida pelo maior escritor brasileiro de todos os tempos, Machado de Assis, em sua obra literária. E é o teórico francês Victor Henaux o autor de tão revolucionária teoria, exposta em um artigo intitulado Queda que as mulheres têm para os tolos, traduzido por Machado em 1861. Segundo Henaux:
O tolo não se faz, nasce feito. […] Mulher alguma resistiu nunca a um tolo. […] Nenhum homem de espírito teve ainda impunemente um parvo como rival. […] Em matéria de amor, deixa-se o homem de espírito embalar por estranhas ilusões. […] Respeitoso até a timidez não ousa exprimir o seu amor em palavras; exala-o por meio de uma não interrompida série de meigos cuidados, ternos respeitos e atenções delicadas. […] O tolo, porém, não tem escrúpulos. […] Para fazer-se notar daquela que ama, importuna-a, acompanha-a nas ruas, vigia-a nas igrejas e espia-a nos espetáculos. Arma-lhe laços grosseiros (HENAUX, 1859).
Este texto de Victor Henaux pertence à produção teórica dos moralistas franceses, foi escrito com uma roupagem esteticista da época, e expõe a comparação do homem de espírito (homem culto) com o homem tolo (homem inculto), para defender a tese de que a mulher tem queda pelos tolos, e que isto é algo irremediável nela, tratando-se, pois, de uma tendência “genética” do sexo feminino.
Na primeira parte do texto, HENAUX (1859) mostra que as mulheres agiriam normalmente, de uma forma geral, exceto na questão do amor, cuja regularidade no comportamento aponta para a sua preferência pelos homens tolos – qualidade inferior de homens. Na segunda parte do texto, o autor exalta o homem tolo, porque qualquer carreira que ele escolha o levará ao sucesso, não importando a profissão dele. Na verdade, a tolice seria uma virtude que o leva ao sucesso com as mulheres. Esse cientificismo é visto de forma determinante, chegando o autor a colocar o tema no interior da Física para demonstrar o determinismo do sucesso do tolo. Na terceira parte do texto, o autor mostra que o homem de espírito tem uma visão aprofundada do mundo. Já o tolo vê o mundo a partir de uma visão estratégica ou pragmática. Em vista disso, o homem de espírito é voltado para a interioridade(virtudes), buscando a si próprio, pois tem consciência de suas limitações, enquanto o homem tolo volta-se para a exterioridade (coisas mundanas), sendo marcado pela vaidade (se acha o tal), e essa característica é fundamental para que conquiste as mulheres (em francês vanité – van = vão, ou seja,o tolo não sabe nada mas acha que sabe, e é por isso que alcança o sucesso).
Por fim, o autor explica que “o amor é uma jornada do sentimento à sensação”. O homem de espírito valoriza o sentimento enquanto o homem tolo valoriza a sensação. Tem-se, então, um confronto entre o amor mais espiritualizado e o amor mais carnal. Assim, porque o homem de espírito é um questionador de seus valores, ele está sempre em dúvida quanto ao seu amor (é perturbado pela dúvida), enquanto o homem tolo é um amante sempre contente e tranquilo, porque tem confiança nos seus predicados e, portanto, tem certeza de ser amado. O homem de espírito preocupa-se com o amor que doa, enquanto o homem tolo preocupa-se com o amor que recebe. O homem de espírito é um ser ético; o homem tolo é um ser estratégico (manipulador). Assim, para o homem de espírito a mulher é um FIM, enquanto para o homem tolo a mulher é um MEIO (HENAUX, 1859).
A visão da mulher que se tinha na época é a de um ser volúvel na esfera dos sentimentos, expondo o movimento natural da vida em contante mutação, refletindo, pois, em seu comportamento, o “vir-a-ser”. Diante disto, para HENAUX (1859), o homem de espírito não se ajusta a esta mutabilidade e se sente perdido, enquanto o homem tolo coloca-se acima disto, utilizando a traição para seguir em frente. Assim, o homem tolo é bem ajustado ao “vir-a-ser”, à temporalidade, enquanto o homem de espírito vive um estranhamento em relação ao “vir-a-ser”, sendo um filósofo voltado para as coisas eternas. Por isso, o homem de espírito tenta se sobrepor aos reveses e muda, cresce, enquanto o homem tolo, que não sofre reveses na vida, permanece imaturo.
Num estudo aprofundado da ficção machadiana, constata-se que o escritor adota a teoria de HENAUX (1859), expondo a problemática da oposição entre vida interior (vida íntima), opção do homem de espírito, e vida exterior (vida social), opção do homem tolo. O primeiro sabe que lhe falta muito; tem consciência de sua condição humana limitada, sendo, por isso, um questionador de seus valores e, por estar voltado para a interioridade do próprio ser, não alcança o sucesso mundano (incluindo-se aí as mulheres). Já o segundo é cheio de si, vaidoso de seus predicados e, por estar voltado para a exterioridade do próprio ser, alcança o sucesso mundano (particularmente com as mulheres). Ao longo de sua obra, o homem de espírito de Machado vai se transformando no personagem cético, em um perdedor no campo amoroso, que se caracteriza em Brás Cubas (um cético morto) – Memórias póstumas de Braz Cubas, evolui em Bentinho (um cético vivo) – Dom Casmurro, e se define em Aires (o cético convicto – um ataráxico) – Memorial de Aires. Tal processo foi possibilitado pela mudança do foco narrativo, com os personagens Brás Cubas, Bentinho e Aires no papel de narradores/escritores da própria história.
Assim, no transcurso de sua obra, Machado de Assis expõe a problemática da oposição entre vida interior e vida exterior, e tal confronto é refletido no triângulo amoroso que ambasa todos os seus romances, com o homem tolo sempre vencendo o homem de espírito. Em Dom Casmurro, Bentinho se afasta da vida exterior, representada por Capitu, amargando a dúvida da traição que ele nunca admite explicitamente. Enfim, o grande escritor não deixa dúvida: “as mulheres preferem os tolos”.
Referências:
ASSIS, Machado de. Memorial de Aires. 4. ed. São Paulo: Ática, 1985. (Bom Livro)
ASSIS, Machado de. Memórias Póstumas de Brás Cubas. Crawfordsville-USA: Klick Editora, 1997.
ASSIS, Machado de. Dom casmurro. In: MINISTÉRIO DA CULTURA. Fundação Biblioteca Nacional. Disponível em: www.dominiopublico.org.br. Acesso em: 8 set. 2007.
BRITO, Leila. A filosofia na ficção de Machado de Assis: Pacal, Montaigne, Shopenhauser, Comte. Belo Horizonte: Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG, 2007. 14 f. Mimeografado.
BRITO, Leila. O ceticismo em Machado de Assis. Belo Horizonte: Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG, 2007. 50 f. Notas de aula.
HENAUX, Victor. [1859]. Queda que as mulheres têm para os tolos. Tradução de Machado de Assis. AM, 19, 23, 26 e 30 abr. e 3 mai. 1861. In: ASSIS, Machado de. Obras Completas. Rio de Janeiro: W. M. Jackson, 1937-58. v. III).
MAIA NETO, José Raimundo. A condição de observador na obra de Machado de Assis. 1987. Dissertação (Mestrado em Filosofia) – Faculdade de Filosofia, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1987.
Ilustração:
Atores representando as personagens principais de Dom Carmurro na minissérie Capitu produzida pela Rede Globo.
Leila, amiga querida:
Machado é um clássico da literatura mundial. Podemos até não nos conformar, mas nada há que se contestar dos clássicos.
Se Machado afirma, quem sou eu para questioná-lo?…rss
Parabéns. Texto magnífico.
Bjs no core!
Muito interessante esse texto. Ele é provocador, e certamente renderia uma discussão instigante, porque refere-se, principalmente, ao comportamento humano, que é tratado no texto como um determinismo genético. E isso, por si só, já renderia uma “mesa redonda”. Mas Machado é Machado. Acredito que tinha suas desconfianças com respeito às mulheres e seus sentimentos. Que nos diga Capitu, rsrsrsr. A TV Brasil está apresentando aos sábados o programa Cinco Vezes Machado. Uma maravilha!
Machado se Assis – a evolução de seus romances e contos, da fase romântica para a fase realista: sempre em uma linguagem apuradíssima, revelando uma profunda preocupação formal,(me lembra vc) exalta o conceito da “arte pela arte” aonde cada obra pertence ao seu tempo. – A tal da dependência feminina…
O amor
“Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de réis, nada menos.” W.L.